Como a guerra e a crise energética estão a "empurrar" o Japão de volta para as centrais nucleares

7 mai 2022, 21:00
A central nuclear de Fukushima numa foto de 2010

Pobre em recursos energéticos, a terceira maior economia do mundo tem uma rede de 36 reatores nucleares que quase não usa desde o acidente de Fukushima. Com novas regras de segurança, deverão ser reativados nos próximos anos. A escalada dos preços dos combustíveis e a vontade de cortar com as importações oriundas da Rússia podem acelerar o processo. Maioria da opinião pública voltou a aceitar o nuclear

Com os preços da energia a disparar nos mercados internacionais por causa da invasão russa da Ucrânia, com as ameaças de perturbações de fornecimento internacional de petróleo e gás natural devido à guerra no Leste da Europa, e com o iene a desvalorizar, tornando as importações energéticas ainda mais caras, o Japão volta a virar-se para as centrais nucleares como solução para a sua crónica dependência energética. 

"A energia nuclear é uma fonte de energia básica necessária para a descarbonização e é importante em termos de fornecimento estável [de energia ao Japão]", já reconheceu o primeiro-ministro, Fumio Kishida. 

Atualmente, as centrais nucleares fornecem menos de 4% da energia consumida no país - em 2011, antes do desastre nuclear de Fukushima, eram responsáveis por 1/4 da energia consumida no Japão. Parece cada vez mais provável um regresso a esses tempos: Tóquio está apostado em recuperar a energia atómica e fazer crescer as energias renováveis.

Neste momento, 3/4 da energia consumida no Japão é de origem fóssil - petróleo, gás natural e carvão, matérias-primas que o país não tem. 

O chefe do governo nipónico passou a última semana em digressão internacional, por três países do Sudeste Asiático e duas capitais europeias - Roma e Londres - e a questão energética foi um dos tópicos sobre a mesa, ligada à crise global provocada pela invasão russa da Ucrânia. Nesta quinta-feira, em Londres, Kishida e Boris Johnson confirmaram que os dois países irão trabalhar juntos para ajudar os países asiáticos a desenvolver energias renováveis, que permitam não apenas diminuir a emissão de gases com efeito de estufa, mas também encontrar alternativas aos combustíveis fósseis vendidos pela Rússia. Há uma semana, esse já tinha sido um dos temas principais nas conversas com o chanceler alemão, quando este visitou Tóquio e prometeu a partilha de tecnologias verdes e a colaboração entre os dois países no desenvolvimento de energias não-poluentes, como o hidrogénio.

Em março, quando anunciou que o Japão deixará de importar carvão russo, Kishida prometeu que o país irá "maximizar a utilização de fontes de energia que são altamente eficazes em termos de segurança energética e descarbonização, incluindo as energias renováveis e a energia nuclear".

E esta é, cada vez mais, a opção imediata para que os políticos olham. Afinal, o Japão tem uma robusta rede de centrais nucleares, atualmente com 36 reatores - simplesmente, a grande maioria está desativada desde o acidente com a central de Fukushima, em 2011, depois de um violento tremor de terra e tsunami. O acidente obrigou à evacuação de mais 170 mil pessoas que viviam nas redondezas da central nuclear - alguns poderão voltar nos próximos meses, mas a esmagadora maioria dessa população continuará deslocada. Naquele que foi o mais grave acidente com uma central nuclear desde Chernobyl, estima-se que entre mil e duas mil pessoas possam ter morrido devido a complicações de saúde provocadas pela exposição à fuga de material radioativo, que contaminou o ar, o solo e as águas, tendo chegado às águas do Pacífico.  

Pela primeira vez, maioria volta a ser favorável ao nuclear

Passados 11 anos sobre esse acidente, governantes e eleitores parecem dispostos a reconciliar-se com a energia nuclear. A escalada de preços das energias fósseis e a incerteza provocada pela guerra na Ucrânia fez com que, pela primeira vez desde Fukushima, a opinião pública pareça pela primeira vez maioritariamente a favor do regresso ao nuclear. 

