Militares russos a entrar em cabines de voto? "Pedimos desculpa por publicar informação que não conseguimos verificar a 100%"

18 mar, 19:09
Polícia fiscaliza a votação nas presidenciais russas (Dmitri Lovetsky/AP)
  • Creating a European community that can discuss relevant EU topics, even if the conversation started with a meme.

Não é de agora nem vai parar a campanha russa de desinformação sobre a guerra na Ucrânia – desta vez no contexto dos três dias de eleições presidenciais na Rússia que, sem surpresa, deram a vitória a Vladimir Putin. Desta vez, pela primeira vez, o presidente russo ganhou com os votos dos ucranianos que vivem há mais de dois anos sob ocupação russa no leste do país, onde segundo vários relatos de residentes muitos foram forçados a votar "na mira de armas"

O vídeo tem 14 segundos e começou a ser partilhado no Telegram no sábado, ao segundo dos três dias de eleições presidenciais na Rússia que, sem surpresas, deram a vitória a Vladimir Putin. Nele, vê-se um homem fardado, de cara tapada, a entrar numa cabine de voto e a espreitar por cima do ombro de um eleitor em pleno voto, numa aparente tentativa de garantir que punha a cruz no “candidato certo” de entre os quatro que constavam dos boletins. 

O vídeo foi partilhado em inúmeros canais da mais popular rede social na Rússia, incluindo no grupo “Hora de votar, agora SHHH” (tradução livre, em que o SHHH funciona como acrónimo da Comissão Central Eleitoral Russa). Nesse grupo, o clip surgia acompanhado de uma descrição das imagens, à qual foi posteriormente acrescentada a nota: “Anteriormente publicámos um vídeo de um agente das forças de segurança a controlar uma cabine de voto com um eleitor lá dentro. Não podemos confirmar [a sua veracidade], mas também não podemos refutar. Talvez seja um vídeo encenado, talvez não. De qualquer forma, pedimos desculpa por publicar informação que não conseguimos verificar a 100%”.

É possível que o vídeo integre a campanha de desinformação que marcou as mais recentes eleições no país, diz à CNN um jornalista de investigação russo que vive exilado desde o início da guerra na Ucrânia. “É importante no contexto de um evidente esforço concertado para semear uma quantidade absurda de 'fakes' nos media russos”, adianta sob anonimato por questões de segurança. “Alguns media independentes usaram esse vídeo, portanto parece ser uma campanha para os desacreditar – o vídeo é o isco para depois ‘expor’ a falsidade e dizer ‘Veem, estes tipos acreditam em qualquer coisa’.” 

Nesta segunda-feira, uma página satírica de memes no Instagram, autointitulada Diretório-Geral de Memes, com uma bandeira idêntica à da UE mas em que as estrelas fomam um coração, publicou o mesmo vídeo com legendas que punham o agente russo a entrar em cada cabine de voto para perguntar aos ocupantes se tinham um lápis disponível. No seu website, o DG MEME define como um dos seus objetivos "criar uma comunidade europeia que possa discutir tópicos relevantes para a UE, mesmo que a conversa comece com um meme."

Fictício ou não, o vídeo é representativo do que organizações de direitos humanos denunciaram como uma campanha de “repressão e intimidação” durante as eleições – quer na federação russa, quer nos territórios ocupados da Ucrânia. (“As imagens reais que vais ver nas redes de soldados com caixas de votos provavelmente vêm da Ucrânia ocupada”, adianta a mesma fonte.)

De acordo com a organização OVD, pelo menos 74 pessoas foram detidas em várias partes da Rússia no domingo, último dia da votação, a juntar a números indeterminados ao longo de sexta e de sábado. A CNN contactou a organização para apurar que tipo de queixas e de dados compilou sobre potenciais violações eleitorais, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

Citada pela Reuters, a organização Golos ("Voz") – descrita pela agência de notícias como “o único órgão de fiscalização eleitoral independente das autoridades da Rússia” – denunciou uma série de outras violações, a começar precisamente por denúncias de agentes das autoridades a espreitar por cima dos ombros de eleitores enquanto votavam.

Em comunicado, a organização fundada em 2000 (no mesmo ano em que Putin chegou à presidência russa pela primeira vez) cita a presença de agentes da polícia em várias estações de voto, e enumera algumas denúncias concretas – como um caso ocorrido na região de Moscovo, em que agentes exigiram a um funcionário eleitoral que abrisse uma urna selada e lhes entregasse os boletins, e um outro, também na capital, em que um agente “arrancou o boletim de voto preenchido da mão de uma eleitora para ver em quem votou”. 

A Reuters não conseguiu verificar nenhum dos incidentes descritos de forma independente. Na rede social X, um site de notícias independente partilhou um vídeo a mostrar um incidente gravado por um observador eleitoral na estação de voto n.º 1.136 do distrito de Krasnoselsky, em São Petersburgo, em que um eleitor é levado algemado por agentes das autoridades após uma acesa troca de palavras sobre o secretismo do seu voto. A OVD partilhou o mesmo vídeo nas redes sociais. ("Este, ao contrário do outro, é real", assegurou à CNN o jornalista russo citado no início deste artigo.)

