“Temos membros que não estão a dormir nas suas casas porque há uma perseguição homem a homem”: Moçambique, o que se passa?

CNN Portugal | Agência Lusa , PF
20 out 2023, 10:27
Manifestações em Moçambique (LUSA)

Acusações de fraude, eleições anuladas, perseguição policial - além de um “elevado nível de violência”

Moçambique vive por estes dias momentos de elevada tensão nas ruas devido às eleições autárquicas do passado dia 11 de outubro.

Os resultados anunciados deram a vitória à FRELIMO, partido no poder desde a independência, em 64 das 65 autarquias do país, ficando a faltar a da Beira, onde o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) exerce o poder na cidade desde 2009.

“A FRELIMO preparou-se para vencer de forma justa e transparente estas eleições, onde garantiu efetivamente a vitória em 64 das 65 autarquias, conforme os resultados anunciados pelos órgãos legítimos e competentes”, afirmou terça-feira o secretário-geral do partido, Roque Silva, em conferência de imprensa.

A oposição, no entanto, não aceitou os resultados. O presidente da RENAMO, Ossufo Momade, denunciou aquilo que considera ser uma “megafraude” para manter a FRELIMO e o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, no poder.

“A megafraude, a manipulação dos resultados eleitorais, visam criar um ambiente de guerra para o senhor Filipe Jacinto Nyusi e o partido FRELIMO manter-se no poder ilegitimamente”, afirmou no dia 15 de outubro o presidente da Resistência Nacional Moçambicana em Maputo, no final de uma reunião extraordinária alargada da Comissão Política Nacional.

“É um autêntico aniquilamento da democracia em Moçambique. Responsabilizamos o presidente da República e a Polícia da República de Moçambique por toda a instabilidade e convulsão social em consequência da fraude eleitoral.”

Momade afirmou que a comissão política nacional do seu partido “constatou com muito agrado que o partido RENAMO ganhou as eleições autárquicas”, apontando omo exemplos de vitória da RENAMO nestas eleições as autarquias de Nampula, Quelimane, Vilanculo, Angoche, Nacala, Ilha de Moçambique, Matola, Marracuene e Maputo, dizendo que são as “atas coladas nas paredes” logo após a contagem de votos que o provam.

“As orientações do Comité Central [da FRELIMO] mudaram o cenário. E nós não vamos aceitar”, assegurou.

O líder da RENAMO convocou também “todos os moçambicanos” a protestar nas ruas “em repúdio a qualquer manipulação de resultados”. O convite foi aceite por milhares de cidadãos do país que, a partir desta terça-feira, se começaram a manifestar nas principais cidades do país.

As manifestações, contudo, não foram totalmente pacíficas. No dia 17 de outubro, elementos da polícia moçambicana efetuaram vários disparos de gás lacrimogéneo sobre a multidão que marchava em Maputo desde a Praça dos Combatentes até à autarquia da cidade.

Não se registou qualquer ferido mas, no momento da intervenção policial, o líder da RENAMO e o candidato do partido à câmara de Maputo, Venâncio Mondlane, foram obrigados a refugiar-se no interior da viatura em que seguiam.

Contactado pela Lusa, o porta-voz da Polícia da República de Moçambique (PRM) na cidade de Maputo, Leonel Muchina, explicou que aquela força tem vindo a acompanhar as marchas realizadas pelos partidos nos últimos dias para evitar que alguns participantes as usem para a “invadir ou danificar infraestruturas públicas e privadas”, mas também para manter a circulação nas “ruas que são de maior fluxo de viaturas e de pessoas”.

A ação da polícia provocou a fuga de centenas de pessoas mas a marcha foi depois retomada, com passagem junto à Comissão Nacional de Eleições, sem mais incidentes embora num clima tenso, com agentes da polícia fortemente armados, incluindo a força cinotécnica, a protegerem as instalações dos órgãos eleitorais.

Face ao clima vivido, a Ordem dos Advogados de Moçambique manifestou “profunda preocupação” face ao “elevado nível de violência” após as eleições, que “revela um descrédito nas instituições que administram o processo eleitoral”.

“Os níveis de violência, além de poderem desacreditar qualquer resultado eleitoral, podem igualmente gerar suspeição relativa à integridade do próprio ato eleitoral como um todo e das instituições que o administram”, refere um comunicado daquela Ordem, assinado pelo bastonário, Carlos Martins.

“Um vício que afetou a liberdade e transparência”: tribunais dão razão à oposição

No mesmo dia em que Ossufo Momade pediu aos moçambicanos para saírem de casa, a RENAMO submeteu um ofício junto do Tribunal Judicial do Distrito de Nhamankulu, em Maputo, no qual denunciou a alegada fraude com recurso a cópias de editais falsificados para o apuramento intermédio dos resultados pela Comissão Distrital de Eleições (CDE).

Na quarta-feira, o tribunal deu razão à RENAMO e anulou e mandou repetir as eleições autárquicas em 64 assembleias de voto de dois distritos da capital, considerando que houve “um vício que afetou a liberdade e transparência” do processo.

“Os editais que serviram para o apuramento intermédio deste distrito são diferentes dos editais recebidos pelos delegados de candidatura no momento do apuramento parcial nas mesas de votação. (…) Para o apuramento intermédio, foram usadas cópias de editais falsificados”, refere-se no acórdão do tribunal, citado pela agência Lusa.

Segundo o acórdão, testemunhas em sede de tribunal foram unânimes ao afirmar que a deliberação nº3/ CDE/2023 foi fruto das cópias de editais e atas que o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE) no distrito, através do seu presidente, trouxe para realização do apuramento intermédio.

