Vem aí um trimestre repleto de greves. “Tem tudo para ser um período caótico”

ECO - Parceiro CNN Portugal , Isabel Patrício
29 out 2023, 11:00
António Costa no debate quinzenal (LUSA/ANTÓNIO COTRIM)

Greves na saúde, na educação, nos transportes, na justiça. O ano de 2023 tem sido quente ao nível da contestação social e esse cenário só deverá piorar nos próximos meses. Maioria absoluta pesa

Escolas encerradas. Hospitais em serviços mínimos. Centros de saúde e lojas de cidadão de portas fechadas. Esta sexta-feira, dia 27 de outubro, os funcionários públicos estiveram em greve. E a contestação social não deverá acalmar nos próximos meses. Os politólogos ouvidos pelo ECO antecipam que os protestos e paralisações deverão continuar (e até aumentar) até ao final do ano, alimentados também pelo anúncio do ministro das Finanças de que, em paralelo às dificuldades sérias com que se confrontam atualmente os trabalhadores portugueses, o país vai ter um excedente orçamental. O último trimestre tem tudo, assim, “para ser caótico“, avisam os especialistas.

Embora o fim do ano esteja ainda a alguma distância, já deram entrada quase tantos pré-avisos de greve como no conjunto do último ano. Até agosto, foram entregues mais de mil avisos prévios, sendo que a maioria diz respeito à Administração Pública.

A manter-se o atual ritmo, segundo as contas do ECO, 2023 está a caminho não só de superar o ano passado, como também de chegar a máximos de 2013, altura em que Portugal vivia o terceiro ano consecutivo de recessão e estava submetido ao programa de ajustamento acordado com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Aliás, agora que a proposta de Orçamento do Estado para 2024 já foi entregue ao Parlamento – e está a gerar duras críticas por parte de múltiplos quadrantes da sociedade –, os politólogos projetam que este último trimestre do ano ficará marcado por um agravamento dessa contestação social.

“É previsível que [as paralisações] aumentem. O final do ano tende a ser mais conflitual devido às medidas que se anunciam para o ano seguinte com o Orçamento do Estado. Os sindicatos procuram colocar maior pressão sobre o Governo e ganhar maior visibilidade pública para as suas reivindicações”, sublinha Tiago Carvalho, professor e investigador do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE).

Regista-se a perceção de que este caminho [o das greves] é o único disponível para pressionar o Governo.”

Já Bruno da Costa, professor da Universidade da Beira Interior, frisa que o aumento da inflação e a “não correspondência entre as propostas do Governo e as exigências das centrais sindicais” criam um “ambiente promotor para a continuidade da contestação social”.

“Embora o Governo esteja a fazer um esforço ao nível do aumento do salário mínimo e da redução da carga fiscal sobre os rendimentos, verifica-se um aumento dos impostos indiretos e da carga fiscal global, o que faz as famílias perderem poder de compra“, realça ainda Bruno Costa. E atira: “Por sua vez, regista-se a perceção de que este caminho [o das greves] é o único disponível para pressionar o governo.”

Perante este cenário, Miguel Rodrigues, da Universidade do Minho, é claro: “O último trimestre tem tudo para ser um período caótico”. De que modo? Com os portugueses a ficarem à espera de consultas nos centros de saúde, a terem cirurgias adiadas, a ficarem com os filhos em casa e a sentirem dificuldades para usarem transportes públicos, enumera.

“O que pode acontecer, decorrente do momento do ano, é termos uma maior pressão, quer pelo aumento da procura nos serviços públicos, quer seja de natureza política para exercer pressão no momento da discussão do Orçamento do Estado“, antecipa o mesmo especialista.

No caso da greve desta sexta-feira, a convocatória partiu da Frente Comum, que está a contar com uma “adesão grande“. Os aumentos salariais são um dos principais motivos que levam os funcionários públicos a parar. O Governo prometeu reforços remuneratórios que vão dos 3% aos 6,84%. Ora, para este ano, o Executivo está a apontar a inflação para 4,6% e para 2024 para 2,9%.

Para novembro estão já marcadas também várias greves setoriais. O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses anunciou uma greve nacional para o dia 10 desse mês. Os trabalhadores das empresas da distribuição param a 11 de novembro. E há a possibilidade de os professores protestarem desta forma no dia em que o ministro da Educação for ao Parlamento explicar o Orçamento do Estado para essa área.

Sentem-se sobretudo nos setores da educação, saúde e transportes, dada a diminuição do investimento público nos últimos anos, constrangimentos orçamentais e consequente agravamento das condições laborais.

Entre os quatro especialistas ouvidos pelo ECO, a avaliação é comum: educação, saúde e transportes são, neste momento, os setores mais afetados pela intranquilidade social. “Isto dada a diminuição do investimento público nos últimos anos, constrangimentos orçamentais e consequente agravamento das condições laborais”, analisa Tiago Carvalho.

“No quadro da competitividade europeia, um país que não consegue assegurar o funcionamento pleno e eficaz destes setores, nomeadamente em todos os quadrantes geográficos no país, tem pouca ou nenhuma margem para enfrentar os desafios da contemporaneidade e fugir à cauda da Europa”, atira, por sua vez, Bruno da Costa.

Maioria absoluta tem “relação direta” com aumento das greves

Além da inflação e do consequentemente agravamento do custo de vida, também a maioria absoluta do PS ajuda a explicar este aumento da contestação social, identificam os politólogos.

Por exemplo, José Palmeira, professor da Universidade do Minho, salienta que a contestação social “costuma aumentar em contextos de maioria absoluta“, uma vez que tende a transferir-se do Parlamento para a rua. “No passado era fundamentalmente a CGTP que organizava e liderava essa contestação, mas, desde que o PCP apoiou um Governo do PS, aquela central sindical parece ter perdido alguma da sua capacidade de mobilização social para novos movimentos, ditos inorgânicos, por natureza mais radicais no plano das reivindicações e dos métodos de ação”, explica o especialista.

“Há uma relação direta” entre a contestação e a maioria absoluta, corrobora Miguel Rodrigues. “Não pondo em causa a situação de falta de condições e as justas reclamações de algumas classes sociais, há algumas greves que resultam no enfraquecimento do poder político de algumas forças partidárias. No caso específico do PCP, parece evidente que fruto da maioria absoluta do PS e da sua exígua representatividade no parlamento, haja uma alteração na estratégia política. É uma espécie de prova de vida“, assinala o professor.

Já Bruno da Costa acrescenta que a maioria absoluta deu ao PS e ao governos “os instrumentos necessários para implementar um quadro global de transformação do país“, mas, passados oito anos de “desgaste” e tendo em conta a “inoperância de alguns membros do Executivo”, a afirmação dessa maioria está hoje com dificuldades. “E este cenário não pode ser justificado, apenas, pelo contexto internacional“, ressalva o politólogo da Universidade da Beira Interior. Aliás, à parte do impacto dos conflitos em curso na Ucrânia e no Médio Oriente e da instabilidade internacional, os trabalhadores continuam a considerar que o Governo pode ir mais longe.

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