Ângela nasceu aos 38 anos. Esta é a sua história: o sonho de “uma vida normal”

4 out 2023, 07:00

INVESTIGAÇÃO “ESTE É O MEU CORPO” #1/6. Ângela está entre as mais de 750 pessoas que já fizeram cirurgias de redesignação sexual, mais conhecidas como mudança de sexo. É casada com Daniel, que está entre mais de uma centena de pessoas na lista de espera no SNS. Na verdade, estão os dois: Ângela vai ter de voltar ao bloco operatório para corrigir complicações. Este é o primeiro de seis capítulos da investigação “Este é o Meu Corpo”, focada na comunidade trans em Portugal, nas suas dificuldades no acesso a cirurgias de afirmação de género e nas complicações delas resultantes. Este artigo contém conteúdo explícito que pode ser considerado sensível.

Ângela Sampaio nasceu aos 38 anos. Nasceu como mulher, depois de uma vida passada a tentar contrariar a sua verdadeira essência, a controlar os gestos, a treinar a voz, para que tudo saísse o mais masculino possível. “Sempre tive noção do meu lado feminino. Pensava que era um lado feminino. Mas não. Toda eu sou mulher”. 

Mulher trans. Ângela é uma mulher trans. O corpo carrega a história desta transição. Em criança, o pai batia-lhe para que ela fosse o homem que todos esperavam. Em adulta, a depressão tomou conta dela. E foi quando se viu sozinha, emigrada na Alemanha, depois de várias tentativas de suicídio, internada numa clínica de reabilitação, que aceitou o que sempre lhe negaram. “Cheguei ao ponto de gritar com o psicólogo, não queria falar sobre aquele tema”. 

Disforia de género. Expliquemos de forma simples: há o género que nos atribuem à nascença com base nos nossos órgãos genitais e há depois o género com que nos identificamos no nosso cérebro. Quando os dois não coincidem, gerando um desconforto tamanho, há que procurar esse encontro. Dizem os médicos que o género no cérebro não se opera ou altera. Mas o corpo, esse, pode ser ajustado. Como? Acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, hormonas e cirurgias. Ângela passou pelas etapas todas.

“Não estou nada arrependida de ter feito a cirurgia. Acontecesse o que acontecesse, queria, por favor, que o que cá estava saísse. Mas, em simultâneo, também gostaria que o que não estava cá ficasse e ficasse corretamente”.

O que estava lá era um pénis, o que ficou foi uma vagina. Ângela Sampaio foi submetida a uma vaginoplastia em março de 2021 na URGUS - Unidade Reconstrutiva Génito-Urinária e Sexual, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, o centro de referência em Portugal para as cirurgias de afirmação de género. E achava que, a partir daí, poderia viver uma “vida normal”. 

Ângela Sampaio começou a transição na área genital já depois dos 40 anos

Estenose: a complicação que Ângela não imaginava

Não foi isso que aconteceu. O sonho de Ângela, a vagina, fechou-se. Estenose, nos termos médicos - uma das complicações, embora pouco frequentes, que estão associadas a este tipo de cirurgia. Depois da cirurgia, e para que o canal vaginal que foi construído cicatrize e estabilize, é necessário que as mulheres usem um dilatador. Foi aí que os problemas de Ângela Sampaio começaram.

“Ao introduzir o dilatador, é preciso fazer força. A parte da vulva, por baixo, ficou sob pressão. Não sentia nada, porque estava tudo dormente. Fez necrose [morte dos tecidos]. Ficou duro, branco. A médica teve que lancetar. Depois não parava de sangrar. Parei a dilatação”.

Teve de voltar à marquesa. Para reconstruir o canal vaginal, foi necessário um enxerto de pele, retirada da perna. Dores angustiantes que Ângela mal consegue descrever. “Passava o dia inteiro a chorar. Não desejo a ninguém”.

“Antes, conseguia colocar o dilatador todo. A partir do momento em que me foi implantada a pele da perna, sentia que o dilatador entrava menos. Quando saí do hospital, e fui tendo a minha vida normal, fui verificando que o dilatador ia entrando cada vez menos. Ao ponto que entra só isto dentro de mim”.

