Ken Follett conta mais uma história de luta pela liberdade. "Se as pessoas souberem quantos lutaram e morreram por estes direitos talvez lhes deem mais valor"

19 nov 2023, 08:00
Escritor Ken Follett (DR/Olivier Favre)

O autor britânico publicou "A Armadura da Luz", cuja ação se passa em plena revolução industrial. Em entrevista à CNN Portugal, conta como fez a pesquisa para mais este romance histórico e explica a sua paixão pelas diversas batalhas que, aos longos dos séculos, têm sido travadas pelos mais fracos em luta pelos seus direitos: "Em muitos sítios, hoje, as pessoas estão a perder algumas destas liberdades. Isto é muito preocupante"

Na escola, Ken Follett não gostava particularmente de história. É difícil imaginar, não é? "As aulas de história na escola são muito aborrecidas. Eu odiava história", conta aquele que é um dos mais bem-sucedidos autores de romances históricos, conhecido pelos seus volumosos livros com aventuras ambientadas na Idade Média inglesa ou nas vésperas da I Guerra Mundial na Rússia. As mais de 188 milhões de cópias dos 36 livros que escreveu foram vendidas em mais de 80 países e em 40 idiomas.

Atualmente com 74 anos, Follett, nascido em Cardiff, no País de Gales, estudou Filosofia, começou a sua carreira como repórter e trabalhou depois numa editora em Londres. Foi nessa altura que começou a escrever ficção, nos tempos livres, primeiro como hobby e depois porque precisava de dinheiro. O seu primeiro sucesso foi "O Buraco da Agulha", publicado em 1978, um thriller ambientando na Inglaterra da Segunda Guerra Mundial. "Todos os anos são publicados milhares de livros de história e pouquíssimas pessoas os leem, porque não são muito entusiasmantes", diz, numa entrevista por videoconferência à CNN Portugal. Foi só quando começou a escrever e precisou de estudar alguns temas que se começou verdadeiramente a interessar por história. Follet não "decidiu" ser um autor de romances históricos. Mas, a certa altura, percebeu que as histórias que lhe interessava contar eram histórias sobre personagens que vivem em "tempos confusos" - guerras, pragas, revoluções - mas que, apesar disso, "têm de continuar com as suas vidas quotidianas, apaixonando-se, tendo filhos, trabalhando, enquanto todo o mundo está em convulsão ao seu redor".

"Um livro começa sempre por mim a pensar em algo como uma revolução ou uma guerra e eu pergunto-me: posso contar uma história sobre isto? É esse o princípio de qualquer livro. Eu começo a escrever, e vou de um parágrafo a outro e a outro, e depois de uma página a outra. Começo a pensar o que aconteceu antes, o que aconteceu depois, quem são as pessoas envolvidas, porque é que fazem o que fazem, e assim vai crescendo", conta. "Às vezes trabalho durante algumas semanas numa ideia e percebo que não vai resultar e tenho que pô-la de lado. Mas hoje em dia isso já me acontece cada vez menos, porque já sou melhor no meu trabalho e já consigo reconhecer mais rapidamente se é uma ideia boa ou má", conta.

De volta a Kingsbridge, agora na Revolução Industrial

No seu mais recente livro, "A Armadura da Luz", publicado em setembro, Ken Follett regressa a Kingsbridge, a cidade que surgiu pela primeira vez em 1989, em "Os Pilares da Terra". Este era um romance épico em torno da construção de uma catedral medieval numa pequena vila inglesa durante a Anarquia do século XII. O livro foi um tremendo sucesso. Por isso, em 2007, o autor regressou a Kingsbridge mas colocou a ação no século XIV, apresentando os descendentes das personagens de "Os Pilares". "Um Mundo Sem Fim", acompanha essas personagens durante a devastação causada pela Peste Negra. Seguiu-se, nesta saga, "Uma Coluna de Fogo" (2017), sobre o conflito entre protestantes e católicos durante o reinado de Elizabeth I. Finalmente, em 2020, foi publicado "O Amanhecer de Uma Nova Era", uma prequela a "Os Pilares".  Ambientado por volta de 1000 a.C., na chamada Idade das Trevas, o livro mostra a criação da cidade e permite entender muito do que se passa nos episódios posteriores da série Kingsbridge.

