Exército de Putin "está mais forte agora do que no início". Como dois anos de guerra não tornaram a Rússia mais fraca

20 mar, 07:00
Presidente da Rússia, Vladimir Putin (EPA)

Contra todas as expectativas, o conflito na Ucrânia pode mesmo ter fortalecido a Rússia nalgumas áreas

Não está isolada diplomaticamente, continua a registar crescimento económico apesar das sanções e tem um exército maior do que no início da guerra. Apesar de estar a enfrentar resistência ucraniana no campo de batalha e da Europa e dos Estados Unidos no plano económico e diplomático, a Rússia não só não caiu como está mais perigosa que nunca, uma vez que tem algo que quase nenhum outro exército do mundo tem neste momento.

“O exército russo hoje é indiscutivelmente o mais forte do mundo. É o mais bem preparado e mais bem treinado. Tem dois anos de experiência no conflito e, além disso, é apoiado por uma base tecnológica e industrial de defesa que não tem rival no Ocidente”, defende o major-general Agostinho Costa, especialista em Assuntos Militares.

Refira-se que não existe um consenso total sobre quem será o maior exército do mundo, até porque é subjetivo dizê-lo, consoante aquilo que é mais valorizado. O índice do Global Firepower coloca os Estados Unidos ligeiramente acima da Rússia, nomeadamente pela liderança no que toca a meios aéreos e terrestres. Washington DC tem mais aviões, caças ou carros de combate que Moscovo. Por outro lado, se tivermos em conta o número de ogivas nucleares, é a Rússia que vai à frente, tendo cerca de mais 600 armas deste género que os Estados Unidos.

Apesar dos insucessos iniciais registados pela Rússia, o comando militar russo adaptou-se e tomou medidas para adequar o exército às duras lições que aprendeu no primeiro ano de guerra na Ucrânia. A natureza da guerra tinha mudado. Aquele que é o conflito de maior intensidade desde a guerra na Coreia tem poucas semelhanças com os combates dessa altura. Hoje, milhares de drones patrulham os céus em buscas de novos alvos ou de movimentações inimigas. Qualquer passo em falso pode ter um elevado custo.

Por isso, um dos principais elementos que pode vir dar vantagem ao exército russo é a experiência de combate naquele que é o conflito de maior intensidade desde a guerra na Coreia, na década de 50. A natureza da guerra é hoje diferente e a Rússia tem dezenas de milhares de veteranos com conhecimento de combate, o que é uma grande mais-valia para o exército russo.

“Tenho dúvidas que haja algum exército capaz de enfrentar a Rússia da forma como a guerra está a decorrer na Ucrânia. A forma de fazer guerra mudou completamente. A guerra de manobra acabou e agora o objetivo é eliminar o inimigo com mil pequenos golpes. A Rússia está mais forte agora do que no início da guerra e nós subestimámos a capacidade de mobilização e do povo russo”, considera Agostinho Costa.

Além disso, o tamanho do exército russo não para de crescer. Em 2022, quando começou a invasão da Ucrânia, a Rússia tinha 1,1 milhões de soldados no ativo, em todos os ramos. Esse número é agora 1,32 milhões e, de acordo com os serviços secretos norte-americanos, pode mesmo atingir os 1,5 milhões de em 2026. A confirmar-se, esses valores fariam da Rússia o terceiro maior exército do mundo em tamanho apenas atrás da China e da Índia.

Na Ucrânia, a Rússia continua a perder material a um ritmo que há poucos anos seria impensável. Mas uma herança praticamente inesgotável da União Soviética faz com que a Rússia consiga repor muitos dos carros de combate e das viaturas blindadas que as forças de Kiev estão a conseguir destruir no seu território. Segundo o Military Balance do think thank norte-americano The International Institute for Strategic Studies, a Rússia tem mais de 1.750 tanques ativos e 4.050 blindados. Moscovo conta também com mais de seis mil blindados ativos, com mais quatro mil de reserva.

“A Rússia está mais forte agora do que no início da guerra. O povo russo mobilizou-se e nós, aqui, continuamos a discutir a possibilidade de transitar para uma indústria de guerra”, refere o major-general Agostinho Costa.

Sanções? Rússia responde com crescimento 

Depois de dois anos de guerra, muitas sanções e boicotes, a economia russa provou ser bem mais resiliente do que se acreditava. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o país cresceu 3% em 2023 e prevê um crescimento de 2,6% para 2024. Para os especialistas, o “milagre económico” russo tem dois culpados: a indústria militar e a venda de produtos petrolíferos.

A Rússia fez disparar o seu orçamento da Defesa e ordenou as fábricas da indústria para começarem a produzir equipamentos de forma ininterrupta, todos os dias, 24 horas por dia. Desde o início da guerra, o governo russo decidiu não divulgar vários dados económicos ligados à guerra na Ucrânia, mas é esperado que a Rússia gaste 107 mil milhões de euros na Defesa, em 2024, cerca de 6,2% do PIB. A confirmar-se, este valor representa um aumento de 90% dos gastos em Defesa em relação a 2021, o ano antes da invasão. Mas este crescimento económico pode não representar uma melhoria na qualidade de vida dos cidadãos russos.

“A Rússia parece ter-se adaptado a uma nova realidade. Não só à realidade da guerra, como à das sanções económicas que foram feitas. O seu bem-estar desce, mas o povo parece ter-se adaptado às novas circunstâncias. Há um custo para a Rússia que é evidente, mas o custo político da Rússia perder a guerra seria ainda maior”, refere Ricardo Ferraz, investigador no ISEG e professor da Universidade Lusófona.

A guerra passou a fazer parte do dia-a-dia dos russos, incluindo na economia. Lá ao fundo um cartaz promove uma angariação de fundos para o exército, São Petersburgo (Dmitri Lovetsky/AP)

Estima-se que o conflito na Ucrânia é responsável por mais de 60% do aumento da produção industrial russa nos últimos dois anos. Esta produção industrial acaba por ser imediatamente “gasta” nos campos de batalha ucranianos, não resultando numa melhoria da economia russa. “A maior parcela do Produto Interno Bruto russo dos últimos dois anos não desencadeou benefícios para a economia civil russa. A única vantagem resultante deste processo é de curto prazo: a produção industrial vai gerando emprego”, explica o economista João Rodrigues dos Santos.

Apesar de estarem a ser transacionados longe dos valores de 2022, a venda de petróleo e de gás natural continua a enriquecer os cofres do Kremlin. No entanto, esse valor sofreu uma queda de 24% em 2023 quando comparados com os valores obtidos em 2022. Tudo indica que o Kremlin vai continuar a redirecionar a sua economia para a Ásia, criando com isso uma maior resiliência.

"Ao longo dos séculos, a Rússia demonstrou sempre isso mesmo, adaptando-se a condições extremas e bélicas. Não os devemos subestimar. Vimos isso nas guerras napoleónicas e na União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial", lembra Ricardo Ferraz.

China e restantes BRICS a ajudar

Durante os primeiros dias da ofensiva russa, a condenação das ações do Kremlin vinha de todos os lados. Vários líderes criticavam abertamente as ações militares russas. Esse cenário levou a que o Ocidente pensasse que podia utilizar a violação da soberania territorial ucraniana para isolar diplomaticamente a Rússia. Dois anos depois, essa estratégia caiu completamente por terra e há um culpado: a China.

Ao contrário de outros, Pequim aproveitou o seu papel cada vez mais importante no sistema internacional para ter uma “neutralidade pró-russa”, defende a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais Diana Soller. Mas isso teve um custo grande para Moscovo, que hoje está bastante dependente do executivo de Xi Jinping para o fornecimento de tecnologia de ponta e para a venda de matérias-primas.

“A China percebeu que a Rússia lhe podia ser útil numa construção de uma ordem contra a ordem dos Estados Unidos e apoiou Moscovo. É a china que permite a sobrevivência da Rússia. Geopoliticamente, politicamente, economicamente, a Rússia tornou-se dependente da China”, acrescenta Diana Soller.

O presidente russo, Vladimir Putin, e o líder chinês, Xi Jinping, apertam as mãos durante uma reunião em Pequim, a 18 de outubro (Sergei Guneyev/AFP/Getty Images)

A guerra fechou várias portas à Rússia, mas acabou por abrir outras. Com o passar do tempo, os países que não se sentem ameaçados pelo poder militar russo intensificaram as suas relações comerciais com Moscovo, beneficiando de preços mais favoráveis na compra de matérias-primas. O caso mais conhecido é o da Índia, que aproveitou o limite máximo estabelecido 60 dólares por barril de petróleo imposto pelas sanções, para comprar petróleo abaixo do preço de mercado.

Brasil e a África do Sul, parceiros da Rússia nos BRICS, também optaram por uma “neutralidade pró-russa”. Mas a posição mostrou ser popular e, em 2024, Egito, Etiópia, Irão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos entraram na organização. O grupo não tem uma missão definida ou regras estipuladas a que os seus membros devem obedecer. O único fator que une estes países é o desafio à ordem liberal internacional. Este facto faz com que vários analistas levantem dúvidas em relação à capacidade do grupo se manter a longo prazo.

“Os BRICS são uma ideia em desenvolvimento. Neste momento, não têm deveres normativos e não sabemos no que se vão tornar. Estamos a lidar com regimes políticos completamente diferentes uns dos outros. A longo prazo isso poderá criar problemas, porque não há muita coisa que os mantenham unidos”, explica Diana Soller.

Outros países como o Irão ou a Coreia do Norte foram bem mais longe e estenderam o seu apoio ao campo militar, fornecendo tecnologias militares como drones kamikazes ou as tão necessárias munições de 155 milímetros. De acordo com os serviços secretos sul-coreanos, o regime de Kim Jong-un enviou mais de 6.700 contentores de munições para a Rússia, com mais de três milhões de cartuchos de artilharia.

“O Ocidente esperava que houvesse um clamor contra a ideia de violação de soberania de um Estado e contou com isso para tentar isolar a Rússia. Acreditou que isso levaria a uma desistência da guerra na Ucrânia, mas isso acabou por não acontecer”, frisa Diana Soller.

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