“Isto” é a ponta do dedo indicador. Ângela vai ter de voltar, pela terceira vez, à mesa de operações. “Só me começaram a avisar das falhas a partir do momento em que comecei a ter problemas na dilatação. Senti-me sempre perdida”.

Descoberta do novo corpo tem sido um processo demorado

Ângela e Daniel: transição em conjunto

Ângela conheceu Daniel um mês antes de ser operada, pela primeira vez, na URGUS. Só que Daniel Soares, pelo menos aos olhos dos outros, nem sempre foi Daniel. “Somos um casal transcentrado, é essa a expressão”. Partilham o amor, os planos de futuro, os sonhos… e os receios de um processo de afirmação de género.

Ao olhar para a natureza, Daniel, de 33 anos, sabe que os humanos não são os únicos a experienciar processos de transição, a viver em corpos com os quais não se identificam. “Desde criança, recordo-me, aquilo que queria era ter um pénis para fazer xixi de pé”. Daniel vê-se como as lagartas que lhe fazem cócegas nas mãos: um dia serão o seu expoente máximo, serão borboletas.

“É viver num corpo que é um casulo. Estás preso. Não te consegues libertar. E depois tens a recompensa que o casulo vai abrir. Tu sais e podes ser tu. Espero esse dia há muito tempo”. 

Daniel Soares revela ansiedades com uma lista de espera sempre incerta

Quase dois anos de espera, pelo menos. Enquanto isso, Daniel vai usando faixas para comprimir o peito, para que os outros não o vejam como aquilo que ele não se sente: uma mulher. “Já não consigo sair da porta de casa sem a faixa. É como calçarmos umas meias para usar os sapatos. Já faz parte”.

Durante as entrevistas, Daniel vê acontecer o que mais temia: a mastectomia, que é a cirurgia para a retirada das mamas, que tinha prevista na URGUS foi desmarcada. Foi-lhe depois passado um vale-cirurgia para fazê-la numa unidade do privado à sua escolha. Tem sido assim com muitas outras pessoas trans que, ao ver o período de seis meses de espera no Serviço Nacional de Saúde (SNS) ser ultrapassado, recebem esta solução.

Mas ela não será possível em todas as fases do processo: nas cirurgias de redesignação sexual relativas à área genital, como a faloplastia [a construção do pénis], não existem unidades privadas abrangidas por este reencaminhamento do Estado. A URGUS assegura que este mecanismo é acionado de forma automática pelo SNS, não sendo da sua responsabilidade, e que todos aqueles que não encontrem solução no privado voltam para a lista de espera pública na exata posição onde estavam. As associações que trabalham com a comunidade LGBTQIA+ desconfiam que assim seja, até porque lhes faltam os dados que têm exigido aos organismos públicos.

“Chegamos a uma altura da nossa vida em que a espera é tão alargada que se torna rotina, é só mais um dia”, confessa Daniel. Contudo, nunca ninguém está preparado para a notícia da desmarcação de uma cirurgia que se deseja há muito. “Parece que nos tiram o tapete.  É o sonho, a felicidade, a ir abaixo”. E os receios a aumentarem: será que algo vai correr mal, será que vou ser parte das estatísticas das complicações?

Ângela conheceu Daniel um mês antes de realizar a vaginoplastia. Apaixonaram-se e têm uma relação desde aí

Quantos são? Um número difícil 

É praticamente impossível apurar, com exatidão, quantos pessoas a viver em Portugal realizaram já cirurgias de redesignação sexual. As contas desta investigação, com recurso a notícias antigas, dados fornecidos pelas instituições e relatos dos próprios cirurgiões permitem assegurar que foram, no mínimo, 750 desde 2011.

Na URGUS, foram 313 nos últimos seis anos: 58 em 2017, 43 em 2018, 67 em 2019, 13 em 2020, 54 em 2021 e 78 em 2022. Dados deste centro, que funciona desde novembro de 2011, mostram que praticamente 60% das cirurgias corresponderam à transição de feminino para masculino. Cerca de 67% das cirurgias foram vaginoplastias e 33% a faloplastias e metoidioplastias.