“O tribunal entende que os órgãos que se encontravam na CDE ignoraram os factos mesmo sabendo que atropelavam e feriam a lei”, pode ler-se no documento, que avança ainda que a deliberação que deu vitória à FRELIMO, partido no poder em Moçambique, foi redigida na ausência dos vogais da RENAMO.

O coletivo de juízes concluiu que o diretor do STAE no distrito, Sérgio Macavele, levou ao apuramento intermédio um total de 42 editais falsos e um original dentro de um envelope não lacrado, contrariando a lei, que define que os documentos do processo devem ser colocados num saco inviolável.

“Ainda no apuramento intermédio, verificou-se lançamento repetitivo de resultados da mesma mesa com base em editais falsificados a favor do partido FRELIMO, apesar de protestos dos vogais da Comissão Distrital de Eleições”, segundo a mesma nota.

Para além destes dois distritos de Maputo, as eleições também foram anuladas pelos tribunais locais de duas autarquias: Cuamba, na província do Niassa, e Chokwé, na província de Gaza.

Face a estas decisões, Venâncio Mondlane defendeu que o Ministério Público deve acusar os envolvidos nas irregularidades que levaram à anulação de escrutínios em alguns pontos do país, como forma de desincentivar as fraudes eleitorais.

“Desde que nós começamos o nosso sistema multipartidário, este sempre foi, digamos assim, o `modus operandi´ do partido no poder. A Procuradoria-Geral da República deve acusar muito rapidamente as pessoas que estiveram na origem, os autores, tanto morais como materiais destas falsificações (…) Se a PGR for vertical como os tribunais foram, isto vai realmente ser algo, digamos, inédito no sistema e pode ser o início da estabilização e de uma nova página na transparência dos processos eleitorais”, declarou o candidato da RENAMO à autarquia de Maputo esta terça-feira em entrevista à Lusa.

MDM queixa-se de perseguição da polícia e pede recontagem dos votos

No dia 14 de outubro, o líder do MDM, Lutero Simango, acusou a polícia de perseguir os membros do partido, o segundo maior da oposição, no processo pós-eleitoral das autárquicas.

“O ambiente político aqui não está bom, os nossos membros estão sendo perseguidos e presos”, denunciou o dirigente na Beira, pouco depois de o partido ter sido declarado vencedor das eleições autárquicas naquela cidade, capital da província de Sofala.

Segundo o dirigente, pelo menos 13 membros, incluindo o delegado político no município do Dondo, na mesma província, foram presos “injustamente”.

“Temos membros que não estão a dormir nas suas casas porque há uma perseguição homem a homem”, afirmou Simango.

“E até se você for encontrado a vestir a camiseta do MDM é preso novamente”, criticou, responsabilizando a Polícia da República de Moçambique (PRM).

“O mais grave ainda é que a nossa sede distrital do Dondo foi invadida pela PRM sem nenhum mandado judicial. Invadiram a nossa sede, tiraram muitas coisas e isto preocupa-nos. Estamos a fazer as devidas diligências para saber as reais motivações desta ação policial”, denunciou ainda.

Na quarta-feira, Simango pediu a total recontagem dos votos das eleições do dia 11 e criticou a gestão feita pela Comissão Nacional de Eleições (CNE) do país.

“É correto que se faça a recontagem dos resultados na base dos editais existentes”, disse Lutero Simango, durante uma conferência de imprensa em Maputo.

Para o MDM, a CNE tem demonstrado uma “incapacidade total” de gerir os processos eleitorais em Moçambique, criticando também a “independência aparente” do STAE em relação à CNE, que coloca em causa a transparência do processo.

 “O STAE vai numa direção e a CNE vai numa outra direção, então nós não podemos garantir um processo transparente e justo enquanto estas duas entidades andam em rotas opostas”, referiu o presidente do MDM.

EUA dizem que há “relatórios credíveis de irregularidades” e consórcio denuncia “elevado nível de fraude

Na segunda-feira, os Estados Unidos reconheceram “credibilidade” aos relatórios sobre “irregularidades” nas eleições, pedindo que as autoridades do país considerem todas as queixas apresentadas.

“Com base nos relatórios da embaixada dos EUA e de outros observadores, dos meios de comunicação social locais, dos delegados dos partidos, dos funcionários eleitorais e das organizações da sociedade civil, o dia da votação nos 65 municípios foi, de um modo geral, pacífico, mas existem muitos relatórios credíveis de irregularidades no dia da votação e durante o processo de apuramento dos votos”, refere a embaixada dos EUA, numa nota enviada à comunicação social e citada pela Lusa.

“A Comissão Nacional de Eleições (CNE) deve garantir que todos os votos são contados de forma exata e transparente”, referiu a embaixada na nota, reconhecendo a determinação com que os moçambicanos participaram no escrutínio.

Para o governo norte-americano, que acompanhou o processo eleitoral em pelo menos 12 dos 65 municípios moçambicanos, um processo eleitoral “limpo, transparente e pacífico é essencial para o futuro da democracia multipartidária” em Moçambique.

Por sua vez, segundo a Lusa, o consórcio "Mais Integridade", coligação de organizações não-governamentais moçambicanas, acusou a FRELIMO de ter manipulado os resultados, protagonizando “um nível elevado de fraude”.

“Com base na nossa observação e evidências recolhidas nas mesas de voto, notamos com preocupação que as sextas eleições autárquicas não foram transparentes, íntegras e imparciais”, disse o diretor do Centro de Integridade Pública (CIP), Edson Cortez, que leu o comunicado “Roteiro da Fraude”, com a posição daquele consórcio.

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