"A Armadura da Luz" é, portanto, já o quinto livro situado em Kingsbridge: "É já um local familiar para mim e para os leitores", explica. A ação começa em 1792. A Inglaterra tem um governo tirânico, em França, Napoleão Bonaparte ascende ao poder. A revolução industrial está em marcha. A modernização desenfreada, feita com novas e perigosas máquinas, está a tornar muitos empregos obsoletos e a destruir famílias. Mas os trabalhadores das fábricas também vivem na miséria. À medida que um conflito internacional se aproxima, um pequeno grupo de habitantes de Kingsbridge - de que fazem parte a ­fiandeira Sal Clitheroe, o tecelão David Shovelle - luta pela liberdade e pelo seu futuro.

"Esta é uma oportunidade voltar a um sítio que já conhecemos, mas vê-lo numa época diferente. A cidade está maior e mais próspera. E há conflitos, como sempre, mas sobre novos assuntos. Quando escrevo um romance histórico, pergunto-me porque é que hei de criar uma cidade fictícia? Já tenho uma e todos gostamos dela, por isso é melhor usá-la", justifica. A cidade imaginada tem já uma história, ruas e praças que são referidas nos vários livros. "Eu visualizo-a nas diferentes épocas, com o seu crescimento. É muito divertido", diz o autor. 

No entanto, Follett acredita que não voltará a Kingsbridge: "Acho que foi o último livro em Kingsbridg", prevê. "Já foram cinco, tenho a sensação de que já chega. Quando se tem um trabalho criativo e se tem sucesso, é importante saber quando parar de fazer algo. Tem de se parar antes de as pessoas ficarem aborrecidas, não depois."

Como sempre, para escrever o livro, foi preciso fazer um grande trabalho de investigação. Follet começou por ler livros sobre a revolução industrial, mas muito cedo percebeu que tinha de "entender as máquinas":  "As máquinas estão no centro de tudo, tudo acontece por causa delas. E muitas das minhas personagens trabalham com estas máquinas. Então, o leitor tem de entender o que estas máquinas fazem e porque é que são tão úteis, mas, para isso, eu tenho de entender estas máquinas. E é muito difícil entendê-las apenas olhando para desenhos e lendo descrições. É preciso vê-las verdadeiramente e vê-las a funcionar. Felizmente, neste país temos alguns museus que têm estas máquinas e elas funcionam, eu pude ir lá e até experimentei algumas delas. Aprendi a arte de fiar, não é fácil.", diz, sorrindo.

Ken Follett numa antiga fábrica têxtil do século XVIII transformada em museu 

O autor também gosta de visitar os lugares que são mencionados na história e um dos locais essenciais neste livro era Waterloo, onde houve uma grande batalha em 1850. Follett passou lá uma semana, com um amigo que é general reformado do Exército Britânico. "Ele é obcecado com Waterloo, ele sabe tudo o que aconteceu lá. Então, andámos no campo de batalha, de um lado para o outro, durante uma semana. Isso foi muito importante. É claro que eu tinha lido vários relatos sobre o que aconteceu a cada hora, mas, estando ali, pude ter uma perceção muito mais verdadeira do que seria estarem 120 mil pessoas, dos dois lados, naquele espaço, a disparar uns contra os outros. Todos sabemos que as batalhas são confusas, mas os leitores não devem ficar confusos. Os leitores têm de entender, se não, é aborrecido, é só uma descrição de homens a ficarem feridos e a morrerem. Tem de se mostrar quem está a ganhar e quem está a perder. Apesar de a história ser sempre contada do ponto de vista de um dos participantes, espero ter conseguido dar conta das subtilezas da batalha."

