Maria João Vaz: "Não tenho qualquer dúvida em relação ao meu género. Sinto-me 100% mulher"

21 out 2023, 18:00
A atriz Maria João Vaz

Viveu "uma vida de máscara" e de tristeza sem saber verdadeiramente quem era. "Estive presa", diz. Aos 52 anos, a atriz iniciou a sua transição de género e hoje assume-se como uma mulher - feliz e livre. E fala de tudo isso no livro "Memória de uma epifania"

Quando pensa na sua vida passada, Maria João Vaz não se reconhece: "É tipo aquelas máscaras da 'Missão Possível', que eles tiram e depois fica uma coisa enrugada no chão, sem vida, sem forma. É exatamente assim que eu encaro tudo o que envolve o meu dead name e o meu passado", diz. A atriz, que tem agora 59 anos, viveu durante mais de 50 anos sem conhecer a sua verdadeira identidade feminina. "Eu sempre tive duas vidas. Tive uma vida que era de máscara e tenho a minha vida verdadeira, que eu antes não conseguia ver. Esse passado não me diz nada, é só tristeza. Cada vez que me lembro que, para além de eu não viver em pleno, as pessoas que me rodearam, em especial as minhas filhas, passaram uma parte muito importante da vida sem me conhecer na realidade... Traz-me uma grande mágoa tê-las privado disso. Mas se nem eu me conhecia na realidade..." Até ao momento que teve uma epifania, diz. Em que percebeu claramente o equívoco em que tinha vivido. "A partir desse momento não tive dúvidas", assegura. 

É sobre isso que fala em "Memória de uma epifania", o livro de memórias que acaba de lançar pela Oficina do Livro, em que recua até à infância e, sem tabus, lembra as dúvidas, as experiências, as relações, a permanente busca pela sua verdade. Maria João recorda a relação com a mãe, com o pai, com os irmãos. As idas à praia e à Feira Popular, a escola, os colegas, as viagens com a família, as primeiras vezes em que se vestiu com roupa de mulher nas brincadeiras de crianças. Os primeiros sentimentos de culpa. As crises de ansiedade. "Sempre me senti à parte, diferente e solitária; não me identificava com ninguém", escreve. "A minha mãe e o meu pai nunca puseram em causa o meu género, pelo menos que eu saiba. Fui educada segundo os padrões binários vigentes. Eram outros tempos, dizem-me. Havia pouquíssima informação, estávamos antes do 25 de Abril de 1974. Havia a censura, a televisão era rudimentar e, claro, não havia Internet. Contudo, creio que quem me conhecesse bem, ou convivesse comigo no dia a dia, poderia eventualmente ter juntado as peças. Eu também poderia tê-lo feito, mas estava a viver o momento, por instinto, sem análise, sem exemplos e provavelmente com censura. (...) Havia muita falta de informação, mas as minhas atitudes deveriam ter soado como alertas para eles [os pais] consultarem alguém, para eu consultar alguém. Vivi perdida, sem investir em mim, boicotando a ação das professoras e dos professores, boicotando-me a mim própria, boicotando o meu próprio sucesso, boicotando o meu futuro" (pp.36 e 37).

Esta mágoa por não ter percebido mais cedo o motivo da sua infelicidade está presente ao longo de todo o livro. "Eu tenho muita dor, para mim foi um sofrimento", diz-nos Maria João, sentada numa esplanada em Lisboa, num dia de sol, acompanhada por uma das suas cadelas, Dobby. "Perdi muito tempo. Perdi uma vida. O passado poderia ter sido de outra forma. Eu não sabia o que queria, não sabia o que era, e foram muitos anos. Infelizmente, a vida passa muito depressa. Estive presa. As pessoas que estiveram presas muitos anos também sentem isto quando finalmente são libertadas."

"Sou mulher em plenitude. Sinto-o desde a camada exterior das células da minha pele ao mais profundo da medula dos meus ossos. Assim sou desde que existo, mas não me foi permitido exprimir-me livremente. E passaram anos, tantos e tantos anos. (...) Cinquentas anos de prisão, frustração, ansiedade, mentira, privação, trevas, isolamento, exlusão (...) Anos de vida sem sentido. Perdida. Desesperada. Mutilada. Distraída de viver. Esquecida de lutar. Acomodada ao falhar. Vivendo no deixa andar. Num pesadelo constante. Sem saída. Libertada da letargia, insuflaram-me vida. (...) Tudo ficou claro." (pp. 126-127)
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A ideia de escrever um livro surgiu, antes de mais, como forma de ganhar dinheiro. Apesar de ser atriz, com experiência em televisão e cinema, dobragens e publicidade, não estava a conseguir arranjar trabalho: "Decidi tentar arranjar trabalho por mim própria, a ideia era eu fazer um texto e depois fazer o meu próprio espetáculo, que poderia andar em digressão", lembra. Mas quando se sentou ao computador, a peça transformou-se numa autobiografia, um "chafurdar" na sua vida e no seu passado, em muitas emoções: "A partir do momento em que comecei a deambular nas minhas memórias isso tornou-se uma obsessão e eu queria escrever, escrever, escrever. As memórias começaram a vir, coisas de que já não me lembrava há imenso tempo. Voltei a visitar sítios que eram muito tristes. Foi um bocadinho uma catarse, uma maneira de libertar-me disto."