Na última sondagem nacional sobre o assunto, 53% dos inquiridos disse concordar com a reativação das centrais nucleares, para responder às necessidades energéticas do país - desde 2011, a maioria das opiniões era contrária a esta possibilidade. Ainda em setembro, numa sondagem semelhante, apenas 44% eram favoráveis ao regresso ao nuclear - a mudança de maioria foi notável em pouco mais de meio ano.

O poder político também já terá assumido que é esse o caminho. “A única alternativa é a energia nuclear”, dizia no mês passado uma fonte governamental citada pelo diário Japan Times. “É a melhor opção”, já assumiu também Itsunori Onodera, antigo ministro da Defesa, e dirigente do Partido Liberal Democrático (PLD), no poder. 

O governo de Tóquio tem sido um dos mais firmes promotores de sanções económicas contra a Rússia, e reconhece que essa pressão só será insuportável para Moscovo quando atingir também as exportações de petróleo, gás e carvão russos. A posição dura do governo em relação ao Kremlin conta com um apoio muito amplo do eleitorado, dizem as sondagens.

Porém, à semelhança de vários países ocidentais, o Japão sabe que isso terá um custo na fatura da energia que é paga a cada mês. Tóquio tem uma enorme dependência das importações de energia, e uma relativa dependência da importação de energia da Rússia: vem daí quase 5% das importações de petróleo, cerca de 8% do gás natural liquefeito e 11% do carvão que chega ao país oriundo do estrangeiro. 

Para além destas importações, o Japão tem em curso duas vastas parcerias energéticas com a Rússia para exploração de reservas de petróleo e de gás na Ilha Sacalina, a norte do arquipélago nipónico - Tóquio decidiu prosseguir esse projeto, mas a rápida degradação das relações bilaterais entre os dois vizinhos desde a invasão da Ucrânia  poderá por em causa a continuidade dos projetos Sacalina 1 e Sacalina 2.

A dificuldade de um corte imediato nas importações de energia russa ficou patente esta semana, quando o ministro da economia japonês disse em Washington que "o Japão tem recursos limitados e é difícil para nós alinharmo-nos imediatamente" com a UE e os EUA, que estão a trabalhar num boicote o petróleo, gás e carvão russos. "É necessário que os países façam o que puderem para manter o ritmo", disse Koichi Hagiuda, acrescentando que o seu governo quer "partilhar a mesma direcção" dos parceiros do G7.

Nuclear no caminho para a energia verde

Em outubro do ano passado, o governo apresentou um plano de transição energética, segundo o qual pretende aumentar a quota da energia nuclear para 20-22% da produção total de energia do país no ano fiscal de 2030; no ano fiscal de 2020, o nuclear representou apenas 3,9% do total de energia consumida no país.

O Japão mantém 36 reatores nucleares, mas após o desastre de Fukushima toda a rede foi sujeita a rigorosas avaliações de segurança - nomeadamente segurança contra tremores de terra, que são muito comuns no país, e contra o impacto de maremotos. No caso de Fukuhima, ficou claro que a central não estava preparada para o cenário que se veio a verificar em 2011. 

Entretanto, apenas 10 reatores nucleares recomeçaram a funcionar. Atualmente, apenas cinco estão ligados à rede, num total de 36 reatores considerados operacionais (eram 60 antes do desastre de Fukushima, mas 24 foram de imediato considerados obsoletos e desligados). Dos restantes 36 há 26 que estão desconectados da rede, enquanto as autoridades os sujeitam a testes e reforçam as suas condições de segurança. 

Mas a sua reativação é um objetivo já assumido pelo governo, ainda antes da atual crise desencadeada pela guerra na Ucrânia. Só se estiverem em funcionamento pelo menos 30 dos 36 reatores nucleares do Japão o país poderá cumprir os seus objetivos de transição verde: a meta de reduzir as emissões de carbono em 46% até 2030 baseia-se no pressuposto de que estarão em funcionamento pelo menos 30 reatores nucleares.

