Aos quase 52 anos, a jornalista lança o seu primeiro romance e chama-lhe autoficcional. Numa tensão permanente entre ficção e realidade, a protagonista tem uma parte de Anabela e uma parte de tantas outras mulheres. “O tema da maternidade e da fertilidade, o corpo da mulher, o que é ser mulher, o que é a vida das mulheres, é o que está no centro deste livro”, explica nesta entrevista. Uma escritora apresenta-se
"3 de outubro, sábado.
O ano passado era quinta-feira.
Queria escrever sobre o meu corpo um ano depois.
A casa veio abaixo. Não pensei que viesse abaixo, mas veio. Porque se mexeu nas fundações. Na fundura de estar viva e de saber que vou morrer. Que podia morrer. Na estranheza de não ter medo de morrer."
(pag.250)
“O Quarto do Bebé” é o primeiro romance de Anabela Mota Ribeiro. A protagonista, Ester, que fala na primeira pessoa, é uma mulher de cerca de 50 anos que mora em Lisboa, que gosta de Chico Buarque, não tem filhos, faz psicanálise, tem medo de ratos, teve um cancro. A pergunta é inevitável: este livro é uma autoficção?
“Pensei muito como é que eu queria aparecer e como é que ia designar este trabalho. Assumo que há uma componente autobiográfica no livro. Não quis disfarçar alguns indícios que permitem às pessoas essa identificação, pelo contrário”, responde a escritora. Na verdade, não é preciso conhecê-la assim tão bem para encontrar em Ester muitos dos traços de Anabela, referências concretas ao seu percurso, aos seus estudos, à sua vida. "Fiz isso para acentuar esta ambiguidade que quero que o livro tenha.” O jogo é assumido. “O que é que é biografia, o que é sonho, o que é realidade?” A pergunta é mais interessante do que a resposta, considera a autora. “Interessa-me sabotar esta possibilidade de uma ficção e de uma autobiografia ficcionada e um delírio.”
Anabela Mota Ribeiro, jornalista
Recuemos. Quando o irmão foi para a escola primária, Anabela tinha cinco anos e não quis ficar em casa sozinha. A mãe falou com a professora, que a deixou assistir às aulas, sem estar matriculada. “Ter feito a primeira classe duas vezes e ter feito uma primeira classe muito bem feita” foi determinante, conclui agora, olhando para trás. Além disso, começou a fazer rádio ainda criança, com dez anos, na Régua, e continuou na adolescência. Antes de ser jornalista, já era da comunicação e da palavra. Na escola secundária fazia redações para os colegas que, em troca, lhe faziam os trabalhos de eletrotecnia. “A escrita e a leitura estiveram lá desde sempre. Sempre gostei de ler. Mas também sempre gostei de cinema. E de música. Nunca fiz uma segmentação das diferentes disciplinas artísticas. Sempre gostei de muitas coisas.”
Chegou a estudar Direito, em Coimbra, mas depressa percebeu que aquilo não lhe interessava. E, ao mesmo tempo, surgiam cada vez mais oportunidades de trabalho, na rádio, na televisão, na imprensa. “Fui avançando profissionalmente, descobrindo-me também e percebendo o que é que eu gostava de fazer, mas sentindo que seria bom ter uma formação um bocadinho mais orientada e acompanhada.” Com 30 anos, mudou-se para Lisboa e foi fazer a licenciatura em Filosofia. “Queria um curso que me ajudasse a pensar, cujo instrumento principal fosse a língua e que enriquecesse a minha maneira de trabalhar e de estar.”
Anabela Mota Ribeiro é jornalista e trabalha como freelancer. “Aquilo que é mais sedutor para mim, no jornalismo, é o encontro com o outro. O desejo de conhecer pessoas, de estar com pessoas. E a modalidade mais confortável para mim é de um para um.” Ou seja, a fazer entrevistas. O lado mais visível desse trabalho são os programas de televisão, como o “Curso de Cultura Geral” ou “Os Filhos da Madrugada”. Mas também escreve em jornais e revistas, dá conferências, faz curadorias, continua a estudar.
Em 2015, defendeu a tese de mestrado, “Flor Amarela: ímpeto e melancolia em Machado de Assis”. “Ainda que esteja a debruçar-me sobre a voz de um autor, o que aparece é a minha interpretação e, nesse sentido, começo a afirmar a minha voz autoral”, sublinha. Foi também por essa altura que começou a sentir vontade de escrever algo diferente. Um romance, talvez. Não começou a escrevê-lo nesse momento, até porque tinha bastante trabalho, mas sente que foi aí que começou este caminho.
