Cem enfermeiros das urgências do Hospital de Santa Maria pedem escusa de responsabilidade. Já são mais de três mil no país

6 fev 2022, 14:01

Um grupo de 101 enfermeiros do maior hospital do país diz não ter respostas nem soluções para prestar cuidados de saúde necessários aos doentes, com as urgências “entupidas” com esperas de internamento. Ordem diz que a situação não para de agravar-se. E avança à CNN Portugal que são já mais de três mil em todo o país a pedir escusa

Um total de 101 enfermeiros do Serviço de Urgências (SU) do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, apresentaram esta quinta-feira uma carta de escusa de responsabilidades, confirmou a CNN Portugal junto da Ordem dos Enfermeiros.

“Procurámos alertar há já vários meses para a contínua degradação das condições para a prestação de cuidados neste contexto, na tentativa que, de forma preparatória, fossem encetadas medidas para colmatar as inadequações dos espaços e dos rácios de recursos humanos às necessidades dos doentes que recorrem a este serviço”, lê-se na carta de escusa, a que a CNN Portugal teve acesso.

O documento, entregue à administração e que também no Ministério da Saúde, descreve vários problemas sentidos pelos enfermeiros daquele serviço.

Em causa está o “incremento do tempo de permanência de doentes, nos diferentes sectores do Serviço de Urgência Central, não só pela necessidade de aguardarem pelos resultados dos testes PCR para despiste de SARS COV 2, mas também por falta de vagas de internamento no centro hospitalar, particularmente no turno da noite”, adiantam os enfermeiros no documento.

Nos diferentes setores da urgência, prossegue a carta, há tempos de permanência de doentes "muito superiores a 24 horas e atingem até um máximo de dez dias, sem regime de internamento". Isto provoca salas de espera sobrelotadas e a indevida utilização de outras salas, testemunham.

Depois de ter acesso à carta, a CNN Portugal falou a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, com a administração do hospital e com dois enfermeiros do Santa Maria, um dos serviços de urgências e outro da UCI, que está também a ser afetada. Os dois enfermeiros falaram sob sigilo, argumentando receio de exposição e de represálias.

UCI covid-19 afectada

A enfermeira da Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) covid-19 do Santa Maria denuncia a situação de rutura com que muitos dos seus colegas das urgências se estão a deparar.

“É uma situação transversal. Desde 2015 que não há uma equipa completa na urgência. As coisas foram-se agravando e, com a pandemia, os colegas estão muito cansados. O serviço funciona à custa das horas extraordinárias", conta à CNN Portugal, adiantando que os colegas estão exaustos e que a situação de exceção tornou-se hábito.

Antes de apresentarem a carta, os enfermeiros “alertaram para a falta de pessoal e para o risco que isso traz para a saúde dos doentes. Claro que, quando se avança para este tipo de situação, há sempre alguns medos, mas mais que nunca não se pode esconder a realidade entre portas", disse a enfermeira da UCI.

"Alguém tem de ficar para trás, a equipa não estica"

O enfermeiro das urgências, que falou com a CNN Portugal após mais um turno de trabalho, explicou que a situação tem vindo a agravar-se com o tempo, principalmente desde o final do ano passado. A carta de escusa de responsabilidades é, pois, mais um alerta para a necessidade de mudança.

Há “uma degradação das funções para conseguirmos prestar cuidados na urgência", contou o enfermeiro, explicando que os profissionais de saúde já passaram por períodos difíceis, sobretudo desde o início da pandemia e que sempre conseguiram ultrapassar as dificuldades com "esforço" e "resiliência", mas este “é um momento diferente”.

"O que temos verificado no serviço desde o final do ano passado é o prolongamento - que não conseguimos explicar - de doentes a aguardar internamento nos serviços de urgência. Para além do nosso fluxo de doentes de urgência (que já é elevado dada a especificidade e dimensão do serviço enquanto centro de referência nacional), termos em permanência durante dois, três dias doentes a aguardar internamento”, o que tem sobrecarregado as “dificuldades para apresentarmos cuidados de qualidade", disse, justificando assim a apresentação da carta de escusa.

Não se trata de falhas clínicas que tenha acontecido em específico, explica, mas de uma situação que se tem vindo a arrastar e cujas explicações e soluções tardam em aparecer.

"Não vemos o problema ser resolvido. Estamos a falar de doentes que permanecem no serviço de urgência, em salas de espera ou em locais de passagem, porque não há capacidade de serem admitidos no centro hospitalar. Isto são dois problemas: para os doentes, que não são atendidos em condições dignas, e para nós, representando uma dificuldade para tratarmos os doentes da urgência. Alguém tem de ficar para trás, a equipa não estica", continuou, reafirmando que nunca viu tantos doentes em permanência à espera de internamento no serviço de urgência.

O clínico reforçou ainda que os enfermeiros pretendem, com isto, reivindicar as condições necessárias para conseguir prestar os cuidados de qualidade num serviço que é muito específico. "É uma questão de assegurarmos os cuidados aos nossos doentes", rematou.

A carta de escusa seguiu esta quinta-feira para o conselho de administração do Hospital Santa Maria, com conhecimento da Ordem dos Enfermeiros e do Ministério da Saúde. Na sexta-feira não tinha ainda chegado qualquer resposta, de acordo com o enfermeiro.

Hospital responde com concursos

Contactada pela CNN Portugal, a administração do Centro Hospitalar respondeu por escrito, justificando ter “concursos abertos e campanhas de recrutamento de enfermeiros ativas há vários meses”. Há “um enorme esforço do CHULN para reforçar as suas equipas que, no caso do Serviço de Urgências Central, resultou num saldo líquido positivo de mais 32 profissionais de enfermagem em relação a janeiro de 2019”, diz a nota enviada.

A administração da unidade hospitalar confirma que, nas últimas semanas, registou um aumento expressivo de afluência de casos suspeitos de covid-19, que se somam a uma elevada procura de utentes com outras doenças ao Serviço de Urgência. A administração do hospital sublinha a “forte resposta de fim de linha conseguida com o esforço e profissionalismo das equipas do CHULN, num cenário de assinalável número de ausências de profissionais por motivos de saúde nesta fase da pandemia.”

Mais de três mil enfermeiros pediram escusa de responsabilidade

Segundo fonte oficial, a Ordem dos Enfermeiros já recebeu mais de três mil pedidos de escusa de responsabilidade devido à degradação dos serviços, o que se acentuou nos últimos tempos.

A Ordem diz que fará, aliás, um novo balanço sobre estes números nos próximos dias, sustentando que o elevado número de pedidos de escusas se deve à falta de profissionais.

"No total, até dezembro de 2021 chegaram à OE 3.013 pedidos de escusa de responsabilidade, quando em novembro eram cerca de 13.00, a maioria dos quais referentes ao Hospital de Leiria", avança a Ordem dos Enfermeiros, que dá conta dos últimos dados conhecidos, a 3 de janeiro de 2022.

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