“Haverá um movimento em direção à violência e ao extremismo. É inevitável”

8 dez 2023, 22:00
Rashid Khalidi (Creative Commons)

ENTREVISTA || Rashid Khalidi tem 75 anos, a idade do Estado de Israel. O pai fugiu para os Estados Unidos da América durante o Nakba - a catástrofe, em árabe - o êxodo em massa dos palestinianos na guerra israelo-árabe, em 1948. Nasceu em Nova Iorque e tornou-se historiador e professor de Estudos Árabes na Universidade Columbia. É de lá que fala com a CNN Portugal, numa entrevista por videochamada. No seu mais recente livro “Palestina - Uma Biografia: cem anos de guerra e resistência” escreveu sobre seis momentos marcantes do seu povo que se entrelaçam com a história da sua família, uma das mais antigas de Jerusalém. Publicada em 2020, se essa biografia fosse escrita hoje teria mais um capítulo

Imaginava que o ataque do Hamas a 7 de outubro e a guerra em Gaza pudessem acontecer?

Fiquei surpreendido, creio, como todos ficaram, com o ataque de 7 de outubro. Não acho que mesmo as pessoas que são observadoras atentas esperavam algo desta ferocidade e intensidade. No entanto, penso que nos últimos dois anos é claro que a situação nos territórios ocupados tem sido cada vez mais explosiva. E não deveríamos ter ficado surpreendidos que de uma forma ou de outra, num lugar ou noutro, haveria uma explosão. Não estava à espera. O governo israelita e os militares israelitas não estavam à espera, obviamente. Muitas pessoas ficaram surpreendidas. Não deveríamos ter ficado surpreendidos. Deveríamos ter previsto que isto iria acontecer.

Em 2022, deixou uma nota na edição portuguesa do livro para os leitores portugueses, aludindo ao passado colonialista de Portugal. A ideia de colonização é muito central no seu livro. Porquê?

Porque é isso que o empreendimento sionista sempre foi, ao mesmo tempo um empreendimento nacional e um empreendimento colonial, como os próprios primeiros líderes sionistas reconheceram. Escrevi no livro até que ponto, até à Segunda Guerra Mundial, as instituições sionistas e os líderes sionistas não tinham vergonha de falar sobre a natureza colonial do que estavam a fazer. Cito Ze'ev Jabotinsky e outros primeiros líderes sionistas que admitiram, sem vergonha, que este é um empreendimento colonial. Argumentaram, claro, que tinham o direito ao que eles chamavam de Terra de Israel e que se tratava de um projeto nacional. Era uma tentativa de criar uma entidade nacional, mas em cooperação com a maior potência colonial da época, a Grã-Bretanha, e como um projeto colonial de colonos, trazendo principalmente imigrantes europeus para se estabelecerem num país com uma enorme maioria árabe, isto era perfeitamente claro para todos. Após a Segunda Guerra Mundial, houve uma tentativa para encobrir as origens coloniais de Israel. Uma tentativa muito bem-sucedida.

Começámos por ver as vítimas israelitas no dia 7 de outubro. Houve uma exigência por parte do público para que se mostrasse o outro lado da história. Começámos a ver as mortes em Gaza… Acha que isso está a mudar a opinião pública? Acha que essa mudança de opinião pública pode beneficiar os palestinianos no futuro ou irá desaparecer quando as imagens de Gaza pararem de chegar?

É verdade que o terrível número de mortos em Gaza, que ultrapassou os 11 mil, quase todos civis, talvez 5 mil deles crianças, teve um efeito enorme no Ocidente e no resto do mundo. Também é verdade que, no início, o terrível número de mortes de civis em Israel, de pessoas mortas nos primeiros dois dias, dominou a maneira como as pessoas viam isso e criou uma grande simpatia por Israel. Mas com o tempo, os cerca de mil civis israelitas que foram mortos foram ofuscados, até certo ponto, pelos 11 mil palestinianos. Como o foco das mortes mudou do assassinato de civis israelitas no início para o massacre ou o assassinato, como quiser chamar, de milhares de civis palestinianos, a opinião pública mudou. Agora, se vai durar ou não, se vai afetar de forma positiva os palestinianos… é impossível responder. Mas isto não é inédito, na verdade. Se recuarmos à guerra de 1982, quando Israel invadiu o Líbano e cercou Beirute, e no final da guerra matou tantas pessoas, enviou militantes libaneses para matar tantos civis palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, a cobertura mediática mudou de simpatia, com Israel no início, para simpatia com os palestinianos no final. Isso desapareceu. E houve outras ocasiões, outros ataques a Gaza, em que penso que ocorreu o mesmo tipo de mudança. Mas no passado isso tendeu a desaparecer com o tempo, em parte porque Israel é muito bom em retomar a narrativa.

