Falar da guerra às crianças: sim ou não?

27 fev 2022, 09:53

Com o conflito na Ucrânia a dominar o momento, muitos pais não sabem o que dizer às crianças. Fugir ao assunto não é a solução. A CNN Portugal falou com um psicólogo e deixa-lhe um guia do que se deve ter em atenção quando se explica a situação aos mais novos

A Europa está a viver um momento de conflito e é errado pensar que as crianças não se apercebem disso. Por isso mesmo, ignorar o tema não é a melhor solução. Tiago Pereira, psicólogo e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses, falou com a CNN Portugal e deixa um conjunto de ideias e formas de como se pode, e deve, lidar com este tema tão sensível.

Para Tiago Pereira não há dúvidas de que "este é um assunto para abordar". E a explicação é simples:  "Eu não sou muito de gostar de sins e nãos, mas neste caso, devo dizer à cabeça que este é um assunto que não devemos ignorar. É um assunto que existe e nós devemos falar sobre ele e intencionalizar a conversa sobre ele.

Porque é que não devemos esconder?

"Na sociedade em que vivemos hoje as crianças, sejam elas mais pequenas, sejam já um bocadinho mais velhas, acedem sob várias formas à informação e, portanto, podem desenvolver potenciais medos, ansiedades e sofrimentos. E é muito importante que sejamos nós, adultos de referência - pais, mães, outros familiares, cuidadores ou mesmo professores nas escolas -, adultos em quem as crianças confiam, a comunicar esta informação", diz o psicólogo, aconselhando: "Deve-se abordar e intencionalizar este assunto".

E este não será um tema para uma conversa só.

"Não se deve abordar numa ideia de inicio e fim, ou seja, de chegarmos ao final e já não falarmos mais sobre o assunto. Ao mesmo tempo, devemos sempre abrir canais de comunicação. Ou seja, basicamente dizer às nossas crianças que se elas tiverem alguma duvida, alguma preocupação... que aqui estaremos para responder a essa dúvida, para falar quando elas quiserem".

Como devemos começar?

O passo inicial, segundo Tiago Pereira, deve ser perceber o que a criança já sabe sobre a guerra.

"Primeiro tentar perceber o que as crianças sabem sobre a situação. Ou seja, qual é a informação que têm e o que estão a sentir relativamente a essa informação. Porque isso nos vai ajudar, de certa forma, a poder complementar algumas informações, eventualmente clarificar, dar sentido... às informações que são importantes para as crianças. Esse deve ser, claramente, um primeiro objetivo"

"Um segundo objetivo deve ser nessa lógica de nós, de facto, provocarmos essa conversa e definirmos um determinado rumo que possa ser no sentido de validarmos aquilo que a criança possa estar a sentir relativamente à situação. Não há nada, de certa forma, mais negativo do que desvalorizar aquilo que a criança está a sentir. Quando isso acontece vai fazer com ela ainda se feche mais e tenha menos possibilidades de abertura".

Além da idade, o que se deve ter em consideração?

Tiago Pereira considera que, além da idade, há outras dimensões igualmente importantes na abordagem ao tema e que o adultos devem ter em consideração: "As dimensões mais emocionais, de personalidade e as dimensões de experiência".

No entanto, admite, a idade é sempre um dado relevante. "Quando conversamos com uma criança de quatro anos é diferente de quando falamos com uma de sete ou oito, ou até de nove ou dez". Mas mas não é apenas a idade, diz, que deve ser tida em conta na forma de comunicar.

"Conta a idade e o desenvolvimento cognitivo, a perceção que a criança possa ter da situação, mas conta também algumas dimensões de certa forma mais emocionais, de personalidade, se são crianças mais inseguras, com mais receios. Aí provavelmente teremos de abordar este assunto de determinada forma. A outras crianças a quem isto não aconteça tanto já poderemos abordar de outra forma".

Outro aspeto que o psicólogo considera importante ter em atenção é a relação que as crianças têm com este tipo de assunto. Ou seja, se estão mais ou menos habituadas a lidar com o tema. "Há um ponto muito importante, que é a experiência que as crianças têm, prévia, sobre esta situação. Há muitas crianças em Portugal que têm amigos ou colegas na escola que são russas ou ucranianas. Que podem conhecer até no clube de futebol. Incluindo crianças na própria sala de aula que vieram de outros países e que já passaram por situações de guerra. Temos de ter cuidado com o tipo de experiência que existe, para adequar a informação que depois é transmitida e a forma como comunicamos".

Devemos fugir a alguma verdade?