A importância de Machado
Anabela Mota Ribeiro confessa que é fã de Annie Ernaux, que leu Joan Didion, que gosta de Natalia Ginzburg, recorda até o mal-amado “O Irmão Alemão” de Chico Buarque. Em todos eles existe essa derivação entre ficção e biografia. No entanto, apesar de todas essas influências, declara: “Acho que o mais importante de tudo para a construção deste romance foi ter lido e ser uma estudiosa de Machado de Assis”.
Machado, que nasceu em 1839, no Brasil, escreveu conto, crónica, poesia, peça de teatro e romance. “Os romances da maturidade são cinco e quatro deles têm a forma de diário ou memórias”, explica Anabela. “O que me suscita espanto e um enorme interesse é: porque é que estas pessoas escrevem memórias ou diários? Escrevem no final da vida, depois da vida, que conteúdo é este e que plateia é esta, a quem se dirigem? E esta interrogação: porquê escrever?”
Também ela escreve um diário. E, tal como Machado de Assis, também imagina um enredo para ele: depois da morte de um conhecido psicanalista, a filha, sua única herdeira, encontra entre os papéis que ele deixou o diário de uma paciente. Tem título - Fala Orgânica - e está assinado: Ester do Rio Arco. Esse diário é o miolo de “O Quarto do Bebé”.
“Apesar dessa aparência de diário, o livro é muito mais construído do que parece”, esclarece a autora. “Gosto que ele tenha essa aparência de linearidade, como se tivesse sido escrito de um jorro.” Mas não foi, claro. Escrito em grande parte durante a pandemia, Anabela demorou cerca de dois anos “pensando” sobre o livro: “Ou para usar uma palavra muito orgânica, que é uma noção importante no romance, uma palavra da psicanálise, estive dois anos a metabolizar a matéria deste livro." Esse tempo foi muito importante, "foi precioso", diz. "Eu ainda não sabia bem o que fazer com essa primeira pedra. E o ano passado, então, voltei ao que tinha escrito e reescrevi o livro, construí o livro, enxertei textos, que é um ato muito importante para mim, esta enxertia [de histórias, de sonhos, de cartas, de delírios]. Percebi como é que podia transformar aquela matéria em literatura.” Como quem molda uma escultura. Foi nesse processo, acrescentando camadas, que a “equivocidade” se acentuou e que o texto se transformou num romance.
A pandemia: isolemo-nos
"Ontem recolhemos a casa. Ontem foi o dia 1 do isolamento.” O diário começa a 14 de março de 2020. Tal como Ester, Anabela começou a escrever um diário nesses primeiros dias de isolamento. “Foi sobretudo uma forma de me relacionar com uma coisa traumática, recente e para a qual eu ainda não tinha palavras”, explica. Antes de ser um romance, o exercício da escrita foi uma estratégia de sobrevivência. “Uma forma de me disciplinar e de me manter à tona”, diz.
“Há alguma informação que nos situa aqueles dias. Mas, quando reli, aquele tempo pareceu-me um acontecimento muito longínquo das nossas vidas. Lavar a fruta, deixar os sapatos à porta de casa. Acho que nos quisemos evadir daquele tempo o quanto antes, mas há cicatrizes muito profundas em todos nós. Muita coisa está a rebentar ainda, é como se fôssemos um vulcão e ainda estamos a vir por fora, e ainda vamos precisar de muito mais tempo, dentro de nós ainda há muita matéria incandescente, porque aquilo foi de facto de uma enorme violência.”
Este não é um diário da pandemia, embora ela esteja lá, em todas as páginas. Assim como o medo que todos sentimos. A contabilidade dos mortos. A contabilidade dos dias. A cidade vazia. As saudades dos outros. A vida como que colocada em pausa. As videochamadas. A necessidade de limpar. Ester limpa e desinfeta, quase obcecadamente.
A pandemia trouxe-nos para casa e mostrou-nos “de uma forma inescapável”, que “ainda estamos no essencial a reproduzir em casa o comportamento das nossas mães”, explica Anabela Mota Ribeiro. “E somos feministas, defensoras das quotas e tudo, e de repente descobrimos que somos muito mais reféns desta sociedade patriarcal do que julgávamos. Isso ficou claro nesta circunstância específica em que estávamos todos em casa e sem poder ter outra vida que não aquela. Mas quando estamos na nossa vida de todos os dias, noutro grau, é a mesma coisa.” Sentimo-nos responsáveis pelo bem-estar dos homens do nosso agregado familiar. Sentimo-nos culpadas quando não há camisas limpas. Quando a casa não está arrumada. “Este é um lado mais político, feminista, panfletário do meu romance”, afirma Anabela.
