Dizer palavrões sabe bem p’ra… caraças! Mas atenção: pode ser perigoso para a mente e para o corpo

10 dez 2022, 18:00
Gritar (Pexels)

É uma questão cultural, desculpam-se uns. Alivia a dor física, justificam-se outros. Dizer palavrões pode ajudar a aliviar a raiva e a atenuar a frustração, pode até atenuar a dor física. Mas, alertam os psicólogos, os seus perigos e malefícios podem ir muito além da má imagem que podem eventualmente passar

Quem nunca bateu com o mindinho do pé na perna da cama e sofreu uma dor tão intensa que o fez vociferar uma daquelas palavras tão feias que faria a avó corar? Quem nunca se sentiu tão frustrado com aquela situação do trabalho e acabou a desfiar um rosário de palavras tão duras que fariam qualquer santo tapar a cara e os ouvidos? Dizer palavrões como escape ou alívio é próprio da condição humana, mesmo que, às vezes, a palavra não seja assim tão feia.

Para determinada pessoa, se calhar dizer ‘Valha-me Deus’ é suficientemente herético para ser libertador e funciona igualmente como escape. Nesse sentido, todos temos, a determinada altura das nossas vidas a necessidade de dizer algo que possa ter essa intencionalidade”, explica Nuno Amaral Jerónimo, sociólogo e professor de Sociologia da Universidade da Beira Interior.

Os palavrões não são exclusivos da sociedade portuguesa e nem sequer são exclusivos deste tempo. Traduzem-se em algo inerente à espécie. O sociólogo fala da importância da componente de romper com as regras associada ao ato de dizer um palavrão: “Termos regras e quebrá-las é atrativo. E, no que toca aos palavrões, a dada altura, até o fazemos sem dar conta”.

“Há vários trabalhos de Linguística e Sociolinguística, sobretudo no mundo anglo-saxónico, sobre este tema. Em Espanha, há alguns palavrões que se tornaram tão vulgares que é possível usá-los numa loja, na rua, no café… Na Lituânia, usam palavrões em russo, porque os palavrões russos têm uma componente de conotação sexual que e os deles não têm. Em lituano, a ofensa maior que têm é qualquer coisa como ‘tens os olhos de um peixe’”, acrescenta Nuno Amaral Jerónimo.

Em todas as línguas, o palavrão é usado como insulto, mas há palavras que se normalizaram e o sociólogo e também professor lembra uma história que vivenciou e que ilustra esta questão: “Um aluno brasileiro disse um palavrão e até era para transmitir que algo era uma coisa boa e deixei passar, porque percebi que estavam em causa diferenças linguísticas e que ele não tinha dito nada de mal. Mas uma colega interrompeu-o e repreendeu-o. Duvido que ela faça isso no intervalo aos seus amigos, quando eles dizem palavrões. Fê-lo porque estávamos em contexto de aula e porque não percebeu as diferenças linguísticas que estavam em causa”, disse.

A componente cultural e social do palavrão

É um facto reconhecido que o palavrão é mais bem aceite em determinadas regiões do país. Mas não é só: os palavrões são mais comuns nos extremos das hierarquias sociais. Nuno Amaral Jerónimo explica porque é que são tão comuns nas classes mais baixas e nas mais altas e porque é que são tão residuais nas classes médias.

Tem a ver com os comportamentos desviantes. As classes médias têm mais tendência a seguir a norma, porque têm aspiração a ascender socialmente e querem ser aceites. Nas classes mais baixas, pode ser por iliteracia ou por não ter muito a ganhar com o cumprimento das normas. Nas classes mais altas, porque quem tem dinheiro normalmente tem mais liberdade para dizer o que quer”, explica o especialista.

Talvez por isso, se tenha criado uma “espécie de meio termo”: “Dizemos ‘fogo’, ‘caraças’… do ponto de vista social é muito mais aceite, mas a intenção é a mesma”.

