O conflito em Cabo Delgado continua aceso e com necessidades humanitárias a agravarem-se para mais de um milhão de pessoas
Rebeldes no norte de Moçambique obrigaram uma criança a acompanhar a decapitação do pai, um exemplo dos traumas a que estão sujeitas as populações, descreveram hoje os Médicos sem Fronteiras, alertando para a falta de respostas de saúde mental.
“Havia um rapaz, hoje com 6 anos, que estava aparentemente a fugir com o pai, há uns anos, quando foram apanhados. O pai foi decapitado. Depois, deram a cabeça ao rapaz e ele esteve a fugir por três dias” pelo mato, carregando-a consigo, contou hoje Philip Aruna, dirigente regional dos Médicos Sem Fronteiras (MSF).
Passaram-se três dias “até se reunir com os membros da família”, detalhou, durante uma mesa-redonda ‘online’ para assinalar os dois anos sobre o ataque de insurgentes a Palma, o mais mediático desde o início da insurgência em Cabo Delgado, em 2017.
No evento, os MSF destacaram que o conflito continua aceso e com necessidades humanitárias a agravarem-se para mais de um milhão de pessoas.
O episódio que esta criança viveu serviu para realçar o estado grave da saúde mental da população, sem que haja cuidados à altura, um alerta feito por mais que uma vez durante o evento.
“Hoje, a criança tem 6 anos e imaginem o stress por que tem passado” depois daquele episódio, referiu Aruna.
Só que a situação é semelhante a outras relatadas à organização, sendo que metade dos afetados no conflito são crianças e jovens.
Atualmente, a criança está a ser acompanhada numa atividade dedicada a saúde mental que os MSF mantêm na região “e é muito importante acompanhar a sua recuperação”, referiu.
“Agora, começa a sorrir de novo, após várias sessões” de apoio, porque quando os médicos o observaram pela primeira vez, rejeitava interações com outras pessoas, acrescentou.
“Foi uma experiência traumática também para a equipa dos MSF, chocada com a história que é só um exemplo” do impacto do conflito na população do norte de Moçambique.
“A situação da saúde mental é crítica”, referiu Helena Cardellach, coordenadora de emergência dos MSF em Cabo Delgado.
Em Mocímboa da Praia, acompanhou pessoas que “não conseguiam falar” quando voltavam aos seus locais de origem, passados três anos, “por causa das experiências traumáticas que tiveram quando a vila foi atacada”, relatou.
“Isto mostra um pouco o cenário das necessidades” de pessoas levadas ao extremo, que agora sofrem de vários tipos de ansiedade e stress e que “nem sabem como vai ser o seu futuro” ou se poderão recomeçar as suas vidas, acrescentou.
Os MSF testemunham vidas de famílias – quase sempre com várias crianças - que têm passado os anos a fugir de um lado para outro, sempre em busca de um local seguro, mas, quando lá chegam, há novos ataques e voltam a estar em movimento.
A situação provoca um elevado “nível de stress” na população.
Os MSF dizem estar a dar algum apoio a nível de saúde mental de forma transversal a todas as suas atividades.
A província de Cabo Delgado enfrenta uma insurgência armada com alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.
A insurgência levou a uma resposta militar desde julho de 2021 com apoio do Ruanda e da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), libertando distritos junto aos projetos de gás, mas surgiram novas vagas de ataques a sul da região e na vizinha província de Nampula.
O conflito já fez um milhão de deslocados, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), e cerca de 4.000 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED.