Tomás enfrenta uma leucemia que teimou em crescer. Mas o pai descobriu um tratamento inovador em Israel que o pode salvar. A ele e a muitas crianças

13 nov 2022, 08:00

Tem onze anos e há um ano e meio que combate uma leucemia mieloide. Depois de dois tratamentos de quimioterapia sem resultado, o pai descobriu um hospital em Tel-Aviv onde fazem tratamento com células Car-T em crianças. Agora, a doença de Tomás está em remissão e ele pode fazer um transplante. "Isto é como encontrar a agulha no palheiro", diz Tomás Lamas

Tomás acabou de fazer 11 anos, mas não pôde celebrar com uma grande festa, como ele gostaria. No dia do aniversário convidou só um grupo pequeno de amigos para irem lá a casa comer pizza. Tudo preparado com mil cuidados. Por estes dias, Tomás tem passado mais tempo em casa, tem tido algumas aulas online e, quando vai à escola, tem aulas sozinho numa sala. Não pode correr o risco de adoecer, nem que seja com uma simples  constipação. Tem de estar em forma para que, se tudo correr bem, possa fazer o desejado transplante de medula ainda antes do final do mês.

O "Batazu", como lhe chamam os pais, é um miúdo sorridente. Diagnosticado com uma leucemia há cerca de um ano meio, fez dois tratamentos com quimioterapia mas, infelizmente, estes não foram suficientes para destruir a doença. "Fez quimioterapia bastante intensiva desde abril até ao outubro, tivemos internamentos complicados, dias difíceis, até que entrou em remissão", conta o pai, Tomás Lamas. "Mas em março deste ano a leucemia voltou a aparecer. Mudámos o plano: fazer novamente quimioterapia e fazer um transplante."

Toda a família fez análises. O pai Tomás, a mãe Margarida e os irmãos, Mariana, de 9 anos, Carlota, de 7, e Francisco, de 3. "Ficámos a saber que a Mariana é compatível com o Tomás em 12 pontos em 12, o que é raríssimo. Foram excelentes notícias", explica a mãe. Parecia estar tudo encaminhado. A quimioterapia terminou no fim de junho mas, nessa altura, a leucemia voltou ao ataque, numa localização menos comum, que é o tórax, e o transplante teve de ser cancelado.

Tomás com os pais e os irmãos em Israel (Direitos reservados)

"Tínhamos que  arranjar uma solução porque, pelos vistos, a quimioterapia não estava a ser suficiente. E se ele não entrasse em remissão não se poderia fazer o transplante." Mas o IPO - Instituto Português de Oncologia, em Lisboa, não tinha nenhuma alternativa. Médico intensivista, Tomás Lamas ficou "mais de uma semana enfiado no escritório a estudar", à procura de soluções.

"A leucemia do Tomás é mieloide, que é uma leucemia mais rara. As mais frequentes são as linfoblásticas e para essas já há umas terapeuticas mais desenvolvidas. Mas, dentro das leucemias mieloides há vários subtipos e a dele é uma específica, é a única que tem um alvo - o CD19 - que é o mesmo alvo com que se usa as Células Car-T nas leucemias linfoblásticas. Portanto, no caso dele, a melhor solução seria uma terapia com células Car-T. Procurámos todos os centros a nível mundial, na Europa, nos Estados Unidos, na China, no Brasil... contactámos pessoas que pudessem conhecer pessoas lá fora que pudessem ajudar, enviámos inúmeros mails." Receberam muitas respostas, nem todas satisfatórias. "No IPO só fazem esta terapia em adultos, na Europa não havia solução nenhuma, nos EUA havia muitos estudos clínicos com crianças, mas tudo ainda na fase de experimentação..."

Até que finalmente surgiu uma resposta positiva: o médico hemato-oncologista Aarnan Nagler estava disposto a receber o Tomás no Sheba Hospital, em Tel-Aviv, Israel. "Isto é como encontrar a agulha no palheiro", diz Tomás Lamas. "O Hospital Sheba está muito avançado na utilização de células Car-T.  Já têm muita experiencia em fazer este tratamento em crianças, e estavam plenamente seguros em avançar."

Como funciona o tratamento com células Car-T?

O tratamento com células Car-T é uma forma de imunoterapia, o que significa que utiliza o próprio sistema imunitário do doente para combater o cancro, explica a Associação Portuguesa Contra a Leucemia. O tratamento é produzido a partir dos linfócitos T (células T) que são parte dos glóbulos brancos do sangue. As células T têm como objetivo identificar e eliminar bactérias, vírus e células tumorais.

Como se processa o tratamento? Primeiro, o sangue é recolhido do organismo do doente e filtrado através de uma máquina capaz de separar as células T de outras células sanguíneas. Estas células T são enviadas para laboratório, onde recebem um gene que promove a produção de recetores específicos (recetores de antigénio quimérico, CAR na sigla em inglês) nas respetivas superfícies. Transformam-se assim em célular Car-T.

Em seguida, estas células recentemente modificadas são novamente administradas no sangue do doente de forma semelhante a uma transfusão.

As células Car-T têm a capacidade de reconhecer e ligar-se às células tumorais no organismo do doente. Quando esta ligação é estabelecida, as células Car-T libertam uma substância química que ataca diretamente as células malignas e pode ajudar a eliminá-las.

