"Quando falamos com a China, esquecemo-nos que temos de saber com quem estamos a falar"

30 dez 2023, 18:00

Último governador português de Macau recorda a transferência de poderes para Pequim, 24 anos depois

24 anos depois da transferência de poderes para a China, Macau caminha a passo acelerado para a integração total no regime chinês. A fórmula inventada por Deng Xiaoping – "Um país, Dois Sistemas" – parece hoje ajustar-se mais à imagem política chinesa, do que ao que ficou estabelecido com Portugal em 1987, na Declaração Conjunta Sino-Portuguesa.

Rocha Vieira governou Macau nos últimos anos da administração portuguesa. Despediu-se em dezembro de 1999 com um sentimento de “dever cumprido”. Hoje reconhece que há críticas a fazer às autoridades chinesas, mas que “Portugal é um país que não mete medo à China, nem vai discutir assuntos com a China”.

A CNN Portugal entrevistou o último governador de Macau, 24 anos depois de dizer adeus ao Oriente.

Qual foi, para si, o momento mais marcante do dia da transferência de poderes em Macau?

Quando foi arriada a bandeira nacional no Palácio do Governador, que era a sede da administração no território, com as pessoas a assistir e o hino nacional a tocar. A bandeira a descer para ser embrulhada é um momento transcendente. Não sei se é esta a palavra, mas sentimos que não somos nós que estamos ali. Senti que estavam ali gerações e gerações de portugueses que fizeram Macau, que viveram em Macau, que se dedicaram a Macau e que honraram Portugal. Tudo isso não acaba mas entra-se num novo ciclo. Aquele é um momento de grande introspeção. 

Já disse que o processo de transição correu bem. 24 anos depois, Macau continua a ser um bom exemplo?

Acho que sim. Acho que a transição foi bem feita. Eu sou suspeito, mas acho que todos temos essa consciência, que defendemos os interesses de Portugal, honrámos o nosso passado e, principalmente, tudo quanto fizemos foi para abrir uma porta num novo ciclo, de novos interesses, numa conjuntura internacional diferente, mas que tem esse significado. 

Cada caso é o seu caso. Agora podemos dizer que houve uma conjugação de vontades – de Portugal e da China – em fazer algo que estava combinado, fazê-lo bem, fazê-lo com confiança e com sentido de futuro. Em Portugal, Macau interessa. Interessa na ligação com a China. A China é hoje um grande país, cada vez está mais internacionalizada e com mais responsabilidades globais. Nós somos um país que não mete medo à China, nem vai discutir assuntos com a China. 

Nem assuntos sobre direitos humanos? Por exemplo, sobre a violação de direitos humanos que há em Macau, neste momento?

Sim, sim, sim. Isso acho que podemos discutir. Mas devemos fazê-lo de uma forma franca e aberta. Eu quando estive em Macau não estava sempre de acordo com a parte chinesa. Nós devemos dizer aquilo que pensamos, mas num sentido construtivo. Dizer por dizer, ou para dizer mal e espezinhar, não interessa. Muitas vezes, quando falamos com a China, esquecemo-nos que temos de saber com quem estamos a falar.

“Saber com quem estamos a falar” é ter em conta, como já o disse antes, que Pequim não gosta de “perder a face” e que o diálogo é importante. Haverá margem para diálogo sobre esta maior interferência da China em Macau?

O diálogo nunca se deve perder, para se poder dizer o que se pensa e se poder criticar. Agora, as coisas têm de ter um sentido, não um segundo sentido que se joga escondido e que, alturas tantas, já não sabemos o que estamos a discutir. Acho que o diálogo é indispensável. Há coisas a criticar? Claro que sim, que há coisas a criticar. Meu Deus, e tantas hoje em dia.

Referiu que uma das suas preocupações durante os anos que esteve em Macau era de garantir que Portugal cumpria o acordo estabelecido com a China. Pergunto-lhe agora: considera que a China está a cumprir esse acordo?

Não sei. Eu agora não acompanho essas coisas em pormenor. O que posso dizer é que nós cumprimos um acordo que assinámos voluntariamente, ninguém nos impôs, mas tínhamos a responsabilidade de o cumprir. E tínhamos outra vantagem a cobrir, que era obrigar a China a cumprir. E isso aconteceu. Nós tivemos pontos de divergência durante o processo de transição com a China, nunca os trouxemos para a hasta pública, para vir dizer 'ai, nós é que temos razão'. Isso não leva a parte nenhuma. E outra coisa importante: a China também queria cumprir [o acordo], e também lhe interessava cumprir. Houve ali um encontro, um aceitar que a administração de Macau passava para a China. Quando se aceita as coisas são fáceis, quando não se aceita… 

Acho que devemos defender os nossos interesses. Quem não defende os próprios interesses não é respeitado. Acho que essa é uma posição para todos, mas para os pequenos países mais ainda.

O que espera para Macau nos próximos 26 anos?

O que gostaria era que Macau continuasse a ser uma zona de paz e de convívio, de respeito mútuo, em que culturas muito diferentes se dão bem. Que fosse um exemplo para o mundo, de viver em paz em tranquilidade e de respeito pelos outros. Macau tem sido isso toda a vida. Por várias razões. Era bom que Macau continue a ser - adaptado a cada um dos tempos – esse mesmo espaço de exemplo e de boa convivência e sentido de paz e desenvolvimento, com boas condições para as pessoas viverem. Do ponto de vista do desenvolvimento, do bem-estar e das capacidades de poder ter aquilo que se gosta, Macau funciona bem. Macau está ao pé da China, a China tem melhorado o nível de vida das populações e o bem-estar e, nesse ponto de vista, Macau só pode beneficiar. 

Macau pode dar o exemplo, para depois se copiar. As pessoas costumam dizer que para os chineses não há tempo. Eu digo que há tempo. Eu acho que o tempo é a ocasião. Os chineses sabem muito bem o que querem a longo prazo e depois gerem o tempo de maneira a que haja condições para conseguirem aquilo que querem. E na altura que têm essas condições, atuam. Porque o tempo está agarrado à ocasião. E os chineses não querem deixar passar a ocasião. 

Foi o que aconteceu com Macau e Hong Kong?

Exato.

É isso que vai acontecer com Taiwan?

Não se sabe. Logo se vê.

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