Portugal tem a terceira maior diferença da OCDE entre os impostos aplicados aos indivíduos que têm rendimentos de capitais e aqueles que recebem salários. Fiscalistas "culpam" altas taxas de IRS
Quem tem rendimentos de capital beneficia, regra geral, de um enquadramento fiscal mais favorável do que quem recebe salários. Portugal não foge a essa tendência e é mesmo o terceiro país da OCDE onde a diferença de tratamento entre esses tipos de rendimentos é maior, isto é, onde o capital é mais favorecido em detrimento do trabalho. As altas taxas de IRS explicam esse cenário, dizem os fiscalistas ouvidos pelo ECO, que avisam que essa dinâmica pode estar a travar a melhoria dos salários.
“Os Governos aplicam quase sempre enquadramentos fiscais mais favoráveis aos indivíduos que têm rendimentos de capital do que aos que têm rendimentos de trabalho”, identifica a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), numa nota recente dedicada a essa diferença e que olha em particular para os contribuintes com rendimentos mais elevados.
De acordo com a organização liderada por Mathias Cormann, ainda prevalece, portanto, a visão de que o rendimento de capital deve ser taxado de forma mais favorável. Isto para evitar a deslocação de capitais para o exterior, detalha o fiscalista João Espanha, da Espanha e Associados.
Assim, olhando apenas para os impostos aplicados diretamente aos indivíduos com rendimentos elevados (isto é, aqueles que recebem cinco vezes o salário médio), conclui-se que, na maioria dos países da OCDE, os rendimentos de capital e mais-valias beneficiam de taxas mais favoráveis do que os ordenados.
Portugal não é exceção à regra. Por cá, a diferença entre os impostos e contribuições sociais aplicados ao capital e aos salários fica pouco abaixo dos 30 pontos percentuais.
À frente de Portugal, só aparecem dois países: somente a Grécia e a Letónia estão à frente e favorecem, em termos fiscais, mais o capital do que os rendimentos do trabalho, com diferenças, respetivamente, acima de 35 pontos percentuais e 30 pontos percentuais (ver gráfico abaixo).
Os fiscalistas ouvidos pelo ECO frisam que esse cenário não resulta tanto das taxas que se aplicam aos rendimentos de capital serem baixas, mas, antes, é fruto das taxas de IRS serem elevadas, e porque estas são aplicadas a escalões “demasiados baixos”.
“O caso português pode ser um dos casos onde esta análise faz mais sentido, tendo em conta as elevadas taxas, progressivas, aplicáveis aos rendimentos do trabalho, não tanto por serem baixas aquelas que incidem sobre os rendimentos de capital, em comparação com a situação existentes noutros países, mas mais por serem, no caso dos rendimentos de trabalho, demasiadamente altas e serem aplicáveis sobre escalões demasiadamente baixos”, sublinha Rogério Fernandes Ferreira, fiscalista na RFF Advogados e ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
João Espanha concorda e avança com números: “Pese embora a taxa de tributação autónoma dos rendimentos de capitais e mais-valias tenha vindo paulatinamente a ser aumentada, desde 1989, de 20% para 28%, essa taxa corresponde, no que respeita a rendimentos de trabalho e pensões, a um rendimento anual até 20.700 euros (aproximadamente). Ou seja, quem tem um salário de cerca de 2.000 euros por mês paga tanto de IRS como quem vive de rendimentos de capitais.”
O fiscalista aproveita, assim, para questionar “onde está a justiça”, quando quem trabalha paga mais 20% em impostos e contribuições do que quem vive de rendimentos.
“Poucos são os portugueses que pagam taxas efetivas na casa dos 45%, mas são estes que suportam 48% da receita total de IRS (os 5% mais ricos). Mas estes 5% começam nos agregados com rendimentos brutos na casa dos 40.000 euros por ano, ou seja, para o IRS já são ricos aqueles que auferem cerca de 2.900 euros por mês”, salienta João Espanha.
E acrescenta: “Quem tanto paga nem sequer são os mais ricos, como nos querem fazer crer: as taxas normais só se aplicam, essencialmente, aos rendimentos de trabalho e pensões, enquanto os rendimentos de capitais e mais-valias suportam, por regra, uma flat rate [taxa fixa] de 28%.”
