Extorsão, festas com cocaína e "visitas conjugais intermináveis". O que escondia a prisão onde morreu Rendeiro

13 mai 2022, 14:00

Relatório de comissão de inquérito, na África de Sul, dá conta de vários episódios de corrupção na prisão de Westville, onde João Rendeiro foi encontrado morto. Ao mesmo tempo, as denúncias de abusos, tráfico de droga e violência multiplicaram-se ao longo dos últimos anos

Sobrelotação, "nepotismo", contrabando de telemóveis e de droga com ajuda dos guardas prisionais, fraude na assistência médica aos prisioneiros e troca de favores entre guardas e detidos. Era esta, de acordo com uma auditoria aos serviços prisionais da África do Sul, a “norma” na prisão de Westville, onde o antigo presidente do Banco Privado Português foi encontrado morto esta sexta-feira na cela, enquanto aguardava pelo processo de extradição para Portugal.

Neste estabelecimento prisional, em Durban, onde João Rendeiro se encontrava, o dia a dia era como uma bomba relógio. Segundo os resultados de uma comissão de inquérito criada para investigar alegados crimes em várias prisões do país, incluindo a de Westville,  publicados em 2005, a “corrupção, extorsão e abusos eram frequentes”. No caso específico da prisão de Westville, a extorsão de dinheiro de prisioneiros ou ex-prisioneiros por guardas era até “predominante”. “Tal extorsão poderia ser para fins de obtenção de uma diminuição da pena, conversão de sentenças para períodos de supervisão correcional, ou para o simples propósito de conceder a um prisioneiro privilégios aos quais ele normalmente não teria direito”. De acordo com o relatório publicado, era frequente os guardas extorquirem também dinheiro às famílias do detido para garantirem a sua segurança.

Imagem de satélite da prisão de Westville

A comissão de inquérito, ordenada pelo antigo presidente Thabo Mbeki, e que investigou crimes nas prisões sul-africanas durante quatro anos, encontrou provas de que os reclusos eram ajudados pelos guardas a saírem e a regressarem ao complexo. "Isto [sair da prisão] estava a ser feito com total conhecimento e assistência dos guardas. Um recluso desfrutou de intermináveis ​​visitas conjugais à sua esposa, outro permaneceu em vários hotéis da cidade enquanto ainda estava preso e também saiu da prisão com um guarda para comprar um motor para ser instalado no veículo do mesmo guarda prisional”.

Alguns guardas prisionais de Westville foram também acusados por esta comissão de inquérito de agirem “de forma imprópria” na autorização e pagamento de encomendas a determinados fornecedores farmacêuticos. Os auditores constataram que o sistema desatualizado atualmente usado pelo Departamento de Serviços Correcionais sul-africanos permitia “a possibilidade de negligência grosseira e má conduta dentro da logística da Prisão de Westville”. “Os controlos são fracos e as ligações entre documentação e transações de medicamentos são virtualmente inexistentes” - factos que “aumentam a oportunidade de fraudes”, de acordo com o relatório publicado em 2005.

Também segundo o documento, consultado pela CNN Portugal, há uma série de razões que os investigadores consideraram estar na origem de “comportamentos corruptos ao nível dos serviços prisionais”, nomeadamente a “falta de respeito” entre guardas e prisioneiros sobre regras e regulamentos dentro da prisão. Há também informação de os “prisioneiros ameaçarem os agentes de autoridade" que não os ajudam a "manipular o sistema” dentro da prisão. O relatório afirma também que “há pressão social entre trabalhadores da prisão para participar em atividades corruptas”.

 

 

 

O relatório foi publicado em 2005, mas a verdade é que os atos de violência e denúncias de tráfico de droga dentro das instalações têm-se multiplicado ao longo dos anos. Recentemente, têm existido alguns relatos de motins de prisioneiros, e em 2016, por exemplo, três prisioneiros, pelo menos, foram esfaqueados até a morte e quase 30 ficaram feridos durante um combate numa das secções da prisão. 

A capacidade de manutenção de segurança na prisão chegou mesmo a ser colocada em causa por várias organizações não governamentais depois de, em 2021, dois guardas terem sido atacados por quatro reclusos durante uma prova de exercício físico. Os dois agentes de autoridade foram esfaqueados na cabeça e os presos acabaram por sofrer “várias lesões corporais”.

 

Festas de cocaína e contrabando de telemóveis

Por outro lado, em 2019, começaram a circular nas redes sociais vídeos que mostram como os prisioneiros em Westville conseguem ter acesso a drogas livremente dentro do estabelecimento e como o abuso de guardas contra detidos era frequente. Um dos vídeos é referido pelo jornal sul-africano Sunday Times como “uma festa de cocaína em que é possível observar um prisioneiro a cheirar droga ao mesmo tempo que ouve música e dança”. Outro, de acordo com o mesmo jornal, “revela guardas prisionais a dar armas a reclusos e a instigá-los a lutarem uns contra os outros”.

 

 

Depois desses vídeos terem vindo a público, o Departamento de Serviços Correcionais da África do Sul confirmou que recebeu um relatório preliminar de funcionários da prisão após uma investigação interna lançada pelo ministro da Justiça aos factos denunciados nos vídeos. O Departamento confirmou também que o homem que é visto a cheirar uma substância que se acredita ser cocaína no vídeo foi identificado como um condenado por duplo homicídio.

No mesmo ano em que os vídeos foram publicados, o ministro de Justiça e serviços correcionais Ronald Lamola juntou-se à polícia para realizar uma busca na prisão de Westville. Durante essa operação, as autoridades descobriram que, com a ajuda de guardas prisionais, os reclusos conseguiam receber de fora e esconder telemóveis dentro das lâmpadas nas celas.

João Rendeiro, que foi detido na cidade de Durban depois de andar fugido às autoridades portuguesas no final de 2021, divida a cela com cerca de 50 reclusos e já se tinha queixado de ter sido ameaçado por alguns deles, nomeadamente depois de saberem que antigo banqueiro tinha muito dinheiro. No entanto, durante o tempo que esteve na prisão de Westville, Rendeiro rejeitou pelo menos uma oferta do tribunal para ter uma cela sozinho na prisão sul-africa, porque, segundo contou a advogada dele em janeiro deste ano, “não queria ficar isolado”.

A prisão de Westville foi construída para acomodar 6023 reclusos, mas nos últimos vinte anos tem entrado em absoluta sobrelotação. Segundo dados do Departamento de Serviços Correcionais daquele país, estima-se que haja cerca de 14 mil detidos na cadeia - ou seja um excesso de prisioneiros que equivale a 140%.

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