ENTREVISTA || Maria d’Oliveira Martins lembra que, em determinadas circunstâncias, há sempre a possibilidade de recorrer a saldos do ano passado. INE anunciou esta segunda-feira que o excedente orçamental é de 1,2% - o maior de sempre em democracia
O Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) tem folga orçamental que pode permitir ao novo Governo apresentar medidas sem ter de recorrer a um Orçamento Retificativo. Mas o executivo liderado por Luís Montenegro poderá fazê-lo de qualquer das formas por motivos políticos, segundo Maria d’Oliveira Martins, professora de Finanças e Direito Constitucional na Universidade Católica.
A professora lembra, em entrevista à CNN Portugal, que os efeitos positivos que beneficiaram a execução orçamental em 2022 e 2023, como o crescimento das receitas fiscais à boleia da inflação, estão a desaparecer, mas, ainda assim, “não significa que não haja margem para acomodar algumas mudanças de políticas”, concluindo que o OE2024 “está feito com folga orçamental e, portanto, mesmo tendo algumas cautelas de gestão orçamental, o Governo tem margem de manobra”.
A Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) define no artigo 59.º quais as situações em que um Governo tem de apresentar uma proposta de Orçamento Retificativo: aumento dos limites de endividamento ou o aumento da despesa total do subsetor da administração central são duas dessas situações. Outra tem a ver com os limites de despesa previstos para cada um dos programas orçamentais. Por exemplo, o Programa 12, referente ao Ensino Básico e Secundário e Administração Escolar, prevê um determinado teto de despesa que, em princípio, não pode ser ultrapassado sem que o Governo avance com um Retificativo. Ou seja, caso Luís Montenegro decida avançar já este ano com a reposição gradual do tempo de serviço dos professores, haveria um acréscimo de despesas e se esse acréscimo furasse o teto do programa orçamental, então, teria de haver um Retificativo com base no referido artigo 59.º.
Mas mesmo esta obrigação pode ser ultrapassada uma vez que a mesma LEO não impede “totalmente” a utilização de saldos do ano anterior.
“O Governo, nalgumas circunstâncias, tem, ele próprio, poder de alteração orçamental e pode fazer alterações orçamentais por meio de um Decreto-lei” sem passar pelo Parlamento, lembra Maria d’Oliveira Martins. Uma hipótese que, segundo a professora da Universidade Católica, só é possível se essas alterações tiverem uma contrapartida do lado das receitas como “a utilização de saldos de anos anteriores, a utilização de verbas de dotação provisional ou quando há aumento de receitas efetivas próprias ou consignadas. Portanto, sempre que há um aumento de receitas, o Governo pode fazer uma alteração no orçamento das despesas por causa dessa contrapartida, no fundo porque há uma compensação”, conclui.
A especialista em finanças recorda, aliás, que o artigo 60.º da LEO prevê que “competem ao Governo as alterações orçamentais que consistam num aumento do montante total das despesas” de cada programa orçamental quando as mesmas resultem, por exemplo, “de saldos de gerência ou dotações de anos anteriores cuja utilização seja permitida por lei”.
E saldo do ano anterior não deverá faltar. As estimativas do Governo liderado por António Costa apontavam para que em 2023 o excedente orçamental atingisse 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB), mais de 2.100 milhões de euros. Mas os dados finais de 2023, divulgados esta segunda-feira pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), mostram que ficou em 1,2% - é o maior excedente de sempre em democracia.
Maria d’Oliveira Martins salienta ainda, que num outro artigo, o 21.º, a LEO também permite a utilização de saldos nos anos seguintes para que possam ter uma função anticíclica. “O que é que isto significa? Significa que os excedentes devem servir para compensar os défices de outros anos. Ou seja, se neste ano se verificar um défice, não estamos impedidos de utilizar o excedente do ano anterior para, no fundo, não agravarmos a dívida pública. Ou seja, isto é possível”, argumenta.
Razões que levam a especialista a considerar que há espaço para não haver Orçamento Retificativo em 2024. “O Governo pode querer fazer um orçamento retificativo só para efeitos políticos, para ficar legitimado politicamente”, lembra, adiantando que caso venha a ser esta a opção, o Executivo de Luís Montenegro terá de “justificar que há um aumento das despesas e terá de mexer nos mapas orçamentais de forma a justificar essa alteração orçamental”.
A professora universitária defende ainda que a utilização do saldo de 2023 deve ser feito no abate de dívida pública uma vez que a lei diz que estes saldos devem ser “usados preferencialmente na amortização de dívida” e Portugal ainda tem um rácio de dívida muito acima dos 60% do PIB.
“Ainda estamos numa situação de incumprimento relativamente ao limite da dívida pública. Ainda que tenhamos reduzido o rácio da dívida pública, a verdade é que estamos muito acima ainda dos 60%. E a lei de enquadramento orçamental, neste aspeto, é muito clara. Quando estamos nesta situação de incumprimento, então, o excedente deve ser utilizado para amortização da dívida.”
ARTIGO ATUALIZADO ÀS 11:14 COM OS DADOS DIVULGADOS PELO INE