“As cicatrizes significam liberdade”. Para Guilherme, o peito sempre foi a maior ansiedade: é aqui que começa o julgamento às pessoas trans

7 out 2023, 22:00

INVESTIGAÇÃO “ESTE É O MEU CORPO” #4/6. No dia em que lhe tiraram as faixas da cirurgia, Guilherme confirmou que era verdade: já não tinha as mamas que tanta ansiedade lhe causavam. Os pulmões abriram-se, diz. Para uma pessoa trans, é importante que os outros a vejam com o género com que se identifica. Mas como fazê-lo quando há um elemento no próprio corpo que é tão visível? Este é o quarto de seis capítulos da investigação “Este é o Meu Corpo”, focada na comunidade trans em Portugal, nas suas dificuldades no acesso a cirurgias de afirmação de género e nas complicações delas resultantes. Este artigo contém conteúdo explícito que pode ser considerado sensível.

O verão pode ser a melhor altura do ano. Ou a pior. Tudo depende do corpo com que se vive. O areal, para Guilherme Pereira, hoje com 28 anos, nunca foi apenas isso. “Sentia-me muito observado, não conseguia estar muito tempo na praia. Era estranho”. Logo ele, que ama o mar.

Porque Guilherme tinha de tapar o peito. Mesmo depois de já ser Guilherme, tinha mamas. Na praia, não há como escondê-las. E a cirurgia não chegava. Cinco anos de espera. Aos olhos dos outros, ele continuava a ser uma mulher. Apesar das hormonas, dos pelos que elas fazem crescer. 

E depois chegou o dia 20 de março de 2023.

Há dias que mudam vidas. Para Guilherme, foi este. Foi submetido a uma mastectomia no Hospital de Santo António, no Porto. Cumpriu à risca as recomendações do médico. Três dias sem sair da cama. Oito, ao todo, no hospital. “Quando tiram a faixa, até os pulmões abrem”.

Porque no peito já não está, agora, o peso de outrora. “Não há palavras. A cirurgia deu luz à minha vida. Foi qualquer coisa”.

As idas à praia eram um momento de grande ansiedade para Guilherme.

“Vou até ao fim”

Quando se é uma pessoa trans, aprende-se a viver na espera, a aceitá-la. Guilherme nunca quis fazer da demora a sua batalha. Ele vai para a guerra, sim, até ao fim, mas no tempo que a vida lhe permitir. Ponderou o privado, onde lhe pediam cerca de dois mil euros pela cirurgia. Até guardou dinheiro.

A minha vontade é tão grande que parece que não sinto dor. A felicidade é maior do que a dor. Só tenho medo da recuperação. É o que mais custa”.

Guilherme aguarda agora pela intervenção cirúrgica, na zona genital, para que aí nasça o pénis que ele sempre sentiu que lhe faltava – em especial, a partir da puberdade, quando o corpo mudou, mas não no sentido que ele imaginava. Consciente dos riscos, não hesita:

Só faz sentido se eu for até ao fim e não vou desistir, tem mesmo de ser. Ficar como estou neste momento, só com a mastectomia, não faz realmente sentido para mim. Acredito que para muita gente sim, mas para mim não”.

Hoje, este operário fabril já se olha ao espelho com orgulho. “Digo ‘tu estás lindo, tu és lindo, estás a conseguir chegar onde queres’”.

Guilherme escolheu os passadiços de Esmoriz para as gravações, para mostrar como ainda há muito caminho para percorrer

Da disforia à euforia

Os psiquiatras reconhecem que o peito é o elemento que, nos casos de disforia de género, mais gera ansiedade. Faça este exercício: já lhe aconteceu cruzar-se com uma pessoa e ficar na dúvida se é homem ou mulher? E para onde olhou para ter certezas? Pois, é o peito que, aos olhos dos outros, pode definir o nosso género. Mesmo que não nos identifiquemos com aquele que nos foi atribuído à nascença, como é o caso das pessoas trans. Os órgãos genitais, embora pudessem parecer a resposta mais imediata, não o são. Porque estão escondidos. O peito, pelo contrário, tem uma dimensão social. E, por isso, escondê-lo, com recurso a faixas compressoras, é algo comum, no caso da transição de feminino para masculino.

“Eu diria que o peito é a situação que gera mais disforia [mal-estar, desconforto]. Só depois de uma intervenção cirúrgica, seja de aumento ou redução do peito, é que vão à praia, logo que as cicatrizes estejam saradas. É um momento de euforia de género, que é o oposto da disforia”, explica Marco Gonçalves, coordenador da consulta de sexologia do Hospital Júlio de Matos em Lisboa. 