Esta guerra está a dividir o mundo, está a dividir a Europa… Se compararmos com a guerra na Ucrânia está realmente a dividir a Europa, famílias, amigos… Todos parecem ter uma opinião, mas parece que as pessoas têm informações diferentes sobre este conflito. Porque é que isto acontece?

É uma pergunta difícil de responder, mas penso que tem que ver com o que disse anteriormente, o enorme sucesso de Israel, e antes disso, do movimento sionista, na comunicação de uma imagem, em grande parte falsa. Fazer florescer o deserto, uma terra sem povo para um povo sem terra, a única democracia no Médio Oriente... Tudo isso é falso. A Palestina produzia laranjas no valor de centenas de milhares de libras esterlinas em 1914. Não era um deserto. Israel não a fez florescer. Israel é uma democracia para cidadãos judeus israelitas. Os cidadãos árabes de Israel estiveram sob regime militar de 1948 a 1966, e Israel governou mais de 5 milhões de palestinos durante 56 anos sob a lei militar, o que não é lei. Como podem dizer que é a única democracia? A única democracia no Médio Oriente com 5 milhões de pessoas prisioneiras de um regime militar.

Cada um destes mitos foi insidioso e deliberadamente semeado nas mentes das pessoas de tal forma que as pessoas estão divididas, em parte porque algumas das informações são absolutamente falsas, e em parte porque muitas pessoas estão ligadas a lados diferentes deste conflito.

Algumas pessoas simpatizam com os colonizados, outras simpatizam com Israel por causa da culpa europeia relativamente ao antissemitismo histórico… Vive num país onde os judeus foram expulsos. Os judeus foram expulsos da Espanha. Os judeus foram expulsos da Inglaterra. Os judeus foram expulsos da França no período medieval, do século XII ao século XV. Portanto, há boas razões para a culpa europeia relativamente ao tratamento terrível aos judeus durante séculos e séculos. Para não falar do Holocausto, quando os países europeus poderiam ter deixado entrar centenas de milhares de pessoas que teriam sido autorizadas pelos nazis a partir antes da Segunda Guerra Mundial, e fecharam as portas de forma insensível e deliberada, condenaram as pessoas à morte. Portanto, os nazis mataram-nos, mas as pessoas que poderiam tê-los salvado - os Estados Unidos, a Europa Ocidental e outros países - também são culpadas. Há uma grande culpa justificada, e acho que isso leva a uma disposição para se curvar para evitar críticas. Israel, é claro, aproveitou-se disso na sua propaganda.

A forma como o Holocausto, a forma como os pogroms na Rússia foram citados repetidas vezes é um exemplo de jogo com a culpa europeia. Isto é visto por muitas pessoas como parte da perseguição ao povo judeu ao longo da história. Devo dizer, porém, que o que aconteceu depois de 7 de outubro nos colonatos israelitas em torno da Faixa de Gaza teria acontecido quer os habitantes desses colonatos fossem judeus, cristãos ou pagãos, porque são vistos pelos palestinianos como colonos em terras que lhes foram tiradas quando foram expulsos em 1948 e forçados para Faixa de Gaza. Se os colonos fossem marcianos, se os colonos fossem taiwaneses, brasileiros… Teria sido o mesmo. Não tem nada a ver com o fato de serem judeus. Tem a ver com o facto de os palestinianos em Gaza, 80% deles serem refugiados forçados para a Faixa de Gaza quando essas áreas foram tomadas pelo exército israelita e depois foram estabelecidos colonatos judaicos no lugar das aldeias e cidades palestinianas.

Os relatos de Gaza são devastadores. Acha que esta guerra irá criar gerações traumatizadas ao ponto de quererem vingança e poderem juntar-se ao Hamas?

A guerra já traumatizou pessoas de ambos os lados. Os israelitas ficaram traumatizados com o que aconteceu a partir de 7 de outubro, compreensivelmente. Todos os meus amigos israelitas conhecem pessoas que foram mortas, feridas ou sequestradas. E o trauma só aumentou, em parte devido ao número de atrocidades que o governo e os meios de comunicação israelitas estão a publicar. Manteve esta ferida viva na mente das pessoas em Israel e no estrangeiro. Muitas pessoas no Ocidente têm parentes em Israel e sabem das coisas horríveis que aconteceram aos civis israelitas. E eles também estão traumatizados. Desse lado, claramente há trauma e é visto em termos de trauma histórico judaico, quer tenha algo a ver com isso ou não. É ainda mais o caso do lado palestino, devido à extensão e à escala das perdas - 11 mil pessoas mortas até agora e quase 30 mil feridas. Estamos a falar de mais de 40 mil pessoas mortas e feridas, pelo menos, numa população de 2,2 milhões. E isso terá todos os tipos de efeitos. Todos nós conhecemos pessoas em Gaza. Eu conheço pessoas em Gaza. A minha sobrinha tem parentes em Gaza. Todos os palestinianos estão comovidos. Muitas pessoas no mundo árabe estão comovidas. E temo que isso conduza - em Israel e para os palestinianos - não apenas a um desejo de vingança, mas a levar as pessoas aos extremos. Não creio que haja qualquer dúvida de que esse pode muito bem ser o resultado disto.