Pessoas como nós e a lutar pela liberdade, seja em que época for

Para além dos factos históricos, o que faz a diferença nos livros de Ken Follett são as personagens e o seu enredo. O mais importante é o conflito, diz Ken Follett. "Se não há conflito, não há história", declara. Neste novo livro, "os conflitos são clássicos, porque a invenção de novas máquinas criou vencedores e derrotados: quem perde são as pessoas que já não podem trabalhar naquilo que sabem fazer e por isso não conseguem ganhar dinheiro para viver; quem ganha são aqueles que conseguem novos empregos por mais dinheiro, mas também os responsáveis pelas máquinas e os donos das fábricas. Estes conflitos são complexos porque não há apenas boas pessoas e más pessoas, há pessoas que têm interesses diferentes, é um conflito tipicamente político, onde ambos os lados se queixam e têm razões, o que torna tudo muito mais interessante".

As suas personagens atemporais e universais. "Isso é importante, imagino sempre que os meus livros vão ser lidos em sítios como a China ou outros onde as vidas das pessoas são completamente diferentes das vidas das personagens da história, e apesar disso os meus livros são populares nesses locais e eu penso que isso acontece porque as emoções sobre as quais escrevo são universais. As pessoas preocupam-se com a educação dos filhos, as pessoas apaixonam-se e às vezes essas paixões não correm bem e elas sofrem, as pessoas preocupam-se com o crime e a violência e a guerra, preocupam-se se têm de ir para a guerra, se vão ficar feridas ou morrer. Estas são coisas que todas as pessoas conseguem entender em qualquer lugar do mundo e em qualquer época", explica Ken Follett. Há um reconhecimento e há empatia. "Parte da satisfação de ler um romance histórico é sentir que aquelas pessoas são como nós, mas as suas vidas são diferentes, e geralmente as suas vidas são mais difíceis do que as nossas, elas não têm comida suficiente e quando ficam doentes não têm bons hospitais e medicamentos, as casas onde vivem não são tão confortáveis, não têm a tecnologia que nós temos." 

Depois de publicar vários livros, Folett concluiu que, apesar de escrever diferentes histórias sobre diferentes épocas, o seu tema principal é a luta pela liberdade. "Na Idade Média ninguém tinha direitos nenhuns, não havia democracia, não havia liberdade de expressão, não havia liberdade religiosa, não havia tribunais independentes, por isso, não havia verdadeira justiça. Percebi que durante centenas de anos as pessoas lutaram por estes direitos. No século XVI, por exemplo, as pessoas lutaram pelo direito a escolher a sua própria religião, as pessoas mataram-se por isso. Mais tarde, lutarem pela liberdade de expressão, que é um tema muito importante n'"A Armadura da Luz". Depois, as mulheres reclamaram o direito ao voto, lutaram e por fim os homens não puderam continuar a ignorá-las. Todas essas batalhas aconteceram e uma coisa interessante é que as pessoas que iniciaram essas batalhas foram sempre os underdogs. Estas são grandes histórias porque as pessoas mais fracas acabam por vencer. E nós todos beneficiamos dos seus sacrifícios e das suas lutas."

A liberdade que tanto custa a conquistar é, na verdade, um bem bastante frágil, afirma o escritor. "Em muitos sítios, hoje, as pessoas estão a perder algumas destas liberdades. A liberdade de imprensa, por exemplo, está a ser atacada em vários locais, neste momento, inclusive em alguns países da Europa. A democracia está em risco nos Estados Unidos, por exemplo, algo que julgávamos impensável. Foi uma das primeiras democracias do mundo e agora há um tipo que perde as eleições e que se recusa a aceitar que perdeu as eleições e as pessoas acreditam nele. Isto é muito preocupante", diz Follett. "Por isso, é importante de vez em quando lembrar as pessoas de quão difícil foi conquistar estes direitos." Também é para isso que servem estes livros, afirma o escritor. "Se as pessoas souberem quantos lutaram e morreram por estes direitos, talvez lhes deem mais valor."

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