João Décio Ferreira, cirurgião que chegou a operar no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, antes de passar para o privado, no Hospital de Jesus, conta também, por alto, mais de 360 cirurgias.  

O Ministério da Saúde não consegue apontar a contabilização total de mamoplastias e mastectomias [colocação ou retirada de mamas] feitas neste âmbito, dado que existe uma articulação com o privado.

Os números de cirurgias são, naturalmente, mais pequenos do que mudanças de género levadas a cabo no Cartão de Cidadão: desde 2011 foram 2216 pessoas a pedir a alteração, segundo dados do Ministério da Justiça. Nos documentos, 808 adotaram o género feminino e 1308 o masculino.

Não é possível determinar com exatidão o número de queixas relativas às cirurgias de redesignação sexual. “O Sistema de Gestão de Reclamações existente na Entidade Reguladora da Saúde (ERS) não estratifica as reclamações recebidas especificamente sobre cirurgias de redesignação sexual”, diz esta entidade.

É possível apenas perceber as queixas relativas à “Cirurgia Plástica Reconstrutiva e Estética”: foram 109 em 2018, 133 em 2019, 96 em 2020, 128 em 2021 e 112 em 2022.

A URGUS foi alvo de uma ação da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) em 2016 e de uma recomendação da ERS em 2022. “As queixas eram maioritariamente em termos de tempos de espera. Nenhuma delas tinha a ver com um ato de negligência, com um ato de complicações que tenham a ver com uma técnica que não foi adequada para aquela situação ou que não foi bem executada”, argumenta Susana Pinheiro, coordenadora deste centro.

URGUS é o centro de referência no SNS

Erro? Negligência? Associações com mais queixas sobre cirurgias

Às associações que trabalham com a comunidade LGBTQIA+ garantem que lhes chegam cada vez mais queixas sobre as cirurgias de afirmação de género. Pelos elevados tempos de espera: veja-se que na URGUS, em Coimbra, a espera ultrapassa os 18 meses, havendo uma centena de pessoas na lista. Mas também pela falta de transparência nos critérios de acesso. E, mais grave: por complicações que são vistas como resultado de alegadas negligências e erros médicos.

“Falta transparência. E nós não conseguimos construir reivindicações em cima de algo que não sabemos”, lamenta Dani Bento, da associação ILGA Portugal, também ela uma mulher trans não binária (ou seja, que não se identifica com nenhum género em particular).

E acrescenta: “Temos vários casos de queixas por cirurgias mal feitas e de pessoas a quem não é explicado o que é preciso fazer no pós-operatório. E conhecemos casos de pessoas que não são informadas sobre quais são os efeitos das cirurgias. Mas, como se sentem encurraladas, sem alternativa, acabam por fazê-lo, porque querem avançar com as suas vidas”.

Espera para as cirurgias é uma das principais queixas

O mesmo retrato é feito por Helder Bértolo, que está à frente da Opus Diversidades

“As pessoas sentem que não lhes é dada a informação necessária para um consentimento informado. Não sabem muito bem quais são as técnicas que vão ser usadas. Temos pessoas que têm de repetir cirurgias 3, 4, 5 vezes. Ou seja, a ideia que existe é que as pessoas estão a ser tratadas como pessoas de segunda”.

Estas duas associações, assim como a Anémona, estão disponíveis para dar apoio psicológico e jurídico a todos aqueles que tenham passado por processos cirúrgicos com alegados erros médicos ou negligência. Porque há a consciência de que a população trans, além das dificuldades de aceitação do próprio corpo, lida com as barreiras da integração, vivendo muitas vezes em condições precárias.

“Levar um processo judicial para a frente é duro. Mexe com muito trauma. E torna-se uma batalha ingrata, porque as pessoas têm de criticar um sistema de que precisam”, aponta Dani Bento. Helder Bértolo conclui: “É como se as pessoas tivessem sonhado com uma coisa muito bonita e são acordadas, ou então transforma-se em pesadelo aquilo com que estavam a sonhar”.