“O que é que faz do palavrão mais palavrão é ele ser escatológico e sexual. Tem ao mesmo tempo a função de chocar e de libertar. E a escatologia e o sexo têm esse cariz libertador e chocante. No fundo é uma espécie de regressão à animalidade. Isso faz-nos rir e ao mesmo tempo choca. Nos primórdios da humanidade havia menos pudor em fazer necessidades em público, por exemplo. E, ainda não há muitas décadas, havia famílias inteiras a viver numa única divisão da casa. Dormiam todos juntos, mas continuavam a ter filhos – significa que tinham relações sexuais mesmo com outros elementos da família na divisão, mesmo estando a dormir. À medida que se foi escondendo esses aspetos escatológicos e sexuais, isso ganhou ainda um grau de comicidade e um grau de estranheza maior. As palavras que designam essas coisas tornam-se tabu, que depois tem graça quebrar”, explica Nuno Amaral Jerónimo.

O palavrão e o humor

Por isso também é que o palavrão é usado por muitos humoristas na sua arte. Exemplo disso, refere o sociólogo da Universidade da Beira Interior, é Fernando Rocha. “É ótimo a contar anedotas, mesmo que elas não valham nada. O Fernando Rocha sem palavrões, ele não existia. E ele percebeu isso perfeitamente. Noutros humoristas, isso seria impensável. Estive a rever todo o ‘Humor de Perdição’, do Herman José, ele não diz um palavrão. Aproxima-se, mas nunca o chega a dizer…”, exemplifica.

E o especialista lembra ainda outro profissional: Nuno Markl, que se confessa “incapaz de dizer um palavrão” e que “ainda há pouco tempo fez uma crónica no programa da manhã da Rádio Comercial, onde dizia que a estratégia para fazer rir o outro era dizer ‘cocó’”. “Lá está: não é palavrão, mas tem a tal componente escatológica do palavrão”, explica ainda.

Os diferentes contextos do palavrão

Mas o palavrão tem muito mais que se lhe diga. Não podemos ser taxativos e dizer que “é algo cultural” ou que “é típico do Norte”. Porque, na verdade, não depende só da região do país ou do contexto cultural onde estamos inseridos.

Quando dizemos que no Norte o palavrão é virgula, temos de pensar: a pequena burguesia do Porto fala assim? A pequena burguesia de Braga fala assim? A minha experiência diz-me que não. Na universidade do Porto, nas aulas, os professores falam assim? Na Universidade de Braga falam assim? Creio que não… O palavrão também é circunscrito a determinados círculos. É verdade que é mais comum no Norte do que no Centro e Sul, mas preciso ter em conta esta contextualização”, alerta o sociólogo, reforçando que “há contextos regionais, socioeconómicos, culturais, familiares e contextos específicos”.

Em todo o caso, o palavrão é uma forma de expressar emoções e “como são palavras negativas, servem para expressar emoções mais fortes”. O psicólogo Gaspar Ferreira, membro do Conselho de Especialidade da Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações da Ordem dos Psicólogos Portugueses, lembra que “é uma estratégia usada para lidar com a dor, física e emocional”.

Gaspar Ferreira tem uma carreira ligada à Psicologia do Desporto, um mundo onde também é comum ouvir e dizer palavrões. “Há contextos em que quem não disser, não está alinhado. Vou notando que há uma evolução, à medida que os treinadores vão ganhando uma certa formação, vai reduzindo o recurso a essa estratégia. Do ponto de vista higiénico da comunicação, seria preferível que as pessoas fossem capazes de expressar a sua emoção de uma forma assertiva”, considera.

Mas há mais: “A utilização dos palavrões para insultar os adversários pode constituir-se como uma técnica de pressão, visando provocar uma resposta descontrolada, de modo a tirar partido da falta de foco, ou provocar sanções disciplinares.”

Mas, também no desporto, dizer palavrões “pode, contudo, refletir apenas uma menor competência comunicacional, por incapacidade para verbalizar de forma adequada a raiva e a frustração em situações de stress”.

