Peritos ouvidos pelo ECO admitem que a falta de reporte das infeções por Covid "dificulta" a monitorização da doença, mas avançam que há outras formas de fazer esse acompanhamento.
A mudança de paradigma na gestão da pandemia levou ao fim de várias medidas, nomeadamente da comparticipação dos testes Covid pelo SNS. Deste modo, o Covid passou a ser tratada como qualquer outro vírus respiratório e a tónica passou a estar na responsabilidade individual.
Os especialistas ouvidos pelo ECO admitem que o facto de haver menos reporte de infeções “dificulta” a monitorização da doença, mas sublinham que há outros mecanismos para fazer o acompanhamento. No entanto, consideram que o “esforço” em termos financeiros e de recursos humanos para voltar a ter “um conhecimento epidemiológico considerável” não se justifica face aos benefícios.
“Hoje em dia, em qualquer sítio do mundo é muito mais difícil acompanhar a Covid. O rigor com que se registam os casos, a confiança que depositamos no número de notificações é muito menor do que era há um ano e meio, dois anos. Não tem comparação“, afirma Manuel Carmo Gomes, epidemiologista e professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que faz a monitorização da Covid desde o início da pandemia, notando que a situação “agravou-se especialmente” desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a Covid-19 como uma emergência de saúde pública global, a 5 de maio.
O epidemiologista nota que este não é um problema exclusivo de Portugal, dado que, a partir dessa altura, “as direções-gerais de saúde de praticamente todo o lado cortaram muitos recursos humanos e financeiros” que estavam alocados à doença. “Um pouco por todo o lado, ficámos perdidos sem saber o verdadeiro número de casos”, aponta.
O retrato é igualmente traçado por Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), e por Bernardo Gomes, médico de Saúde Pública e investigador do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP). No entanto, apesar de admitirem que, em termos epidemiológicos, o “ideal” seriam as pessoas continuarem a notificar as infeções – e, eventualmente, até promover uma maior testagem –, o contexto atual, de baixa mortalidade e internamentos por Covid-19, não o justifica.
“O esforço que seria necessário para voltarmos a ter um conhecimento epidemiológico considerável sobre a evolução da pandemia seria demasiado [grande] para o benefício que iríamos ter. Não há vantagem prática em voltarmos a fazer este género de trabalho”, defende o presidente da ANMSP.
“Quanto melhor soubermos o que se está a passar, melhor estamos preparados para nos defendermos e para criar medidas preventivas. Mas isso tem custos”, nomeadamente de “recursos humanos” e de “testes e baixas”, corrobora Manuel Carmo Gomes, apontando que no contexto atual “não se justifica”. De notar que só entre julho de 2021 e julho de 2022, o Estado comparticipou mais de 10,9 milhões de testes rápidos. Quanto às baixas por Covid, entre 2020 e maio de 2022 foram gastos quase 600 milhões de euros.
Ao ECO, fonte oficial da DGS explica que a notificação dos casos “é praticamente realizada a partir do reporte de notificações laboratoriais, através de uma integração automática entre os diferentes sistemas das entidades que realizam os testes e a plataforma de suporte ao SINAVE, perto do tempo real” e que além da notificação laboratorial, “existe a vigilância genómica“, que permite “acompanhar a evolução das variantes”, bem como a vigilância de águas residuais.
Assim, a entidade liderada em regime de substituição por André Peralta Santos considera que a integração destas três formas de vigilância garante “um modelo muito semelhante ao adotado noutros países europeus” e “permite ter um conhecimento robusto da dinâmica de transmissão e detetar alterações de padrões”.
“Neste momento, este vírus respiratório tem um comportamento sazonal, tal como o da gripe, pelo que se considera que os mecanismos de vigilância estão adaptados a esta fase, não sendo necessário alterar, de momento, os critérios de notificação”, acrescenta a DGS, sublinhando que a vigilância da Covid “está sobretudo focada nos casos de maior risco de desenvolver doença grave ou morte”.
Testagem de águas residuais é uma das alternativas
Os especialistas ouvidos pelo ECO defendem que há outros mecanismos que permitem “compensar” esta circunstância e fazer o acompanhamento da doença. “A testagem das águas residuais acaba por dar uma noção da carga coletiva que está a circular, nomeadamente em grandes centros urbanos. Isso é uma forma de dar a volta à situação e tem sido promovida a nível internacional, quer na Europa e nos EUA, e também com a antiga ministra da Saúde”, aponta o Bernardo Gomes.
Nesse sentido, e apesar de sublinhar que o gap de testagem pode causar dificuldades “à detenção precoce e controlo de infeção”, o médico de saúde pública considera que esta é “uma forma de vigilância epidemiológica que deve ser promovida e trabalhada”, por forma a colmatar eventuais falhas de informação.
Além disso, o investigador do ISPUP relembra que, a título individual, os testes rápidos “continuam a ter a sua utilidade”, pelo que considera que nestes casos, ainda que seja uma decisão voluntária, a notificação deve manter-se. De notar que a plataforma online que tinha sido criada para reportar os resultados dos autotestes já não está disponível.
No entanto, Bernardo Gomes sublinha que, no contexto atual, em que os cidadãos já estão “cansados” da pandemia, a tónica deve ser apostar na comunicação e na responsabilidade individual, “seja pelo uso voluntário de máscara, seja pelo devido cuidado na ventilação dos espaços” de modo a que “todos os invernos basicamente existam menos pessoas doentes e morram menos pessoas”. Isto não só para a Covid, mas para todos os outros vírus respiratórios que circulam habitualmente nesta época do ano.
Por outro lado, Manuel Carmo Gomes realça que “embora não saibamos, em termos absolutos, o número de casos que há por dia, podemos acompanhar as tendências” e que há outros indicadores que servem de guia, como é o caso das hospitalizações e do número de óbitos. “Quando as pessoas são internadas são testadas e isso é reportado às autoridades. Se acompanharmos a quantidade de pessoas internadas que têm Covid também temos uma ideia se as coisas estão a aumentar ou a diminuir”, afiança, sublinhando, no entanto, que estas podem estar hospitalizadas devido a outras doenças que não a Covid.