“Diziam que o que ela estudava não interessava nada” e agora vence o Nobel da Medicina. “Todo o mundo beneficiou desta descoberta”

8 out 2023, 09:00
A biotecnologia mRNA é uma arma contra a covid-19, mas pode também ser uma aliada no combate a outras doenças

Não é a primeira vez que descobertas sobre o RNA vencem o Nobel da Medicina, mas a edição deste ano tem um significado diferente: “todo o mundo beneficiou desta descoberta”. À CNN Portugal, a investigadora Cecília Maria Arraiano fala da importância desta atribuição e destas vacinas

A descoberta de uma forma de RNA como chave para a produção de vacinas seguras e eficazes contra a covid-19 valeu a Katalin Karikó e a Drew Weissman o Nobel da Medicina deste ano. Mas a pandemia veio apenas acelerar aquilo que há muito estudaram, foram, na verdade,  décadas a rumar contra a maré: a investigadora húngara de 68 anos dedica-se à investigação do RNA desde os anos 1980 e juntou-se ao cientista norte-americano de 64 anos em 1997, sempre com este parente do ADN na mira. E a persistência de ambos foi determinante em plena pandemia.

O Nobel foi dado a quem faz a ciência básica e a quem lutou muito para conseguir isto, contra tudo e contra todos. Quando ela [Katalin] fazia as pesquisas e trabalhava com o coronavírus, diziam que era vírus da constipação, mas o mundo precisou, todo o mundo beneficiou desta descoberta”.

Cecília Maria Arraiano, bióloga e investigadora no ITQB - Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa, dedica-se ao estudo do RNA há vários anos - mais propriamente “como os próprios vírus trazem a sua própria maquinaria para fazer o RNA deles” - e vê com agrado a atribuição de mais um prémio a investigações sobre esta molécula. “É um admirável mundo novo do RNA que está a ajudar-nos, tanto na medicina, como no mundo em geral”, destaca, lamentando que “às vezes a burocracia pára muito as descobertas” e que, neste caso, a chegada de uma emergência de saúde pública a nível mundial “possibilitou um grande avanço”.

Os dois investigadores foram laureados pelas descobertas relativas a modificações de bases nucleósidas que permitiram o desenvolvimento de vacinas eficazes de mRNA contra a covid-19. “O que eles descobriram foi que quando se introduz o RNA, o nosso corpo tem logo uma reação, quer logo matá-lo e estamos preparados para isso. Então, perceberam que havia outro tipo de RNA, o de transferência, que não dá logo uma resposta imunitária. Verificaram as alterações pequeninas que o RNA tem para não dar resposta imunitária e que bastava uma modificação muito pequena no RNA mensageiro para o nosso corpo já não atacar. E assim já se podia usar [o RNA] como vacina”, explica a cientista portuguesa.

Katalin Karikó e Drew Weissman vencem Nobel da Medicina esta segunda-feira (Getty Images)

À CNN Portugal, Cecília Maria Arraiano destaca a “persistência” da colega húngara que “levou a um grande avanço” científico e médico. Apesar de ter trabalhado em conjunto com Weissman - que deu uma entrevista à TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) -, Karikó acaba por ser vista como o rosto no estudo do RNA, sobretudo associado ao coronavírus. 

“Quero destacar a persistência e resiliência desta jovem quando começou, que fez os seus estudos na Hungria e só depois foi para os Estados Unidos. Diziam que o que ela estudava não interessava nada, mas é um Nobel para a ciência básica e não para a ciência aplicada, primeiro temos de saber a base, os mecanismos”, destaca a investigadora do ITQB.

Mas para Cecília Maria Arraiano este Nobel ganha ainda mais importância pelas portas que pode abrir, seja na redução do estigma e desconfiança que ainda existem face às vacinas, mas também na possibilidade de aumentar o interesse da indústria em estudar este parente do ADN noutras patologias, como já acontece, por exemplo, como o cancro, até porque, explica a investigadora portuguesa, os “custos envolvidos são muito reduzidos, pode-se fazer uma medicina mais personalizada, rápida e eficaz, com aplicações para o campo da medicina humana e veterinária”.

Segundo a cientista portuguesa, “o RNA é uma forma muito mais rápida e eficaz” de lutar contra um agente externo e uma vez que “nunca se pode inserir no genoma, isso só o ADN, é muito mais fácil de ser produzido, pode ser em vitro”. Além disso, acrescenta ainda, é “possível adaptar o RNA para o vírus e doença que se quer, é muito mais fácil, além disso, entra no nosso corpo, faz o seu serviço, não é uma coisa que fica, é temporário”.

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