2.863€, casa e afins: Governo quer atribuir "privilégios inéditos" a médicos brasileiros, Ordem e sindicatos de Portugal revoltados (e há 1025 médicos brasileiros que já podem exercer cá - mas sem estas condições novas)

10 ago 2023, 16:20
Jovens especialistas no SNS, mais 900 vagas. (Paulo Mumia/Getty Images)

Em causa está um anúncio de recrutamento no Brasil. Ordem dos Médicos e sindicatos acusam o Governo de estar a "desistir" dos médicos portugueses

Após o Governo ter publicado um anúncio no Brasil para atrair médicos - e com condições acima do que é dado aos médicos portugueses -, a CNN Portugal quis saber quantos médicos brasileiros já podem exercer a profissão em Portugal. Atualmente, segundo fonte oficial, existem 1025 médicos brasileiros inscritos na Ordem - mas trata-se de inscrições anteriores a este anúncio no Brasil e que pressupões condições novas a nível salarial e de regalias.

Jorge Roque da Cunha, do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), reconhece à CNN Portugal que os valores monetários oferecidos aos clínicos brasileiros não são muito diferentes dos auferidos, por exemplo, pelos médicos que trabalham em São Paulo e que não sabe se a ideia terá o impacto desejado. “A grande diferença é a oferta de casa”, assume. Em pleno processo negocial com o Ministério da Saúde, o presidente do SIM não tem dúvidas que "António Costa tem negligenciado objetivamente o investimento no Serviço Nacional de Saúde".

A Ordem dos Médicos acusa mesmo o Ministério da Saúde de estar a prejudicar deliberadamente o SNS e de ter uma atitude discriminatória em relação aos médicos formados e a exercerem em Portugal. Diz ainda que esta decisão é discriminatória para os utentes porque “se cria uma Saúde a duas velocidades em que utentes do SNS têm direito a um médico especialista em Medicina Geral e Familiar e outros a um médico sem nenhuma especialidade”, explicam através de um comunicado assinado pelo bastonário Carlos Cortes.

O bastonário critica também que se esteja a oferecer a médicos estrangeiros o que não se oferece aos nacionais e que chama “privilégios inéditos”: “Um vencimento de especialistas para médicos não especialistas, horários mais favoráveis e habitação”. Teme mesmo que esta decisão “afaste” ainda mais “os médicos do SNS”.

2863€ brutos e demais condições

Os médicos brasileiros alvo do anúncio teriam direito a um salário bruto de 2.863 euros por mês, seis euros por dia de subsídio de refeição, contratos de três anos, uma carga horária de 40 horas semanais que podiam ser concentradas em quatro dias da semana e uma casa. Sem esquecer os habituais 22 dias férias.

A notícia do anúncio para atrair médicos brasileiros foi avançada pelo jornal Público na semana passada e as condições oferecidas estão longe do que é permitido ambicionar a um médico português formado em Portugal. A ideia da Administração Central do Sistema de Saúde, responsável pelo anúncio, é atrair os médicos brasileiros a assumirem funções nos Centros de Saúde com maiores carências: Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.

Ainda segundo a mesma notícia do Público, os médicos precisam de ter “o reconhecimento de qualificações estrangeiras” no país e será dada preferência a “um mínimo de cinco anos de experiência”.

Ou seja, quem se candidatar tem de passar pelo habitual processo de reconhecimento do seu curso de medicina junto do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas. E este é um processo burocrático, lento, que obriga à realização de várias provas. Um caminho penoso que faz muitos desistiram pelo meio. Para realizarem as provas e verem o curso reconhecido, os candidatos precisam de se inscrever numa das oito faculdades portuguesas que lecionam o curso de Medicina.

Numa reportagem publicada pelo jornal brasileiro Folha de S. Paulo, um psiquiatra brasileiro que trabalha em Portugal confessa que teve sorte: "Sou um em cem. Tive muita sorte". Recorda ainda que antes de ver reconhecida a sua especialidade pela Ordem trabalhou como generalista "na linha da frente da covid-19" e fez de tudo um pouco nas urgências dos hospitais. Atualmente está a exercer no privado.

Em março estariam inscritos na Ordem dos Médicos 4.503 clínicos estrangeiros. Mas isso não era resultado de um processo fácil, nem significava que todos estavam a trabalhar no SNS. O psiquiatra  brasileiro admitiu mesmo que tentava demover muitos conterrâneos mais jovens por ser "mais fácil verem reconhecido o diploma noutros países" que em Portugal.

Governo quer facilitar reconhecimento dos cursos

A CNN Portugal tentou saber junto do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), presidido por Helena Canhão, e a entidade responsável pela gestão do processo, quantos clínicos brasileiros tinham dado entrada no processo de reconhecimento do curso nos últimos cinco anos e quantos aguardavam resposta. Até ao momento, não foi dada qualquer resposta ao email enviado.

A CNN Portugal também questionou o CEMP sobre se tinha sido contactada pelo Governo acerca da possibilidade de se procurar médicos noutros países e da necessidade de estes verem o curso reconhecido. E também aqui não obtivemos resposta.

Perante a dificuldade e lentidão deste reconhecimento, e tendo já em mente a possibilidade de contratação de médicos estrangeiros, o Governo português aprovou no início de julho um “decreto-lei que altera o regime jurídico de reconhecimento de graus académicos e diplomas de ensino superior atribuídos por instituições de ensino superior estrangeiras”. “O diploma aprova um regime excecional de reconhecimento de grau académico em medicina aos titulares de grau académico em medicina conferido por uma instituição de ensino superior estrangeira que venham trabalhar no Serviço Nacional de Saúde”. 

Ainda não há muita informação sobre o conteúdo do decreto-lei, mas, em resposta ao jornal Público, fonte do Ministério da Saúde explicou que iriam “ser identificadas universidades que, à partida, oferecem garantias de qualidade da formação e permitirão um reconhecimento semiautomático das habilitações académicas e profissionais, um regime mais aligeirado, mas que pressupõe, mesmo assim, que passem individualmente pelo crivo das escolas médicas”. Garantindo ainda que “o Governo define o contingente que pretende trazer, mas contratará apenas os que obtiverem a equivalência”.

Este diploma não foi do agrado do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, também segundo o Público. Escreve o jornal que Helena Ganhão justifica num parecer pedido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que “há um largo número de médicos estrangeiros a viver em Portugal à espera de reconhecimento” e que estes podiam eventualmente “concorrer a uma época especial de reconhecimento do grau académica em Medicina”.

Por fim, a atual responsável pela CEMP avisa que, “caso seja este o entendimento do Governo, o diploma tem de o justificar sob pena de não se garantir uma igualdade de oportunidades”.

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