«O mais exigente foi replicar a solidão»: Maradona, a série televisiva

2 nov 2021, 09:04
Maradona: sonho bendito

A história de D10S chega à televisão e o Maisfutebol entrevista os três atores que lhe vestem a pele e a alma. «Maradona uma vez, Maradona para sempre»

A homilia começa assim.

- «Amanhã diz ao rapaz para trazer o documento de identificação.»

- «Para comprovarmos a data de nascimento dele, mister?»

- «Não, para sabermos se nasceu neste planeta.»

Primeira cena do biopic biográfico sobre Diego Armando Maradona, «Sonho Bendito», estreado a 29 de outubro na Amazon Prime.

A data não é despicienda. O dia assinala a véspera do primeiro aniversário celebrado por D10S nos céus da eternidade. De qualquer dos modos, a missão de Diego continua a pairar sobre nós. Podemos já não escutar a sua voz, mas o eco é inconfundível.

Na série televisiva sobre o Pelusa, três atores têm o privilégio e a insustentável responsabilidade de lhe vestir a pele.

Nicolas Goldsmith, Nazareno Casero e Juan Palomino, os três Maradonas (FOTO: Amazon Prime)

Nazareno Casero é o Diego adolescente, prodígio no Argentinos Juniors, pré-aventura europeia.

Nicolas Goldsmith é o Maradona de Barcelona, o conquistador de Nápoles e do Mundial de 1986. É o barrilete cósmico que deixa Victor Hugo Morales a perguntar num grito ‘de qué planeta viniste?

Juan Palomino vive os dias de negrume e decadência, representa o ídolo caído em desgraça, desorientado.

Maradona. Não é só um nome, não é só um homem. Maradona. Maradona é a palavra da ignição hipnótica, é a produção em massa da fábrica de nostalgia.

O Maisfutebol teve acesso exclusivo em Portugal aos três atores argentinos que são Maradona dentro da caixinha mágica. Nazareno, Nicolas e Juan, Maradonas.

A homilia sabe-se de cor. Pelo menos até à surpresa.

Fevereiro de 1983, Mediterrâneo. Diego recupera de hepatite B e está a bordo de um iate. Começara a saborear o lado dionisíaco da vida. Há música, muitas mulheres, copos de champanhe. E há gritos vindos do mar.

Maradona atira-se à água, com um amigo, e salva a vida a dois náufragos. No dia seguinte, as manchetes dos jornais espanhóis são impiedosas.

- «’Jorge [Cyterszpiller, empresário], f******** outra vez!’»

- «’Que ha pasado, Diego?»

- «’Salvei a vida a duas pessoas e os c****** criticam-me, escrevem que me atirei de um iate cheio de música e mulheres!’»

DIEGO, O ADOLESCENTE GENIAL

Qual é a preparação que um ator faz para representar um dos deuses do futebol?

Nicolas Goldsmith, 35 anos, conta o tipo de trabalho realizado ao longo de meses para procurar estar à altura do desafio.

«Treinei muito, ao mesmo tempo tinha de comer quatro vezes ao dia para ganhar peso. Tive de treinar a força e a pontaria da perna esquerda, obviamente, porque o Nazareno e eu somos destros. Isso foi uma grande parte do trabalho. O resto foi ter a capacidade de gerir os nervos e a pressão», responde, ele que tem um episódio curioso para relatar sobre Diego.

«Estive com ele só uma vez», conta ao nosso jornal. «Conheci-o numa pista de dança e os movimentos eram iguaizinhos aos que fazia em campo. Fantástico. Eu era pequeno e ele apareceu para uma festa solidária na inauguração de um teatro. Fui testemunha desse magnetismo que ele tinha, desse carisma. Foi muito bonito.»

Nicolas filma as primeiras cenas de Maradona num campo de futebol. O aparecimento no Argentinos Juniors, a estreia na seleção, o afastamento do Mundial de 1978, a transferência para o Boca Juniors em 1981.

«Este projeto chegou para mudar a minha vida. E vai estar comigo para sempre. É um orgulho fazer parte de algo tão imenso. Estou preparado para o que vem.»

E qual terá sido a maior dificuldade encontrada ao longo do processo de gravação? Nicolas sorri e diz que o mais exigente, «o impossível», é «imitar Maradona num campo de futebol».