A verdade do que conta é essencial, avisa o psicólogo e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

"Devemos sempre responder às perguntas que nos são feitas com verdade. Às vezes há esta pergunta (por parte dos adultos): devemos fugir a alguma verdade? Dizer que a situação não é assim tão preocupante, mesmo quando a situação é preocupante? Não. O que de facto dá algum controlo, previsibilidade e segurança às crianças é que nós possamos dizer a verdade. E muitas vezes, a verdade é que estamos, de facto, preocupados com a situação. Ou, às vezes, a verdade até é o pai ou a mãe ou o professor dizer ‘não sabemos, não sei responder-te a essa questão, mas vou tentar ter informação para te falar sobre isso’. A verdade é muito importante porque dá uma sensação de controlo".

Outro ponto essencial está na escolha do momento da conversa: "Também creio ser relevante que tenhamos presente o seguinte: uma coisa é dizer a verdade com algum controlo emocional, outra coisa é dizer a verdade sem controlo emocional. Também devemos fazer uma avaliação. Uma coisa é nós dizermos, 'sim, a mãe ou o pai estão preocupados com a situação, porque não esperávamos e há pessoas a sofrer desta forma'; outra coisa é dizer isso alterando completamente o comportamento. Isso pode gerar uma maior ansiedade na criança".

Deve-se dar muitas explicações? 

Para que elas possam entender melhor a situação, deverá ser feito um enquadramento do que levou a ela.

"Um ponto que também pode ser relevante para a comunicação com as crianças é a tentativa da explicação do propósito associado à situação que esta a acontecer. É evidente que, falando nós entre adultos, há pouca racionalidade associada a uma guerra, e em particular a esta guerra, que ninguém queria, ninguém desejava, ninguém esperava. Mas em todo o caso, há um conjunto de situações que aconteceram e que conduziram a que a guerra acontecesse".

"Por mais irracional que seja, numa linguagem adaptada, deve ser descrito, porque faz com que esta situação de guerra não seja generalizada para todas a situações. Se dissermos só que é um absurdo irrealista que não devia estar a acontecer, isso pode fazer com que as crianças possam sentir que, se não há nada que justifique o que está a acontecer, então também pode acontecer aqui amanhã".

É correto falar do lado bom e do mau?

A resolução não violenta dos conflitos é sempre possível e Tiago Pereira defende que se deve, de um certo ponto de vista, "dar-se esperança relativamente a esta situação".

Além disso, por exemplo quando as crianças conhecem alguém "envolvido", seja por ter família na Ucrânia, ou outro motivo, "isso pode ajudar a dar um sentido e um propósito a esta situação.

"Mas há outras situações: crianças que escrevem cartas, outras que fazem desenhos para uma criança que possa estar naquela situação. Tudo isto é acrescentar um certo significado e um propósito que é importante. Também devemos destacar que há várias formas de chegarmos à paz. Ou seja, não é expectável que esta guerra dure para sempre e que essa paz não depende de uma ideia, quase polarizada, que é um esmagar o outro. E explicar que há muita gente no mundo como nós, que não queriam que a guerra acontecesse e que vão lutar para tentar fazer acordos".

Tiago Pereira deixa um alerta: fugir ao estereótipo. "Muitas vezes tendemos a comunicar com as crianças com uma ideia de que há um lado que é o bom e há um lado que é o mau e há um risco associado a uma comunicação feita dessa forma. Não será, do meu ponto de vista, a melhor forma de comunicarmos com as crianças. O que isso vai provocar é polarizar os lados e, de certa forma, incentivar ao conflito entre duas partes".

"De um e do outro lado, certamente haverá pessoas boas e pessoas menos boas. Há uma razão, com a qual não concordamos, para isto estar a acontecer. A ideia de que os russos são maus pode ser amplamente penalizador até para a população russa, mesmo a que não se identifica com o que está acontecer. Criar dois pólos reforça a situação bélica para uma criança".

Ver notícias é prejudicial?

Se há situações em que crianças mais crescidas estão habituadas a ver notícias, o psicólogo, considera que estas não "devem ser privadas disso". Devem sim ser "monitorizadas".

No caso de crianças mais pequenas, o entendimento de Tiago Pereira é diferente: "Sinceramente não vejo grande vantagem em estarmos a expor uma criança com quatro/cinco anos àquele tipo de noticias. Devo mesmo dizer que o malefício potencial é muito superior ao beneficio potencial para uma criança com essas idades. Ficará exposta a um determinado tipo de imagens que ela não consegue compreender".

Todavia, e porque às vezes é preciso concretizar, há diferentes formas de o fazer. É importante trazer alguma concretização. Pode ser, por exemplo, ir a uma mapa e mostrar quais são os países e onde é que são. Às vezes, através de um jogo. Ou ainda recorrer a alguns filmes que tratam estas problemáticas".

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