A propósito, na nota divulgada recentemente, a OCDE identifica como potenciais justificações para a diferença entre o enquadramento fiscal do capital e o do salário a aplicação de taxas diferentes ou a isenção das contribuições sociais.
Esse fosso tende, contudo, a ser menor, se não considerarmos apenas os impostos pagos diretamente pelos indivíduos e incluirmos na análise as taxas a que estão obrigadas também as empresas que geram esses rendimentos.
A diferença, note-se, reduz-se, mas não desaparece: os rendimentos de capital continuam a sair beneficiados. Neste caso, Portugal ocupa o 11.º lugar da tabela, aparecendo, ainda assim, à frente de países como França, Luxemburgo e Itália.
Um travão aos salários
Esta análise da OCDE surge numa altura em que, segundo a própria, têm surgido estudos que apelam a uma redução da diferença em questão, a bem da igualdade. Isto já que os capitais tendem a estar concentrados nos indivíduos com mais riqueza. E para os fiscalistas ouvidos pelo ECO esse fosso pode mesmo estar a contribuir para a estagnação dos salários praticados no mercado de trabalho português.
“De um salário bruto de, por exemplo, 3.000 euros, o trabalhador recebe cerca de 1.900 euros, mas a empresa tem um custo global de cerca de 3.800 euros. Se receber 3.000 euros por mês em rendimentos de capitais, o imposto a pagar é de 840 euros, contra os cerca de 1.100 euros que paga o trabalhador/pensionista (considerando o IRS e a Segurança Social)”, calcula João Espanha, que defende que é preciso encurtar a diferença do tratamento fiscal dos tipos de rendimento em questão, baixando “drasticamente” a carga fiscal aplicada ao trabalho.
“A sangria de cérebros jovens de que padecemos é resultado do excesso de carga fiscal que incide sobre os salários, seja na perspetiva dos trabalhadores, seja na das empresas, que pagam muito para o trabalhador receber pouco. Os salários não sobem. E, quando sobem, o Estado leva tudo”, atira.
Na mesma linha, Rogério Fernandes Ferreira salienta que, como está, o enquadramento fiscal dos salários, é “altamente desmotivador” e exige às empresas um “esforço maior”, caso queiram oferecer vencimentos atrativos.
“É meu entendimento que para Portugal poder reter, principalmente, os jovens trabalhadores e os trabalhadores com experiência e mais qualificados, bem como para se tornar num país mais competitivo, em especial, dentro da União Europeia, deverá encurtar a diferença em questão, não tanto através do aumento da tributação sobre os rendimentos de capital, mas, principalmente, reduzindo as taxas de tributação aplicáveis e aumentando os escalões dos rendimentos tributáveis e sobre o trabalho”, considera. Deixa, contudo, um alerta: esse alívio deve ser feito “no momento apropriado”, considerando que também deve ser uma prioridade reduzir a dívida do país.
Por outro lado, Luís Leon, fiscalista e fundador da ILYA, alerta que as taxas aplicadas aos rendimentos de capital não devem ser agravadas, na medida que há o risco de se afetar por esta via a poupança dos portugueses, num país onde esses níveis são notoriamente baixos.
“Portugal tem um problema de falta de capital e percebemos que o capital que é investido em Portugal vem de trabalhadores. São os trabalhadores que, depois, do pagamento de impostos fazem algum investimento, que depois é ainda mais tributado. Se juntarmos a isto que Portugal tem um nível de poupança muito abaixo da média da União Europeia, que sentido faz agravarmos a tributação do capital? É assim que queremos incentivar a poupança e melhorar a produtividade das empresas?”, questiona o fiscalista.
No âmbito do Orçamento do Estado para 2024, que está ainda em preparação, muita tinta tem já corrido sobre uma eventual redução do IRS. A direita insiste nessa redução e o Governo não fecha a porta, mas ainda não é conhecida que dimensão terá essa eventual diminuição fiscal, uma vez que outros dos objetivos do Executivo de António Costa é reduzir a dívida pública, retirando o país do pódio dos países mais endividados.