EXCLUSIVO || “Voz do povo oprimido”: ativista e Nobel da Paz Narges Mohammadi defende as mulheres iranianas a partir da prisão
Ali, de 16 anos, lembra-se perfeitamente da última vez que viu a sua mãe em casa. Ela cozinhou ovos para ele e para a sua irmã gémea, Kiana, ao pequeno-almoço, disse-lhes para estudarem muito, despediu-se e mandou-os para a escola. Quando regressaram, ela tinha desaparecido. Eles tinham oito anos.
A sua mãe é Narges Mohammadi, uma mulher cujo nome se tornou sinónimo de luta pelos direitos humanos no Irão - uma batalha que custou quase tudo a esta ativista.
Esta sexta-feira, ela recebeu o Prémio Nobel da Paz pela "sua luta contra a opressão das mulheres no Irão e pela sua luta para promover os direitos humanos e a liberdade para todos", anunciou o Comité Nobel norueguês em Oslo.
Mohammadi esteve presa durante a maior parte das últimas duas décadas. Foi condenada repetidamente por ser a voz dos que não têm voz, pela sua campanha implacável contra a pena de morte e o confinamento solitário - que teve de suportar durante semanas a fio.
Atualmente, está a cumprir uma pena de 10 anos e 9 meses, acusada de ações contra a segurança nacional e de propaganda contra o Estado. Foi também condenada a 154 chicotadas - um castigo que, segundo grupos de defesa dos direitos humanos, ainda não foi aplicado -, a proibições de viajar e outras.
Mas nem mesmo as celas mais escuras da famosa prisão de Evin, em Teerão, conseguiram esmagar a sua poderosa voz.
Numa gravação áudio do interior da prisão de Evin, partilhada com a CNN antes do anúncio do Prémio Nobel da Paz, ouve-se Mohammadi a liderar os cânticos de "mulher, vida, liberdade" - o slogan da revolta desencadeada no ano passado pela morte de Mahsa Jhina Amini, de 22 anos, sob custódia da polícia da moralidade do país. Foi presa por alegadamente não usar corretamente o lenço na cabeça.
A gravação é interrompida por uma breve mensagem automática - "Esta é uma chamada telefónica da prisão de Evin" - enquanto as mulheres são ouvidas a cantar uma versão em farsi de "Bella Ciao", a canção folclórica italiana do século XIX que se tornou um hino de resistência contra os fascistas e que foi adoptada pelo movimento de libertação do Irão.
"Este período foi e continua a ser a época de maior protesto nesta prisão", disse Mohammadi à CNN, em respostas escritas a perguntas feitas através de intermediários.
Fora dos muros da prisão, a brutal repressão das autoridades iranianas contra os protestos reprimiu em grande parte o movimento desencadeado pela morte de Amini e a polícia da moralidade retomou as suas patrulhas ao uso de véu em julho. Esta semana, ativistas iranianos acusaram a polícia de agredir uma adolescente por não usar lenço na cabeça numa estação de metro de Teerão, o que levou à sua hospitalização com ferimentos graves. As autoridades iranianas afirmaram que a causa foi a tensão arterial baixa.
Mohammadi, em comentários recebidos na quinta-feira pela CNN, disse que o comportamento do governo tinha mais uma vez "levantado as nossas preocupações" e era "indicativo dos seus esforços concertados para impedir que a verdade viesse à tona em relação a Armita Geravand".
O hijab obrigatório
Mohammadi conhece demasiado bem o preço de falar publicamente. Em agosto, foi condenada a mais um ano de prisão pelo seu ativismo contínuo dentro da prisão, depois de ter dado uma entrevista aos meios de comunicação social e feito declarações sobre agressões sexuais na prisão.
Ela já estava a cumprir pena por ter publicado um livro no ano passado sobre os métodos brutais das prisões iranianas, intitulado "White Torture: Interviews with Iranian Women Prisoners" (à letra, "Tortura Branca: Entrevistas com Mulheres Iranianas Presas"), bem como um documentário que conta as histórias de prisioneiras mantidas em regime de isolamento - um castigo que a própria Mohammadi suportou.
Mas ela não se deixa intimidar. Recentemente, Mohammadi enviou à CNN uma longa carta a insurgir-se contra quatro décadas de uso obrigatório do hijab pela República Islâmica e a chamar a atenção para o que ela diz ser a hipocrisia de um Estado religioso que recorre à violência sexual contra as mulheres detidas.
Quando chegou ao poder há quatro décadas, escreve, o regime religioso utilizou o hijab obrigatório para "mostrar a imagem de domínio, subjugação e controlo sobre as mulheres" como forma de controlar a sociedade.
"Não podiam colocar uma abaya e um turbante em metade da população, ou seja, nos homens da sociedade", lê-se na carta. "No entanto, adornaram facilmente metade da população iraniana com o 'hijab obrigatório', o véu, o chador, o manteau e as calças de cor escura para apresentar ao mundo a face odiosa do sistema religioso despótico".
"Imaginem as mulheres iranianas que, durante 44 anos, foram obrigadas a usar uma cobertura para a cabeça, casacos compridos e calças de cor escura no calor do verão e, em alguns locais, chadors pretos.
"Pior do que isso, têm estado sob pressão psicológica para aderir estritamente ao hijab obrigatório, tudo para preservar a imagem de homens islâmicos religiosos e garantir a segurança e a pureza das mulheres. Agora, essas mesmas mulheres estão a sofrer agressões sexuais e assédio contra si próprias".
Abuso "sistémico" de mulheres detidas
Na sua carta e nas respostas à CNN, Mohammadi descreve em pormenor os incidentes de violência sexual contra ela e outras mulheres detidas em diferentes instalações prisionais, que remontam a 1999.