“Tudo o que me interessa aqui é feminino”
“O tema da maternidade e da fertilidade, o corpo da mulher, o que é ser mulher, o que é a vida das mulheres, é o que está no centro deste livro”, explica a escritora. “Aquilo que eu ficcionei, as rimas internas que estabeleci, praticamente excluem os homens. São poucos e têm um papel secundário. Tudo o que me interessa aqui é feminino.”
Aqui temos uma mulher que se aproxima dos 50 anos e que enfrenta o envelhecimento e a menopausa. “Nesta sociedade patriarcal, nós, mulheres, somos muito seduzidas para encarnar um estereotipo, para corresponder a um ideal de corpo erótico, desejável. Eu compreendi que o meu corpo estava a transformar-se, como se transformam os corpos de todas as mulheres. E dei-me conta de que não se fala de menopausa. Eu não sabia da perturbação que isto pode causar, física e sobretudo psicológica”, admite a autora. “Agora, com o aumento da esperança de vida, com o avanço da medicina, se uma mulher ficar menopáusica aos 50, em princípio ela tem mais 30 anos de vida. E o que é que ela faz?, o que é que acontece à sua sexualidade, ao seu corpo, à sua relação com os outros, durante uma parte muito significativa da sua vida ainda? Eu quis falar disso. Percebi que não se falava de uma coisa tão simples como o medo de ser abandonada porque de repente, com o fim do corpo fértil, aparece o fantasma de o corpo já não ser desejável. É uma grande injustiça para as mulheres.” Este livro também “foi uma forma de tornar audível, visível qualquer coisa que está ainda nas catacumbas e que eu acho que precisa de ser falado, porque isto causa muito sofrimento”.
A doença
“Eu não falei do meu cancro até agora, preferi viver de uma maneira mais resguardada a doença. Não critico as pessoas que fazem uma partilha do seu estado saúde, de maneira nenhuma, isto não é um julgamento. Mas a verdade é que eu compreendi que precisava de estar mais concentrada em mim e não podia lidar com uma espécie de ruído cá fora.”
Anabela Mota Ribeiro decidiu só agora falar sobre este assunto. Um cancro na mama, cirurgia e radioterapia, tratamento hormonal para induzir a menopausa, pneumonias, uma histerectomia seguida de infecção. “Prefiro usar a palavra doença e não dizer cancro, e não é por medo da palavra cancro, é porque eu senti-me muito mais doente quando tive pneumonias durante o confinamento do que propriamente quando tive o cancro. E, portanto, ao dizer a doença eu estou a falar deste período longo, tudo somado quase um ano e meio, doente ou com a doença sempre a rondar.”
Cada pessoa vive a doença à sua maneira. A primeira resposta de Anabela Mota Ribeiro “foi racional”. “Tinha feito leituras, conhecia os números: um em três vamos ter cancro. Os números são assustadores. A boa notícia é que vamos morrer cada vez menos disso e o apelo tem de ser no sentido de manter apertada a vigilância e de se fazer um diagnóstico atempado.”
“Só muito tempo mais tarde é que compreendi que extirpar o tumor é a coisa mais simples, é mesmo a única coisa simples. Isso eu não sabia.” A racionalidade ajudou-a a enfrentar cada adversidade. Tal como a ginasta Nadia Comaneci, que cai e se levanta. Anabela viu os vídeos de Nadia em loop, a sua busca incessante pela perfeição. “Sempre trabalhei muito, e tentei sempre ser disciplinada, focada. A Nadia ensinou-me isso. Foco absoluto. Não desiste. Não é o tempo de sofrer, não é o tempo de chorar, agora é o tempo de trabalhar, agora é o tempo de ter forças. E boa cara. Agora percebo que fui muito dura para mim, mas essa foi a minha maneira de me segurar.” Nós aguentamos tudo, como diz Ester. Outra vez as mulheres e as imposições da sociedade patriarcal: “Elas têm de aguentar, têm de ter filhos e dar uns gritos e a seguir passou tudo como se não tivessem dor”. Parece “conversa de chacha”, mas é assim mesmo. “Aparece uma força que a gente não sabe que tem até estar na situação. E depois já passou.”
Anabela deixa um apelo: “Apesar de eu assumir, sem nenhum problema, até porque quero fazer esse apelo à vigilância, acho que a doença é só um dos elementos deste romance. Não queria que isto parecesse um livro sobre uma pessoa que teve um cancro e que escreve o testemunho disso.”