Coimbra, que acolhe a URGUS, é encarada como uma cidade de esperança para muitas pessoas trans

Técnica do intestino: a terceira ida ao bloco

Ângela tem hoje 46 anos. Desde que Ângela é oficialmente Ângela, vive em espera. Quatro anos de espera pela primeira cirurgia genital. E agora a perspetiva de mais dois para a correção, para que a vagina volte a ter a profundidade desejada: entre 10 a 12 centímetros.

Esta mulher sempre insistiu que a sua vagina fosse construída com recurso a uma técnica que utiliza tecido do intestino delgado para o seu revestimento – e que, diz, aumenta a dilatação e a lubrificação da vagina. É usada, por exemplo, em mulheres cisgénero (que se identificam com o género atribuído à nascença) que nascem sem canal vaginal.

Só à terceira ida ao bloco é que a técnica lhe será aplicada. Até agora, a vagina tinha sido revestida com recurso à pele do pénis desconstruído e, num segundo momento, ao enxerto de pele retirado da perna.

“Quando é que nós fazemos a vaginoplastia com o intestino? Quando há uma falência da primeira opção, com uma estenose da loca vaginal. Até porque a reconstrução com o intestino tem complicações: tem que ser retirado um segmento intestino, que é feita pelos colegas da cirurgia geral”, explica a cirurgiã Susana Pinheiro, lembrando que o método privilegiado da URGUS procura aproveitar todos os materiais vindos do pénis que deixa de existir, sem interferir com outras partes do corpo.

“Quanto à lubrificação, é um facto: a pele não é lubrificada, mas há outras formas de o fazer, portanto não acho que seja uma desvantagem tão grande. E o segmento de intestino poderá ter um excesso de lubrificação e isso também causar um transtorno para a pessoa”, completa.

Sobre os dilatadores, que causaram necrose a Ângela Sampaio, a médica defende que são “equipamentos médicos” e que várias pacientes têm tido os resultados desejados com eles. Apesar disso, admite que há no mercado opções “mais maleáveis”, que costuma recomendar. 

Ângela e Daniel casaram-se em maio de 2023. A lua de mel foi no Baleal, uma terra cheia de boas memórias para ambos

“Eu tinha era medo de ser deixada como estava”

Não se arrepende. Apesar de todos os percalços e dores, não se arrepende. “Eu tinha era medo de ser deixada como estava antes da cirurgia. Esse era o meu maior medo”. Porque Ângela hoje consegue olhar-se ao espelho sem ter as cuecas vestidas ou a toalha enrolada da cintura para baixo.

Mas é um misto. Porque logo lhe surge a frustração de não ter o processo terminado ou sequer uma perspetiva de fim. 

“Não é só o sonho de ter uma vagina. Sonho em ter uma vida normal. Queria dizer que já está. Dedicar-me à minha família, a mim mesma, não estar constantemente a pensar que vou ter mais uma cirurgia”.

Ângela só nasceu aos 38 anos. Além de tardio, tem sido um parto longo e duro.

Ângela Sampaio só deseja começar a viver uma "vida normal"

Apoio a pessoas LGBTQIA+

Contactos, informações e apoios

Apoio a pessoas LGBTQIA+

Se é uma pessoa LGBTQIA+, tendo ou não iniciado o seu processo de afirmação de género, e se sente sozinha e/ou sem apoio, saiba que pode encontrar recursos junto de várias associações que trabalham diretamente com esta comunidade. 

É o caso da ILGA Portugal, Opus Diversidades, AMPLOS, Anémona, TransMissão ou Casa Qui.

Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género compila também vários contactos de apoio.

Está disponível na rede ex aequo o “Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimento”, de 2023, com informação completa e atualizada sobre este tema.

Pode também procurar apoio junto de profissionais de saúde especializados.

Sobre suicídio

Para informações, ajudas, contactos, consulte o site da Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio em prevenirsuicidio.pt.

Linhas de apoio

SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660

Telefone da Amizade 
16:00 – 23:00
222 080 707

Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159   

Voz de Apoio
21:00 – 24:00
225 506 070
Email: sos@vozdeapoio.pt

Vozes Amigas de Esperança de Portugal
16:00 – 22:00
222 030 707   

Linha SNS24
808 24 24 24

Emergência Médica
112

Perguntas e Respostas

Sociedade Portuguesa de Suicidologia: www.spsuicidologia.com

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