“Sabemos que praguejar aumenta a tolerância à dor, e descobriu-se mesmo que dizer palavrões enquanto se pratica uma atividade física, aumenta a força e a potência no desempenho dos atletas”, lembra o psicólogo, citando um estudo de 2017.

Lidar com a dor física e emocional e os perigos do palavrão

Praguejar é, contudo, para muita gente, uma forma de lidar com experiências dolorosas. Sejam elas físicas ou emocionais. Por outro lado, “censurar a linguagem pode ser uma forma de reprimir as emoções negativas mais intensas, não sinalizando que estamos em dificuldades e que precisamos de apoio”.

É importante, por isso, conhecer as causas e os efeitos da utilização dos palavrões, adquirir novos hábitos de comunicação e de regulação emocional de modo a melhorar o rendimento, o bem-estar e a resiliência individual e grupal, sem comprometer relações pessoais e profissionais”, acrescenta Gaspar Ferreira.

E é aqui que reside, talvez, o maior risco de dizer palavrões. De acordo com o psicólogo ouvido pela CNN Portugal, “as pessoas que dizem palavrões, resistem mais tempo em ambientes de pressão”. “E aí é que está o perigo… que essas pessoas prolonguem no tempo condições muito difíceis, para além das que o indivíduo consegue lidar. Ajuda-nos a estar mais tempo em situações difíceis, sem consciência disso. Praguejando vai aliviando a dor, mas não muda as causas. Limito-me a lidar com os sentimentos imediatos, mas não resolvo o que me causa a dor e posso só dar conta quando o mal causado é já muito grande”, alerta o psicólogo.

E pode ser também um perigo a nível físico: como aumenta a tolerância à dor, o indivíduo permanece durante mais tempo em situações que a provocam. O psicólogo dá o exemplo que foi também o mote para um estudo precisamente sobre palavrões: se um indivíduo tiver as mãos mergulhadas em gelo e aliviar a dor dizendo palavrões, pode acabar por manter as mãos no gelo durante tempo demais e acabar por sofrer queimaduras provocadas pelo frio.

E, depois, há os perigos sociais do palavrão. “Do ponto de vista da comunicação podem traduzir-se em desvantagens, assim como do ponto de vista de danos para a imagem. E pode também refletir uma falta de empatia pelo outro. Porque não pondero que posso chocar quem está à minha volta”, explica o especialista.

Em ambiente profissional, a componente de perigo do palavrão pode adquirir uma dimensão maior. Também aqui, praguejar ajuda a lidar com ambientes de pressão. Mas, mais uma vez, o psicólogo lança o repto: “Devemos pensar se é o ambiente que queremos para as nossas vidas, se é esse ambiente de pressão que nos leva a dizer palavrões que queremos para as nossas vidas.”

E há mais: “Uma coisa é ouvir palavrões entre colegas, que têm uma relação próxima. Outra é ouvir palavrões da chefia, que pode configurar assédio moral”.

Três estratégias emocionais para deixar de dizer palavrões

Assim, se dizer palavrões pode não passar de uma espécie de paracetamol que alivia a dor imediata, mas, na prática, não resolve o problema, o melhor é deixar de os dizer. Mas o que fazer quando o hábito já está enraizado? O psicólogo Gaspar Ferreira responde com três estratégias emocionais que dependem apenas de cada indivíduo.

  • “Perante a emergência e a tomada de consciência de que está em sofrimento, o indivíduo deve procurar inibir-se de dizer palavrões. E, se os disser e verificar que provocou algum dano, verbalizar o que está a sentir e pedir desculpa. Pelo menos, tendo a consciência, tenta eliminar o dano à sua volta.”

  • “Assumir publicamente que se está a fazer um esforço para deixar de dizer palavrões. A afirmação pública do objetivo compromete o indivíduo com o seu cumprimento.”

  • “Desenvolver a comunicação assertiva. O indivíduo tem de ser capaz de defender os seus direitos e sentimentos, mas sem ferir os sentimentos dos outros.”

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