"Os projetos de futuro passam por armar satélites. A guerra vai evoluir nesse sentido." E isto vem a propósito de quê? "A Coreia do Norte não pode ser sancionada por ter satélites"

14 set 2023, 21:00
Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte, encontra-se com Vladimir Putin, presidente da Rússia (EPA)

A Rússia comprometeu-se a ajudar a Coreia do Norte a lançar uma rede de satélites. Há muito a dizer sobre isso

O líder norte-coreano, Kim Jong-un, visitou quarta-feira o mais moderno centro de lançamento espacial da Rússia - e foi nesse mesmo local que o presidente Vladimir Putin prometeu ajudar Pyongyang a lançar satélites. A visita sem precedentes acontece num momento em que a Coreia do Norte procura colocar em órbita o seu primeiro satélite-espião, um esforço que viu duas tentativas falhadas este ano. A promessa de ajuda russa chega portanto no momento certo: os cientistas da Coreia do Norte querem tentar em outubro outro lançamento do novo Chollima-1.

Mas que implicações é que isto tem no equilíbrio de forças mundial? O major-general Isidro Morais Pereira começa por responder que, antes de mais, sabe-se muito pouco sobre acordo: "Não há qualquer declaração escrita de nenhum dos líderes. Uma coisa é certa: as declarações que nós ouvimos vão no sentido de incrementar as relações entre os dois países. Podemos inferir que as negociações correram bem". Quando o acordo avançar, o major-general sublinha que a Coreia do Norte vai beneficiar de outro ganho além dos próprios satélites: know how. "Ainda que numa primeira fase seja a Rússia a desenvolver os satélites, a Coreia do Norte, depois de os ter, vai aprender a produzi-los, não tenho dúvidas nenhumas - é só copiar aquilo que vai passar a ter."

Por outro lado, é preciso saber ao certo de que tipo de satélites é que estamos a falar, aponta o especialista em assuntos internacionais Tiago André Lopes. "Se forem satélites de comunicação, a China pode ficar um pouco preocupada porque é a fornecedora da Coreia da Norte. Mas se forem satélites com aplicações militares haverá mais motivos para preocupação, nomeadamente para o Japão."

O major-general Isidro Morais Pereira acredita que o que está em causa são precisamente satélites que vão fortalecer o poder militar da Coreia: "A Coreia do Norte tem um exército muito numeroso, é equipado com material bélico vindo ainda dos tempos da União Soviética e tem vindo a desenvolver mísseis balísticos de curto e agora de médio alcance. Mas quer mais. Quer ter tecnologia que lhe permita lançar uma rede de satélites - ainda que seja uma rede regional, não acredito que tenha capacidade para lançar uma rede global. Quer ter acesso a uma quarta dimensão da guerra, a dimensão espacial".

E que vantagem é que esses satélites vão dar à Coreia do Norte? "Vigilância, reconhecimento e informação", responde Isidro Morais Pereira. Os satélites dão "capacidade de observação geoespacial, isto é, de ver a uma grande distância aquilo que os adversários estão a fazer, quer em tempos de paz quer em tempos de guerra", explica o major-general. "Há satélites que têm uma definição extraordinária. Isso é uma grande vantagem na guerra."  É por isso que a Coreia do Sul e o Japão estarão certamente atentos a estas movimentações. Até porque, alerta o major-general, "os projetos de futuro passam por armar satélites. A guerra vai evoluir nesse sentido e a Coreia do Norte não quer ficar para trás nisto."

De qualquer maneira, Tiago André Lopes considera "provável que o acordo ainda não tenha sido assinado" e que os contornos finais só ficam concluídos no próximo encontro entre os dois países, a realizar-se na Coreia do Norte. A única coisa que parece certa, para já, são os acordos firmados no sector agrícola, aponta Tiago André Lopes: a Rússia vai abastecer a Coreia do Norte de cereais e, por outro lado, vai receber esquipamentos agrícolas que tem em falta. A Coreia do Norte também queria submarinos nucleares mas, aparentemente, a Rússia não cedeu neste ponto.

Os "submarinos movidos a energia nuclear" têm a vantagem de atingir uma velocidade maior e de "sobreviverem debaixo de água muito mais tempo e têm maior autonomia porque têm mais energia para produzir oxigénio", explica o major-general Isidro Morais Pereira. Também têm desvantagens: são maiores e têm uma uma assinatura térmica maior, o que os torna mais facilmente detetáveis.

E o que é que a Rússia recebe em troca? (e atenção ao estado das munições)

Antes de mais, diz Tiago André Lopes, há que entender que "a Coreia do Norte quer entrar na corrida espacial e a Rússia está num momento de alguma fragilidade - o último lançamento falhou, por outro lado a Índia chegou ao polo sul da Lua". "Por isso, a Rússia quer manter-se na corrida e interessa-lhe ter parceiros."