Nascer e morrer: as muitas declinações da vida
Mais do que o cancro, sem dúvida, este é um livro sobre o nascimento e a morte. “O nascimento e a morte são os grandes acontecimentos, as balizas da vida humana”, diz Anabela. Existe nesta obra um medo generalizado da morte - por causa da pandemia e por causa do cancro. O medo da própria morte e da morte dos que nos são próximos. “E quando falamos disso estamos a falar daquilo que define a condição humana, que é tocar a sua própria mortalidade.” A morte rodeia-nos. Existe uma morte, a morte de Aurora, “que é uma coisa muito dolorosa no livro”.
Existe também a impossibilidade do nascimento, a infertilidade e como isso afeta mais as mulheres. Mas existe família, da primeira à última página. A ideia de família, a biológica, a de criação, a que se escolhe, a que se idealiza, a que se tem, atravessa também este “O Quarto do Bebé”. O pai que esteve ausente nos primeiros anos de vida, por causa da guerra; a mãe que trabalhou sempre para sustentar a família; a mãe que é o exemplo, para o bem e para o mal, a mãe sempre ali, mais perto ou mais longe, mas sempre ali; a afilhada Ana Ester; a Aurora, que é uma outra mãe; as irmãs, os amigos, um amor que não se explica, o cuidado que temos pelas nossas pessoas. São muitas as formas de ser filho e de ser mãe. “Genealogia e filiação são noções fundamentais”, confirma a autora.
“Porque é que nós somos condicionados para ter filhos, para propagar a espécie, legar qualquer coisa para a posteridade? Isso é, como dizia o Schopenhauer, uma expressão da vontade da espécie?”, pergunta-se. E voltamos ao Machado de Assis, obviamente. “Que filhos são os nossos se não são esses a que o Bentinho de ‘Dom Casmurro’ chamava ‘um filho próprio da minha pessoa’. Não pode ser outro, tem de ser carne da sua carne. Quando não existe esse filho, como é que exprimimos essa pulsão, esse instinto, como é que nós, no fundo, criamos?”
O tema anda às voltas na cabeça de Anabela Mota Ribeiro e não é de agora. A tese de doutoramento, em que está a trabalhar, é sobre “Fecundidade e infecundidade: o problema dos filhos e da autoria em Machado de Assis”. E a escolha, conta, é muito anterior à escrita do romance. No fundo, a questão é a mesma, diz: “É uma interrogação sobre as formas de exprimir o nosso ser fértil. No Machado o problema dos filhos põe-se com estrondo a partir das ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, que termina com esta frase: ‘Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria’.”
A hipótese levantada é que a realização pessoal não tem de passar pela paternidade e que a escrita pode ser um legado. Existem no romance, efetivamente, uma gravidez e um nascimento. O nascimento de uma autora, que se descobre, afinal, “um corpo fértil”. Um livro que é como um bebé desejado. O escritório é, enfim, o quarto do bebé, ainda que não haja berço nem fraldas para trocar.
“Nada do que aí está me envergonha”
Palavras da Ester n’”O Quarto do Bebé”: “Escrever é conseguir estar nua, desorbitada, fora do tempo cronológico. É avançar nua e intrépida. E sem vergonha, que é o mais difícil.” Em vários momentos, a narradora pergunta-se o que irão os outros pensar, como irão ler aquele diário.
Anabela Mota Ribeiro admite que é uma pessoa reservada. E, no entanto, este é um livro de grande exposição. “O meu eu pensou muito sobre o que seria este estar nua no palco. Mas depois compreendi que essa, de facto não sou eu. Sou eu também, mas não sou eu. Isso foi importante”, explica. “Perceber que a Ester é uma personagem, a Aurora é uma personagem, a Ana Ester é uma personagem. E não correspondem à projeção de uma pessoa, são de facto muitas coisas, muitos sedimentos.” Como se, feitas as contas, a ficção levasse mesmo a melhor sobre a realidade.
Além disso, houve um momento em que sentiu que estava preparada para avançar para a publicação deste romance. Para se assumir escritora. Foi quando percebeu: “Nada do que está aí me envergonha. Todos temos as nossas vergonhas, as nossas fragilidades, as nossas maldades, mas eu não tenho vergonha do que aí está, do que possa ser reconhecido como vilmente biográfico ou do que possa ser adivinhado, tateado, como uma projeção de mim. Dizer que estou preparada é dizer que, dentro de mim, eu resolvi publicar e resolvi que o livro estava pronto a ser publicado.”
"O Quarto do Bebé", de Anabela Mota Ribeiro, é editado pela Quetzal. A sessão de lançamento acontece na terça-feira, 23 de maio, às 18:30, na Biblioteca do Palácio Galveias, em Lisboa. A apresentação é de Joana Matos Frias e haverá leituras de Beatriz Batarda, Pedro Penim, Rui Horta e Susana Moreira Marques.