"É uma escola de linfócitos", diz o médico Tomás Lamas, que até publicou no Instagram um vídeo que explica de forma muito simples o processo, para que todos os amigos entendessem. "Na prática é pegar no sistema imunitário da pessoa que está doente, pô-lo num meio de cultura e pôr lá um vírus ou outro agente para essas células passarem a reconhecer os blastos alvo a abater. E depois reintroduzir as células dentro do corpo. Elas multiplicam-se e a partir daí é deixar o sistema imunitário funcionar. Esta técnica tem sido um sucesso nas leucemias linfoblásticas, nas mieloides ainda se está a dar os primeiros passos, mas os médicos estavam bastante confiantes."

Dois meses em Israel: o tratamento foi uma aventura familiar

Quem começou a usar a palavra "Batazu" foi o mais novo da família, o Francisco, conhecido lá em casa como "Fanquico". O que significa Batazu? Ninguém sabia, mas o pai Tomás descobriu que em italiano poderá querer dizer combatente ou guerreiro. E foi assim que, quando criaram uma página de Instagram, lhe chamaram "Batazu Family". "Somos todos Batazu, mas neste momento Tomás é o mais Batazu de todos, porque tem sido um verdadeiro guerreiro", diz o pai.

A página de Instagram surgiu ainda durante os tratamentos em Portugal mas ganhou mais importância quando começaram os tratamentos em Israel. "Sou a favor da partilha, acho que pode ser importante para outras famílias que estejam a passar pelo mesmo", explica a mãe. "Queríamos mostrar a outras famílias que existem coisas lá fora, que é possível, mas que é preciso arregaçar as mangas e ir procurar." Depois, a página serviu também como forma de entretenimento - sobretudo durante o internamento, quando pai e filho se divertiram a fazer filmes - e como meio de comunicação com a família e os muitos amigos que queriam saber notícias de Tel Aviv.

Aproveitando o verão e as férias escolares, a família foi toda para Israel em agosto, e aquilo que poderia ser uma estadia aborrecida para fazer tratamentos transformou-se numa aventura familiar, com mergulhos em águas cálidas e passeios no deserto.

"Queríamos estar todos juntos, o máximo possível. E tinham-nos dito que o Tomás não ia ficar logo internado, estaria duas ou três semanas a fazer exames mas iria ter tempo livre." Além disso, depois da recolha, enquanto as células Car-T são produzidas em laboratório, decorre um período de espera durante o qual o doente pode manter o seu estilo de vida habitual.

"Por isso, tínhamos que arranjar maneira de manter a normalidade", explica o pai. Foram primeiro para um hotel mas, pouco depois, arrendaram uma casa; arranjaram um "triciclo elétrico", pois na família estão todos habituados a ir para a escola e para o trabalho de bicicleta; e ao fim de um tempo já tinham parques e restaurantes preferidos.

O que é que o Tomás gostou mais? "A comida", responde ele, sem hesitar. Mas depois fica indeciso. Porque também adorou ter dormido duas noites em dois desertos diferentes, um de areia amarela e outro de areia vermelha (e mostra a areia, finíssima, que trouxe em garrafas de plástico). Ter mergulhado no meio de peixes e ter feito festas aos "golfinhos de pele macia". Ter ido ao Mar Vermellho e ao Mar Morto, onde se deliciou a brincar (e a lamber!) pedras de sal.

Em Israel era difícil perceber o que as pessoas diziam na rua mas, por outro, lado os miúdos puderam treinar o seu inglês. E aprenderam muitas coisas sobre a cultura judaica, como por exemplo que no Shabbat (sábado) não se podia ligar nem desligar nada, incluindo a máquina do café, o elevador ou o triciclo elétrico; e que no Yom Kippur (o dia do perdão, que foi a 5 de outubro) podiam ir andar de skate ou até caminhar para as auto-estradas pois não há qualquer veículo motorizado nas ruas.

A 23 de agosto, com os resultados animadores dos exames, o Tomás foi finalmente internado no Sheba Hospital. A mãe veio a Lisboa trazer os irmãos, para que pudessem ir para a escola, e voltou novamente para Tel-Aviv.

 

18 dias no hospital entre brincadeiras e filmes de terror

O Sheba Hospital é um hospital público. "Não tem luxos mas é muito bom", conta o pai. Havia um grupo enorme de voluntários, sempre disponíveis para conversar, brincar e até dar presentes; uma escola onde o Tomás podia ir ter aulas de inglês; salas de lazer para crianças e para adolescentes, com instrumentos musicais e jogos; vários restaurantes (incluindo uma gelataria), onde podiam comer pratos diferentes quando o Tomás já estava farto da comida do hospital.

Para se entreterem, o Tomás e o pai começaram a fazer pequenos filmes caseiros, que logo receberam os aplausos dos amigos em Portugal. Valia tudo para dar umas gargalhadas, incluindo fazer um filme de terror onde usaram beterraba a fingir que era sangue.

No total, o internamento durou 18 dias. "Mas estávamos preparados para que fosse mais, um mês ou um mês e meio. A verdade é que correu tudo muito bem", conta o pai. Só houve ali um momento, após a introdução das células Car-T, em que, como esperado, surgiu o síndrome das citoquinas, com febre, dores de cabeça, náuseas. Foram três a cinco dias complicados. "Assim que ele começou a querer jogar no computador, percebemos que já estava a melhorar", recorda a mãe.

Pouco depois, os médicos confirmaram que a leucemia do Tomás estava em remissão e tiveram autorização para regressar a casa. E o resto já sabemos. Tomás está feliz e animado, como há muito tempo os pais não o viam. O Batazu está pronto para mais uma batalha.

Saúde

Mais Saúde

Patrocinados