Nigéria pode estar a usar as cheias para fazer subir o preço do gás? Um alerta que não exclui a Rússia

19 out 2022, 08:00

O major-general Isidro de Morais Pereira, especialista em assuntos militares, explica à CNN Portugal, que a "Rússia foi um dos principais promotores e apoiantes dos movimentos de libertação em vários países da África subsariana"

Na noite de segunda-feira, a Galp alertou que tinha sido avisada pela Nigeria LNG Limited para uma “uma redução substancial na produção e fornecimento de gás natural liquefeito”, que poderia afetar Portugal, por culpa das chuvas e cheias registadas na África Ocidental e Central. Horas depois, o Governo emitiu um comunicado, no qual o Ministério do Ambiente e da Ação Climática deixava a garantia de que "não existe, neste momento, qualquer confirmação de redução nas entregas de gás da Nigéria”, alertando ainda que “qualquer informação alarmista é desadequada, ainda mais em tempos de incerteza global”. Mas caso a eventualidade se confirme, "provavelmente, vamos ter de o ir comprar a um preço muito mais elevado", como sublinhou o comentador da CNN Portugal Anselmo Crespo, realçando que o aumento será suportado pela Galp, "mas quem vai pagar a fatura serão os portugueses”.

Mas será mesmo culpa das cheias? O major-general Isidro de Morais Pereira, comentador da CNN Portugal para assuntos militares, alerta que "devemos olhar para esta situação com alguma cautela". O especialista em estratégia militar lembra o "que se está a passar com os preços do petróleo e com as reuniões de Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), no sentido de diminuir a respetiva produção com o propósito de fazer os preços subir" e diz que o mesmo modus operandi "pode estar a ser replicado no gás". 

"Pode ser algo organizado pelos principais partidos exportadores de gás, que poderão estar a tirar partido da atual situação de escassez”, teoriza o major-general.

"Mão russa, um conluio ou alguma tentativa de cartelização"

Mas para Isidro de Morais Pereira há "outro aspeto fundamental" nesta possível falha de abastecimento de gás, que "é saber até que ponto e se a Rússia pode estar por trás" da mesma.

O major-general recorda que, há algumas décadas, a "Rússia foi um dos principais promotores e apoiantes dos movimentos de libertação em vários países da África subsariana", que agora são também dos principais fornecedores de gás do mundo. "Ainda hoje, as elites militares e políticas desses países, muitas delas ou uma maioria significativa, formaram-se em Moscovo, nas academias militares e também nas respetivas universidades", explica o comentador da CNN Portugal, que sublinha ainda que estes responsáveis africanos "falam fluentemente russo, têm uma ligação muito grande ao que era a União Soviética naquele tempo e agora à Rússia".

"As grandes dúvidas são se há influência de uma mão russa, se pode haver aqui um conluio ou se existe alguma tentativa de cartelização para fazer subir artificalmente os preços. Estas são as questões para as quais temos de estar muito atentos", alerta Isidro de Morais Pereira.

"Fatura será paga pelo consumidor final”

Anselmo Crespo destaca a importância deste país africano no mercado nacional, referindo que "50% do gás consumido em Portugal até ao momento, este ano, veio da Nigéria", que classifica como "um vendedor muito importante". No entanto, o comentador também considera que "um corte no abastecimento não significa que vai faltar gás em Portugal".

“Se houver uma interrupção por parte da Nigéria não significa que Portugal deixa de poder comprar gás, a Galp pode continuar a comprar gás, vai é comprá-lo noutro sítio e comprá-lo mais caro. Parece-me a mim, esse foi o grande alerta que a Galp quis dar ao mercado, dizendo: ‘Atenção, nós fomos alertados que por razões de força maior a Nigéria pode ser forçada a interromper o fornecimento e se os contratos, que têm um teto de preço, não forem cumpridos significa que nós vamos ter de ir comprar gás a outro sítio, onde esse teto de preços já não se verifica, portanto, vamos ter de comprar mais caro logo alguém vai ter de pagar essa fatura e a fatura é paga pelo consumidor final”, explica.

Governo e Galp "cumpriram o seu papel"

Para o major-general Isidro de Morais Pereira, a desvalorização do Governo deste prenúncio de corte "foi a resposta adequada do ponto de vista geopolítico e também no sentido de sossegar as populações". O especialista enaltece que "Portugal tem uma grande vantagem, relativamente a outros países europeus, que é a diversidade de fornecedores", o que leva a uma lógica de que "se não temos este, temos aquele ou compramos mais a outro".

"Se isto fosse muito grave, era natural que tivéssemos de dizer a verdade. Acho que os políticos devem sempre dizer a verdade aos seus concidadãos, mas, neste caso, a verdade é que não há aqui aflição nenhuma. Longe disso, para além de não dependermos em exclusivo do gás da Nigéria, temos outros fornecedores não da África subsariana, mas da África do Magreb, na margem sul do Mediterrâneo, cujos países não têm uma ligação tão profunda com a Rússia nem são tão influenciáveis", realça.

Também Anselmo Crespo considera que tanto o Executivo como a Galp "cumpriram o seu papel", explicando que "o Governo não quer criar alarmismos" e que "quando diz que não vai haver falta de gás não está a mentir".

"A parte da escassez é absolutamente verdade, neste momento, não há escassez de gás. Há muitos navios neste momento parados nos oceanos à espera de quem os compre, a questão é o preço a que o vamos comprar”, aponta.

O comentador alerta, no entanto, para um problema ao nível da capacidade de armazenamento em Portugal. Anselmo Crespo lembra que "só há armazenamento para 5% do consumo total de um ano" e que esta é uma lacuna que tem sido ultrapassada com a "compra de gás todas as semanas".

As piores cheias das últimas décadas

Apesar de todas as incertezas perante o prenúncio nigeriano, é factual que a Nigéria está a ser assolada por umas das piores cheias das últimas décadas com vastas áreas e infraestruturas submersas e mais de 200 mil residências parcialmente ou totalmente destruídas.

De acordo com o jornal norte-americano The New York Times, a intempérie já provocou a morte de pelo menos 603 pessoas, mais de 2.400 feridos e o número de desalojados ultrapassa 1,4 milhões. Em várias regiões este será apenas o início de um mês de cheias.

A África subsaariana tem sido uma das regiões do planeta mais afetadas pelas mudanças climáticas. Esta situação é ainda agravada pelo facto de os preços dos alimentos em muitos países da região continuarem a subir em comparação com a média dos últimos cinco anos, sobretudo, desde 24 de fevereiro quando a "operação militar especial" da Rússia na Ucrânia teve início. 

Segundo um relatório conjunto publicado em setembro pelo Programa Alimentar Mundial e pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, a Nigéria é um dos seis países que enfrentam um maior risco de fome extrema.

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