As cenas de futebol foram as mais difíceis. Aproximar-me do que o Diego fazia nos relvados, tentar imitá-lo, era impossível. Tivemos uma grande equipa por trás, atenta a cada detalhe, a cada movimento. Há momentos nessas cenas de futebol em que sentimos estar a vivê-las pela primeira vez, mas foi duríssimo.»

Maradona e um batalhão de jornalistas, uma imagem clássica (FOTO: Amazon Prime)

 

DIEGO ARMANDO MARADONA, O DONO DO MUNDO

Barcelona, Nápoles, México-86, queda no mundo das drogas, derrota na final do Itália-90, Sevilha sem salero, Boca Juniors e o controlo anti-doping positivo no Mundial de 1994.

Do topo ao fundo do poço, interpretação de Nazareno Casero, curiosamente também ele um ator de 35 anos.

«A figura é tão grande que é preciso ter muita confiança no trabalho do realizador para estar à altura. Maradona uma vez, Maradona para sempre. É uma personagem muito forte e terei de me reinventar para continuar a trabalhar. Este é um trabalho que muda uma vida», diz na conversa com o Maisfutebol.

Nazareno tem também uma história pessoal para contar sobre Diego Armando Maradona. E esta passa-se na altitude dos Andes, 3500 metros acima do nível médio do mar.

Joguei uma vez futebol com o Maradona, é verdade. Jogámos contra o Evo Morales, o presidente da Bolívia, em La Paz. A premissa era ‘Joga-se Onde se Vive’, uma ação contra a FIFA, e eu tive a sorte de integrar essa equipa.»

O ator argentino brinca e diz que essa equipa tem um recorde ainda entre mãos. «Fomos a última seleção a golear a Bolívia em La Paz, 3-7 (risos). Eu fui o marcador direto do Marco Etcheverry [glória boliviana], sou um jogador de cortes e não um criador.»

Nazareno Casero também nos confessa qual a maior dificuldade encontrada a interpretar Diego Armando.

«O mais difícil foi encontrar a quantidade de ira, de graça, de picardia, que o Maradona tinha e que sabia aplicar como ninguém. Replicar isso e convencer o espetador é difícil.»

MARADONA, NA DOENÇA E NA DECADÊNCIA

Juan Palomino, 60 anos, é um homem de gestos cuidados. Bom com as palavras. Não tem um encontro privado com Maradona para relatar, mas tem o peso de partilhar com D10S o ano de nascimento e a magia geracional.

A tal fábrica de nostalgia, uma produção industrial de memórias. «A minha intenção foi vasculhar as origens do Diego, entender a personagem e explicá-la às gerações mais jovens», explica o ator, responsável por mostrar a fase pós-futebolista profissional.

Há uma cena marcante, ocorrida em 2005. Diego acorda numa praia uruguaia, apertado por uma ressaca insuportável e gordo, muito gordo. É o sofrimento físico no seu estado agudo, um homem à beira do fim.

«O Diego foi muito mais do que os últimos anos da sua vida», adverte Juan Palomino. «O seu silêncio dos últimos anos não é tudo. Entender Maradona e as circunstâncias históricas em que viveu é o que mais me interessa. Há um grande orgulho por poder representar na televisão uma grande parte da nossa identidade enquanto povo.»

Palomino descreve Maradona de uma forma fascinante. Considera-o um homem capaz de gestos nobres e ações miseráveis, intercalados por escassos minutos. Um complexo de contradições.

Nunca o conheci pessoalmente, mas vivi tudo o que ele deu ao nosso país através do futebol. A presença na Bolívia para afrontar a FIFA, o Nápoles sulista a afrontar o poderoso norte italiano, o Maradona alimentava-se desse tipo de gestos.»

A vida deste ator terá «um antes e um depois desta série», certo de que Diego é maior do que a própria vida, do que o universo.

«É uma figura tão peculiar, tão amada, tão odiada, tão criticada, irreverente, rebelde, com profundas convicções e contradições. É Diego.»

Juan Palomino despede-se com uma reflexão pungente. O mais difícil de ser Diego?

«O mais exigente para mim foi replicar-lhe a solidão. O silêncio, a angústia, esses tempos mais duros vividos por Maradona. Além disso, o desafio de ganhar peso. Tive de aumentar 20 quilos. A construção da memória, da luta, dos conflitos, esse inferno.»

Maradona: Sonho Bendito, a série de televisão. Já em exibição em 240 países. D10S omnipotente e omnipresente.

VÍDEO: o trailer de «Maradona: Sonho Bendito»

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