Maria João vê este livro também como uma batalha contra a ignorância em relação a este tema. "O maior problema é o medo - as pessoas temem o desconhecido. Em tudo, seja nas questões de género ou no resto. As pessoas interpretam os outros através dos seus medos. Ter informação é muito importante" Ao longo da obra, introduz várias notas de rodapé nas quais vai dando as explicações científicas para aquilo que foi sentindo e vivenciando. Por exemplo, a definição do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido para disforia de género: "É uma sensação de desconforto ou sofrimento, que alguém pode sentir devido a uma incompatibilidade entre o seu sexto biológico e a sua identidade de género. Essa sensação de desconforto e/ou insatisfação pode ser tão intensa que pode conduzir à depressão e à ansiedade, e ter um impacto prejudicial na vida diária." 

O livro pode ser importante para algumas pessoas, acredita Maria João Vaz. Por exemplo, para as pessoas cis (pessoas que se identificam com o género atribuído à nascença), sobretudo os homens hétero: "O homem cis hétero é educado com muitos preconceitos - o homem não chora, não tem muita intimidade com outros homens, que não haja dúvidas em relação à sua orientação sexual… Em relação às mulheres, sejam hétero ou lésbicas, muitas não nos consideram iguais. Por isso todas as pessoas deveriam ler para perceber, para já, que as pessoas trans são seres humanos como outras pessoas quaisquer. Também temos sentimentos, também temos paixões, amamos. E ainda para perceberem que os percursos das pessoas trans são todos diferentes, não somos todas iguais. Se este texto chegar ao coração de alguma pessoa é bom sinal."

O livro pode também ser importante "para pessoas que estejam no questionamento", que ainda não tenham a certeza sobre o seu género. "Sempre que vou à televisão recebo mensagens de pessoas para quem foi importante. Às vezes as pessoas não estão no sítio certo à hora certa, não têm acesso à informação. Ainda há muitas dúvidas. Nunca é demais falar sobre isto. Se puder evitar o sofrimento de alguém, melhor."

Finalmente, o livro pode ainda, de alguma forma, ajudar todos aqueles que estão próximos de uma pessoa trans, sejam familiares ou amigos. "Quando uma pessoa trans faz a transição, todas as pessoas que se relacionam com ela também fazem uma transição. Porque têm de se adaptar a essa pessoa, é uma nova realidade, novos pronomes, novo nome, nova atitude. E também perante a sociedade - porque quando falarem desse elemento da família ou desse amigo a outros, ou quando forem vistas na rua, têm de fazer também um disclosure e vão ouvir o que os outros dizem, vão sofrer pressões e têm de estar preparadas. Os companheiros das pessoas trans têm de estar preparados - isso tem a ver com convicção e, mais do que isso, com os seus princípios, a sua ética, ser coerente consigo próprio. Muitas pessoas têm vergonha, podem até gostar de uma pessoa trans mas não o conseguem assumir perante os outros."

"As pessoas devem assumir a sua verdade - eu não o fiz mais cedo porque não sabia qual era a minha verdade, achei que era deficiente. A partir do momento em que tive a minha epifania, a luz que me iluminou, eu soube exatamente quem era e o que tinha de fazer", afirma. Por isso acredita que é preciso falar sobre esta realidade para que haja cada vez menos equívocos e menos preconceitos. Se tudo correr bem, "daqui a uns anos ninguém vai ligar nenhuma a isto, será já normal. Depois o livro tornar-se-á um objeto histórico", espera.

Neste momento, Maria João Vaz sente-se feliz e em paz. "Não tenho qualquer dúvida em relação ao meu género. Sinto-me 100% mulher.  Sinto-me pacífica, não tenho medos, estou muito tranquila do mundo que me rodeia, sei onde estou e para onde vou", diz, sorridente. A única coisa que a atormenta é a falta de trabalho e, consequentemente, a falta de dinheiro. 

Em janeiro, um grupo de pessoas da comunidade LGBTQI+ protestou contra o "transfake" - ou seja, o facto de uma personagem trans ser interpretada por um ator cis - na peça "Tudo Sobre a Minha Mãe", em cena no Teatro São Luiz, em Lisboa. Maria João Vaz distanciou-se desse protesto e não quis participar no vídeo-manifesto porque considerou "o texto agressivo e desrespeitoso na linguagem e nos termos, embora a revindicação fosse legítima". Na sua opinião, "o ideal era toda a gente fazer tudo, é essa a definição de ator ou de atriz, num mundo perfeito seria assim. Como isto não é um mundo ideal e há elementos da sociedade que são discriminados pelos mais diversos motivos, temos de tentar dar oportunidades a essas pessoas." 

Após o protesto, a produção acabou por convidá-la para interpretar o papel, o que ela aceitou com bastante entusiasmo. Foi elogiada por uns, criticada por outros. "Toda esta ação deu uma visibilidade muito importante à comunidade trans", recorda. "Mas nem sempre da forma mais construtiva", admite. "Até aquele momento eu fazia papéis, eu era mulher fazia papéis, era irrelevante o género ou se era trans ou não. Eu era uma pessoa trans e as pessoas sabiam que eu era, mas era atriz. E aquele episódio foi importante porque chamou a atenção para a falta de oportunidades das pessoas trans, mas, a partir daí os criadores ficaram na dúvida se podiam convidar uma pessoa trans a fazer de cis."

Apesar da dificuldade em arranjar trabalho, Maria João procura não ficar parada - escreve, faz filmes de animação, está sempre a anotar no telemóvel ideias para novos projetos - e não deixa de sorrir: "Quando acordo de manhã, cada dia, é tão bom. Depois, claro que olho para a minha cara e sei que não sou nova, isso deixa-me triste. Vejo anúncios de casting até aos 25 ou aos 30 anos. Vou poder fazer cada vez menos, porque as pessoas mais velhas têm menos oportunidades. Mas isso não me vai parar. Isto é um renascer. Finalmente eu estou livre, finalmente eu sou."

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