Segundo Mohammadi, os presos políticos e as mulheres acusadas de crimes foram agredidos pelas forças de segurança, pelas autoridades prisionais e pelo pessoal médico.
De acordo com Mohammadi, a violência sexual contra as mulheres detidas "aumentou significativamente" desde os protestos que varreram o Irão no ano passado, levando-a a descrever os abusos como sendo agora "sistemáticos".
"As vítimas contaram as suas histórias nas reuniões que tiveram com os funcionários que vieram à prisão de Qarchak para inspeção", escreve Mohammadi. "Na prisão, ouvi as narrativas de três mulheres que protestavam e que foram sexualmente agredidas. Uma delas era uma conhecida ativista do movimento estudantil que, ao entrar na prisão, apresentou queixa às autoridades e anunciou que, depois de ter sido detida na rua, tinha sido algemada numa mão e numa perna e amarrada a duas argolas no topo da porta do carro. E, nessa posição, foi violada".
Mohammadi diz que ela e outro prisioneiro visitaram a área de "quarentena" da prisão sob o pretexto de levar comida a outro recluso e que viram a jovem com nódoas negras no estômago, braços, pernas e coxas.
O governo iraniano tem negado as alegações generalizadas de agressões sexuais contra os detidos, incluindo numa investigação aprofundada da CNN no ano passado, chamando-lhes "falsas" e "sem fundamento".
Durante anos, Mohammadi tem falado sobre a violência sexual contra prisioneiros, quebrando tabus no seu país conservador. Em 2021, ela organizou um debate através da rede social Clubhouse, onde mulheres, incluindo Mohammadi, partilharam as suas histórias de agressões por "agentes" do governo da década de 1980 a 2021. Ela foi penalizada por isso, de acordo com Mohammadi e com grupos de direitos.
"As mulheres que sofrem assédio sexual ficam cheias de raiva, medo e insegurança, mas quando a sua feminilidade é escondida e suprimida por reivindicações ideológicas e religiosas, elas não apenas ficarão com raiva e aterrorizadas, mas também se sentirão enganadas e manipuladas pelo governo, o que é ainda mais angustiante", escreve ela. Este tipo de abuso sexual "deixa cicatrizes tão profundas nas suas almas e mentes que é difícil recuperar, e talvez nunca recuperem totalmente", acrescentou.
"Suportar todas as dificuldades"
Por se recusar a ser silenciada atrás das grades, Mohammadi foi proibida de falar diretamente com o marido e com os filhos durante os últimos 18 meses.
"Quando a nossa mulher e a pessoa mais próxima de nós está na prisão, acordamos todos os dias preocupados com a possibilidade de recebermos más notícias", disse o marido, Taghi Rahmani, à CNN numa entrevista recente em França, onde vive no exílio com os filhos desde que Mohammadi foi presa em 2015.
Rahmani e grupos de defesa dos direitos humanos manifestaram a sua preocupação quanto à saúde de Mohammadi e ao acesso a cuidados médicos, depois de ela ter sofrido um ataque cardíaco e ter sido operada no ano passado.
Rahmani exibe com orgulho os prestigiados prémios internacionais que recebeu em seu nome. Ela tem uma "energia infinita para a liberdade e os direitos humanos", disse ele.
Taghi Rahmani, que foi preso político durante 14 anos, conheceu Mohammadi quando ela assistiu às suas aulas de história contemporânea na clandestinidade, em 1995, segundo ele.
Nos últimos oito anos, teve de ser pai e mãe dos seus gémeos, agora adolescentes.
"Kiana costumava sempre dizer que, quando a mãe está cá, o pai não está. Isso não é bom", diz . "Mas quando alguém escolhe um caminho, tem de suportar todas as dificuldades."
Ali, tal como o pai, é resoluto, dizendo que a mãe tem de continuar a lutar "pelo Irão, pelo nosso futuro".
"Estou muito orgulhoso da minha mãe", disse Ali à CNN. "Nem sempre esteve connosco, mas sempre que esteve, cuidou bem de nós... era uma boa mãe e continua a ser... Agora já aceitei este tipo de vida. Qualquer sofrimento que eu tenha que suportar não importa".
Kiana, que preferiu não falar com a CNN, quer a mãe ao seu lado. O pai diz que Kiana acredita que se trouxermos uma criança a este mundo, temos de assumir a responsabilidade de a criar.
A dor da separação da família é algo com que Mohammadi vive todos os dias. É o custo de um sacrifício que ela escolheu fazer, pelo sonho de uma liberdade futura que definiu a sua vida.
"O momento em que me despedi de Ali e Kiana não foi muito diferente daquele em que quase morri no pátio arborizado de Evin", escreve ela à CNN, sem especificar quando foi esse acontecimento. "Apanhei os dentes-de-leão do quintal de Evin. Fiquei descalça no asfalto quente a 14 de julho", disse, referindo-se ao dia - apenas algumas semanas depois do último pequeno-almoço - em que se despediu dos seus filhos na prisão antes de eles partirem para o exílio em França. "Os meus pés estavam a arder, mas o meu coração estava em chamas. Mandei os dentes-de-leão para o céu e as mãos, os pés e os rostos infantis dos meus filhos passaram pelos meus olhos e as lágrimas caíram como chuva de primavera".
"Se olhar para a prisão pela janela do meu coração, fui mais estranha para a minha filha e para o meu filho do que qualquer outro estranho e perdi os melhores anos da minha vida e o que foi não volta mais. Mas tenho a certeza de que o mundo sem liberdade, igualdade e paz não vale a pena ser vivido ou sequer observado.
"Optei por não ver os meus filhos nem ouvir as suas vozes e ser a voz das pessoas oprimidas, das mulheres e das crianças, da minha terra", afirma.