Mais visíveis e comprováveis foram os protestos que encheram manchetes em todo o mundo ao longo dos três dias de votação, com ataques a estações de voto com cocktails molotov e tinta verde derramada dentro de urnas. Ao todo, anunciou a chefe da comissão eleitoral, 29 estações de voto em 20 regiões russas foram atacadas por “canalhas” que, avisou Ella Pamfilova, enfrentam cinco anos de prisão. O ex-presidente Dmitri Medvedev – que ocupou o cargo durante o mandato que Putin não pôde cumprir consecutivamente (tendo Putin como seu primeiro-ministro) – adiantou que os detidos podem vir a ser acusados de traição à pátria.

A partir da Ucrânia ocupada, chegaram relatos ainda piores, de guardas armados a andarem de porta em porta nas regiões de Kherson, Donetsk, Luhansk e Zaporizhzhia, ocupadas desde a invasão em larga escala em 2022, e também na península da Crimeia, que a Rússia ocupa há uma década. Citada pelo Washington Post, Yevheniia Hliebova denunciou uma “brigada de oficiais eleitorais [russos] acompanhada por um soldado armado” a andarem de porta em porta na aldeia de Novomykolaivka, em Zaporizhzhia. 

“Ele levava uma arma, portanto era uma ameaça, não verbal, mas na verdade era uma ameaça de violência” durante umas “eleições sob a mira de armas de fogo”, descreveu Yevheniia – ecoando uma expressão usada pelo Centro de Resistência Nacional da Ucrânia num relatório recente, no qual destacava que “o voto sob a mira de armas é mais um crime russo contra civis”.

Segundo o grupo, citando fontes anónimas, milhares de elementos da Guarda Nacional russa, da polícia e seguranças privados foram enviados para proteger os locais de voto nas regiões ucranianas sob ocupação e “as comissões eleitorais móveis” criadas em zonas de bombardeamentos mais intensos. Ao Washington Post, um ex-residente de Kherson disse que a sobrinha, que ainda vive na região, foi abordada numa operação porta-a-porta por uma mulher acompanhada de dois soldados russos. 

Outras fontes nas áreas ocupadas, citadas pelo jornal Kyiv Independent, denunciaram sob anonimato cenários semelhantes, de soldados das forças da ocupação a reunir grupos de ucranianos para os obrigar a ir votar. Citada pela Al-Jazeera, uma ex-residente de Mariupol, em Donetsk, disse que quem continua a viver ali foi “forçado a submeter-se ao regime [de Putin] e fingir que apoia tudo o que está a acontecer, por temer pela sua própria vida”. A mesma fonte disse que o voto não foi secreto – com Ivan Fedorov, chefe da administração militar regional de Zaporizhzhia, a equiparar os esforços de mobilização para estas eleições russas a uma série televisiva de ficção e a escrever no Telegram que as forças russas continuam a “aterrorizar” os ucranianos do leste para os convencer de que vão ficar para sempre nos territórios que ocupam há mais de dois anos.

Citados pelo New York Times, analistas políticos e autoridades ucranianas dizem que, nos territórios ocupados, as presidenciais russas foram, mais do que outro sufrágio decidido à partida a favor de Putin, uma forma de Moscovo avançar na guerra em duas frentes não armadas: perpetuar a ocupação e identificar dissidentes. Em comunicados oficiais, as autoridades russas não fizeram referência às dezenas de relatos de residentes locais e de publicações nas redes sociais sobre a interferência de militares na votação no leste da Ucrânia. Mas, segundo o jornal, confirmaram e justificaram a presença de tropas no processo como “necessária” para proteger o voto e a recolha das urnas.

Esta segunda-feira, a Amnistia Internacional (AI) publicou um balanço dos 10 anos da ocupação e “repressão” da Crimeia e um relatório sobre a perseguição e “supressão” das identidades da minoria tártara e dos ucranianos na península desde 2014. Contactada pela CNN, a AI adiantou que não está previsto, para já, nenhum tipo de publicação sobre os relatos de violações durante as presidenciais e que, caso venha a ser feita uma investigação ao período eleitoral e pós-eleitoral, é provável que a publicação dos resultados demore algum tempo.

Para os próximos dias, a organização tem planeada a publicação de material nas redes sobre os últimos 24 anos em que Putin esteve no poder. Com a totalidade dos votos contados, e sob a contestação em uníssono do Ocidente quanto à falta de transparência, justiça e liberdade – antes, durante e depois das eleições – a comissão eleitoral russa anunciou hoje uma participação “recorde” de 77,5% e a reeleição de Putin com 87,3% dos votos. Aos 71 anos, vai ficar na presidência russa até, pelo menos, 2030, altura em que ficará mais perto de bater um outro recorde até agora detido por Estaline – o de líder há mais tempo no poder na Rússia nos últimos 200 anos.

Europa

Mais Europa

Patrocinados