Mas esse objetivo a médio prazo poderá ter de ser acelerado pelas atuais circunstâncias de risco de crise energética. "Se pudéssemos ter os reatores nucleares a funcionar, se pudéssemos acelerar isso, se pudéssemos obter a compreensão das pessoas após termos verificado a segurança - acelerar as inspeções e depois acelerar a reativação [das centrais], é definitivamente uma escolha", disse o dirigente do PDL Itsunori Onodera.

A comunicação social tem dado conta de que o PLD - partido do primeiro-ministro Kishida - começa a dar sinais de impaciência pela lentidão nos processos de inspeção da Autoridade de Regulamentação Nuclear, lamentando que tanto os reguladores como o governo estejam a "procrastinar”. O Governo responde que não há "nenhuma mudança": as centrais atómicas serão reativadas conforme o regulador confirme que cumprem as novas normas de segurança. Essas regras incluem a obrigação de erguer barreiras marítimas mais altas, construir piscinas de arrefecimento de reserva e instalar respiradouros filtrados que reduziriam as descargas radioativas em caso de fuga.

Entre a pressa de uns e a cautela de outros, uma parte da oposição tem criticado o PLD e o governo pelo que diz ser a ânsia em expandir o uso da energia nuclear. Outra parte da oposição (nomeadamente o setor mais conservador da direita) critica o governo por não acelerar ainda mais este processo.

Acelerar as renováveis

O Japão é, de entre os países mais desenvolvidos do mundo, o que tem menor independência energética. É o segundo maior importador global de gás natural, e está entre os maiores compradores de carvão e petróleo. A diminuição de importações de carvão e gás russos poderá ser compensada por mais compras à Austrália, mas Tóquio já disse que, se conseguir estabilizar as suas fontes de energia - leia-se: se aumentar a produção de energia atómica - poderá revender à Europa uma parte do GNL australiano.

Apesar de o ministro da Indústria garantir que o país vai “continuar a trabalhar para reduzir a dependência [do Japão] em relação à Rússia, avançando na diversificação de fontes de energia, incluindo renováveis e a energia nuclear”, esta última opção é a que tem mais caminho feito. Para além das centrais já instaladas, a possibilidade de construir novas centrais com pequenos reatores modulares, de menor dimensão, e com menor risco, também tem sido analisada.

Quanto às energias renováveis, o Japão tem muito trabalho a fazer. Os últimos dados dizem que a energia consumida no país a partir de fontes renováveis andará pelos 15% - o objetivo do governo é chegar aos 24% em 2030. Os adversários da energia nuclear - que continuam a ser muitos, sobretudo nas regiões onde existem centrais - exigem que a aposta seja neste caminho, e não num regresso ao passado.

As principais fontes de energia renovável que o Japão tem explorado são a energia solar e hidroelétrica, mas também eólica e geotérmica. Apesar de ser composto por um conjunto de ilhas, o Japão aposta pouco na energia das ondas. 

Embora seja a terceira maior economia do mundo e uma das mais desenvolvidas, o espectro das falhas de eletricidade voltou este ano a sobressaltar o Japão. Tóquio, a grande metrópole do país, sofreu cortes de energia elétrica em março, quando um terramoto sacudiu o nordeste do país e obrigou ao encerramento de algumas estações de energia termoelétrica. A coincidência do terramoto com o estado do tempo - dias frios, que provocam um maior consumo de energia, e nebulosos, que afetaram a produção de energia solar - fez com que algumas áreas da região metropolitana ficassem vários dias sem eletricidade. Na altura, o governo emitiu um alerta para o risco de mais falhas de energia. O próximo inverno já é olhado com algum receio, caso volte a ser tão gélido como o anterior. 

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