Os palestinianos têm tentado explicar ao mundo que não são o Hamas e que a maioria não apoia nem se identifica com os valores do Hamas. Mas há um argumento que costuma surgir nesta discussão. Em 2006, o Hamas ganhou as eleições com 44% dos votos. Ainda é assim? Os palestinianos apoiam o Hamas?

O Hamas ganhou apoio quando Israel e as potências ocidentais se recusaram a avançar com um horizonte político para os palestinianos, o que envolvia, nos anos 90 e no início dos anos 2000, a criação de um Estado Palestiniano ao lado de Israel. Isso foi bloqueado, não aconteceu. A ocupação intensificou-se, os colonatos expandiram-se, o movimento palestiniano foi restringido e a criação de um Estado Palestiniano nunca aconteceu. O Hamas beneficiou. Se os Estados Unidos, a Europa Ocidental e Israel continuarem a intensificar a ocupação, a expandir os colonatos e a negar aos palestinianos os mesmos direitos que os israelitas reivindicam para si próprios, haverá um movimento em direção à violência e ao extremismo. É inevitável.

É claro que o Hamas tem apoio, mas há sondagens que mostram, antes do ataque de 7 de outubro, que tinha cerca de um terço do apoio entre os palestinianos. Porquê? Porque não há horizonte político. Netanyahu recusou-se a negociar durante 15 anos. Netanyahu não aceita a solução de dois Estados. Netanyahu pertence a um partido político que disse que Israel será soberano na sua plataforma eleitoral de 1977. O partido Likud disse que só haverá soberania israelita entre o rio Jordão e o mar. Se é isso que oferecem aos palestinianos, a soberania israelita entre o rio e o mar, o que é que os palestinianos deveriam fazer? Aceitar isso? Tem de ser apresentado um horizonte político.

A solução de dois Estados continua a ser mencionada pelos líderes mundiais como uma solução após o fim desta guerra. Acredita que ainda é possível?

Líderes mundiais, governos ocidentais, Estados Unidos, que supostamente apoiam a solução de dois Estados, não fizeram nada para concretizá-la pelo menos nos últimos 15 anos. Os líderes mundiais que supostamente apoiam a solução de dois Estados ajudaram, de facto, Israel a fortalecer sua ocupação, a expandir seus colonatos, que se destinam a impedir uma solução de dois Estados. Os líderes mundiais e os Estados Unidos impedem de facto uma solução de dois Estados. Falam, hipocritamente, sobre uma solução de dois Estados. Armam e financiam Israel na construção de mais colonatos e na intensificação de sua ocupação militar sobre os palestinianos. É isso que tem vindo a acontecer nos últimos anos. Por isso, estou um pouco cansado dos líderes mundiais falarem sobre uma solução de dois Estados. Se quisessem uma solução de dois Estados, deveriam trabalhar no sentido de uma solução de dois Estados. Deveriam impedir Israel de fazer o que tem feito há 56 anos, que é prevenir a solução de dois Estados ao construir colonatos nos territórios ocupados. É muito simples. Ou temos colonatos ou temos uma solução de dois Estados.

O que é que acha que vai acontecer?

Receio que os Estados Unidos continuem a apoiar Israel em alcançar a sua ocupação militar em todos os territórios ocupados. Temo que os países europeus sigam como ovelhas qualquer caminho que a América decida seguir. Em vez de agirem por interesse próprio, que é evitar a catástrofe humanitária em Gaza, os países europeus basicamente endossam e apoiam uma catástrofe humanitária em Gaza. E podemos acabar com mais refugiados. Podemos acabar com mais pessoas a deixar Gaza. Podemos acabar com muito mais violência e extremismo se algo não for feito para acabar com esta guerra rapidamente, acabar com a morte de várias centenas de civis por dia, e dar um horizonte político para os palestinianos. O que ouvimos de Israel não é tranquilizador. Os líderes israelitas falam sobre segurança e controlo permanente por parte de Israel. Isso significa ocupação. Isso significa que haverá resistência. Todas as ocupações na história geraram resistência. Será pacífica ou violenta? Isto terminará com os palestinianos a alcançarem os seus direitos ou vão continuar a ver os seus direitos negados? O que vai acontecer depende das respostas a estas perguntas.

Nota: Entrevista foi feita a 10 de novembro de 2013, antes do acordo temporário de cessar-fogo para a troca de reféns e prisioneiros. Foi adaptada para facilitar a leitura.

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