Mas "o que a Rússia quer e precisa é de munições", diz Isidro Morais Pereira. "Precisa de munições de artilharia, de 152 mm e 122 mm, que são os calibres que a Rússia usa, e também armas anticarro - para combater viaturas blindadas e carros de combate", especifica. "A Rússia necessita urgentemente de munições porque não as tem. Gastou muitas munições em determinadas fases da guerra na Ucrânia, usou as munições que tinha armazenadas ainda do tempo da União Soviética mas agora precisa de mais. Por seu lado, a Coreia tem ainda muitas munições e armas anticarro do tempo da União Soviética e tem capacidade para fornecer - não sabemos é se ainda estão em bom estado."

Tiago André Lopes concorda que a Rússia "tem uma necessidade muito alargada de munições e de mísseis" mas tem uma perspetiva ligeiramente diferente da do major-general: a Coreia do Norte vai "enviar componentes para a Rússia produzir equipamentos". Ou seja, vai tornar-se "um provedor de peças e não de produto final. "A Rússia quer manter a sua indústria a trabalhar e para isso precisa de ter acesso às matérias-primas." 

Posto isto, devemos ficar preocupados?

"Claro que ficamos mais preocupados", responde o major-general Isidro Morais Pereira. "No extremo-oriente (também chamado indo-pacífico) temos grandes aliados da NATO - Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia - e todos eles têm estar atento ao aumento do poder militar da Coreia da Norte."

Tiago André Lopes concorda que o Ocidente deve "manter-se atento num momento em que assiste a um "reposicionamento de todos os estados asiáticos" com a "reconstrução dos apoios à China", sem perder de vista o que se passa também no Irão e no Afeganistão. 

Mas neste momento é preciso esperar para ver. 

Os Estados Unidos e os seus aliados consideraram os últimos testes de satélite da Coreia do Norte violações claras das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, que proíbem o desenvolvimento de tecnologia aplicável aos programas de mísseis balísticos da Coreia do Norte.

A Coreia do Norte pode ser sancionada por ter um programa nuclear mas não pode ser sancionada por ter satélites, explica Tiago André Lopes. "Putin garantiu que, apesar deste acordo, iria manter-se dentro do espetro das sanções da ONU - ou seja, comprindo as resoluções que foram tomas pelo Conselho de Segurança a partir de 2006. Isto é importante porque essas resoluções foram aprovadas unanimemente pelos membros - incluindo a China. E a Rússia não se pode pôr numa posição de ser mais protecionista da Coreia do Norte do que a China."

Os comentários de Putin antes do encontro com Kim no Cosmódromo de Vostochny podem sugerir que a Rússia vai tentar ensinar a Coreia do Norte a construir satélites em vez de construí-los para a Coreia do Norte, disse Lee Choon Geun, do Instituto de Política Científica e Tecnológica da Coreia do Sul. Por outro lado, é improvável que a Rússia consiga lançar um satélite em nome da Coreia do Norte - mas, se o fizer, isso viola as restrições da ONU, disse Lee. “Qualquer forma de transferência de tecnologia de satélite ou coordenação entre a Rússia e a Coreia do Norte podia ser contra as sanções internacionais. Não há solução alternativa."

Avanços e recuos na corrida espacial da Coreia do Norte

Desde 1998, a Coreia do Norte lançou seis satélites, dois dos quais parecem ter sido colocados em órbita com sucesso. Em 2015 manifestou vontade de desenvolver a cooperação com a Rússia no uso “pacífico” do espaço exterior. O mais recente lançamento de satélite bem-sucedido ocorreu em 2016. Observadores internacionais disseram que o satélite parecia estar sob controlo, mas houve um debate sobre se tinha enviada alguma transmissão. Um alto funcionário da agência espacial da Coreia do Norte disse, após o lançamento de 2016, que o país planeava colocar satélites mais avançados em órbita até 2020 e, eventualmente, “colocar a bandeira da (Coreia do Norte) na Lua”.

Na altura do lançamento espacial de 2016, a Coreia do Norte ainda não tinha disparado um míssil balístico intercontinental (ICBM). O lançamento do satélite foi condenado pelos governos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul como um teste disfarçado de tecnologia de mísseis capaz de atingir o território continental dos Estados Unidos.

Desde 2016, a Coreia do Norte desenvolveu e lançou três tipos de ICBM e agora parece empenhada em colocar satélites funcionais no espaço. Isso não só lhe proporcionaria melhores informações sobre os seus inimigos mas também provaria que podia acompanhar outras potências espaciais em crescimento na região, disseram analistas. Durante o congresso do partido em janeiro de 2021, Kim revelou uma lista de desejos que incluía o desenvolvimento de satélites de reconhecimento militar.

“Até onde sabemos, a Coreia do Norte tem uma capacidade muito limitada para construir satélites”, disse Brian Weeden, da Secure World Foundation, uma organização de política e segurança espacial com sede nos EUA, citado pela Reuters. "Nenhum dos seus satélites parece ter qualquer capacidade significativa." A Coreia do Sul recuperou alguns dos destroços do Chollima-1. Seul disse que o satélite tinha pouco valor militar, embora os analistas afirmassem que qualquer satélite em funcionamento no espaço forneceria à Coreia do Norte melhores informações sobre seus inimigos.

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