“O peito é o que alivia muito mais rapidamente o mal-estar com o corpo”, atesta a psiquiatra Zélia Figueiredo, que durante longos anos deu consultas no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto. Acompanhou mais de 700 jovens. É um dos nomes que mais se repete quando se fala com pessoas que estão em processo de afirmação de género. E, mesmo reformada, continua a ajudar, respondendo a muitos contactos através das redes sociais.

O Ministério da Saúde diz não ter registo de quantas mastectomias e mamoplastias foram realizadas no âmbito dos processos de afirmação de género. Até porque muitas destas cirurgias acabam realizadas no privado: quando o tempo de espera é superior a seis meses, os doentes recebem um vale-cirurgia para realizarem o procedimento noutra unidade.

Para muitas pessoas trans, a cirurgia na zona do peito é a grande prioridade

Como se é visto num simples toque

Quando Guilherme começou a ir às consultas no Magalhães Lemos, participou numa das sessões de grupo - para partilha de experiências entre pessoas trans - promovidas por Zélia Figueiredo como parte do processo terapêutico. Guilherme não conseguiu falar. Sentiu-se um “privilegiado” perante as duras histórias de vida com que se confrontou.

Porque ele sempre teve o apoio da família, de origens humildes. “É 99% caminho andado, sem dúvida”. Para a mãe, diz, terá sido mais difícil quando se assumiu “como lésbica do que como transsexual”. 

Ainda antes da transição, Guilherme já tinha relacionamentos com outras mulheres. Mas “era estranho”, porque viam nele um corpo de mulher. Não se sentia satisfeito com a intimidade. O toque no peito era o que mais o incomodava.

Hoje, Guilherme tem uma relação com outra mulher, mas essa questão já não se coloca. A companheira vê-o como um homem. Mesmo que ainda lhe falte aquilo que, para muitos, é o garante da masculinidade: o pénis.

Guilherme tem usado uma prótese amovível, que lhe permite sentir-se mais próximo do corpo que deseja. Além da “sensação de volume”, permite-lhe o relacionamento sexual. “Traz-me alguma normalidade”. Quando a tira, para alguma consulta, por exemplo, sente que lhe falta algo.

Sempre que olha o mar, Guilherme reflete sobre as decisões difíceis que teve de tomar

O momento dele

O meu primeiro momento na praia, depois da cirurgia, gostava que fosse sozinho, tranquilo. A aproveitar o que tenho para aproveitar. A fazer o que me apetece. Estar no meu mundo”.

A confissão de Guilherme é feita junto à praia, em Esmoriz, num mês de maio ainda ventoso. Passam exatamente dois meses após a mastectomia. Ainda precisa de ter cuidados, não pode apanhar sol nas cicatrizes. 

Depois da entrevista, é altura de captar algumas imagens. E é aí que Guilherme muda o plano todo. “Gostava de tirar a t-shirt”. À frente de uma câmara de televisão. Então, e o sol, rapaz? Até se pôs de feição, está tímido. E ele quer mesmo que este momento seja eternizado. 

Este momento com que ele tanto sonhou está a realizar-se. Várias vezes de seguida, porque isto da televisão implica filmar de ângulos diferentes. 

O simples levantar do tecido. O beijo simples da luz do sol na pele. “As cicatrizes significam felicidade”. Liberdade.

Foi uma estreia, sem t-shirt, na praia para Guilherme

 

 

Apoio a pessoas LGBTQIA+

Contactos, informações e apoios

Apoio a pessoas LGBTQIA+

Se é uma pessoa LGBTQIA+, tendo ou não iniciado o seu processo de afirmação de género, e se sente sozinha e/ou sem apoio, saiba que pode encontrar recursos junto de várias associações que trabalham diretamente com esta comunidade. 

É o caso da ILGA Portugal, Opus Diversidades, AMPLOS, Anémona, TransMissão ou Casa Qui.

Este documento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género compila também vários contactos de apoio.

Está disponível na rede ex aequo o “Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimento”, de 2023, com informação completa e atualizada sobre este tema.

Pode também procurar apoio junto de profissionais de saúde especializados.

Sobre suicídio

Para informações, ajudas, contactos, consulte o site da Campanha Nacional de Prevenção do Suicídio em prevenirsuicidio.pt.

Linhas de apoio

SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660

Telefone da Amizade 
16:00 – 23:00
222 080 707

Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159   

Voz de Apoio
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Email: sos@vozdeapoio.pt

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222 030 707   

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