O que precisa de saber sobre o regresso da extrema-direita ao poder em Itália

26 set 2022, 05:25
Giorgia Meloni

O partido neo-fascista Irmãos de Itália venceu e irá liderar o governo mais à direita desde Mussolini. Giorgia Meloni venceu em toda a linha, o centro-esquerda é o grande derrotado, Salvini é meio-derrotado. Órban e Le Pen exultam

Giorgia Meloni venceu em todos os tabuleiros - o seu partido foi o mais votado, e viu os parceiros de coligação perderem peso eleitoral, o que reforça a autoridade da líder dos Irmãos de Itália. Na Europa (e não só), os líderes de extrema-direita celebraram esta mudança histórica na política italiana. Eis as dez principais chaves para entender o que se passou na noite em que a Itália escolheu o governo mais à direita desde o ditador Mussolini:

1. “Um governo liderado pelos Irmãos de Itália” 

Todas as sondagens indicavam a vitória de Giorgia Meloni e do seu partido nestas eleições, mas não havia certezas de que a coligação liderada pela política neo-fascista teria maioria para governar. Ainda sem resultados finais, a projeção de resultados, com base em contagens efetivas, indica que sim: haverá uma maioria absoluta no Senado e na Câmara dos Deputados para a coligação formada pelos Irmãos de Itália, a Liga de Matteo Salvini e a Força Itália de Silvio Berlusconi. Um resultado histórico para os Irmãos de Itália, que nas últimas eleições tiveram apenas 4%, e para o conjunto da extrema-direita italiana.

Em conjunto, os três partidos de extrema-direita deverão somar cerca de 43% na eleição para o Senado, e um valor próximo desse para a câmara baixa do Parlamento. A transposição desse resultado em lugares é complexa, e só será conhecida durante esta segunda-feira, mas a maioria absoluta em ambas as câmaras está assegurada.

O Irmãos de Itália (FdI na sigla italiana) ficou bem à frente de toda a concorrência, em torno dos 26%. O segundo partido mais votado foram os socialistas do Partido Democrático (PD), abaixo dos 20%, e os populistas de esquerda do Movimento 5 Estrelas (M5S), do ex-primeiro-ministro Giuseppe Conte, são a terceira força política, com 15%. A Liga deverá ficar aquém dos 9%, e a Força Itália (FI) está nos 8%.

O Partido Democrático foi o primeiro a reconhecer o triunfo dos neo-fascistas, mas o líder socialista não discursou na noite eleitoral. Meloni esperou para falar apenas quando as projeções já mostravam mais consistência. A líder dos FdI celebrou a vitória, assumindo que há “uma indicação clara para um governo de centro-direita liderado pelos Irmãos de Itália”.

2. Os primeiros recados de Meloni

A futura primeira-ministra de Itália foi cautelosa, e só assumiu a vitória quando já eram 2h30 da madrugada em Itália (menos uma hora em Portugal). Em ambiente de festa, Meloni subiu ao palco sozinha para um discurso de menos de 10 minutos em que ressalvou que só durante o dia de segunda-feira ficará fechado o quadro de resultados, ficando clara qual a dimensão exata da vitória do seu partido e da maioria da coligação de direita. Só então fará considerações mais profundas sobre o resultado. Mas, numa inequívoca afirmação de poder, Meloni deixou claro que o governo será liderado por si, tendo em conta a enorme diferença de peso entre o FdI e os seus futuros parceiros.

A futura líder de Itália apelou à unidade nacional perante a “situação particularmente complexa [do país], que requer o contributo de todos e um clima sereno”. Porém, ao mesmo tempo que apelou à unidade, atacou os partidos de esquerda, acusando-os de terem feito “uma campanha eleitoral que não foi bonita”, “violenta e agressiva”, e de terem lançado mentiras sobre si. “Agradeço a todos os italianos que não acreditaram nas mentiras e nas mistificações que construíram à nossa volta”, disse Meloni, voltando ao tom de vitimização de marcou parte da sua campanha.

Outros temas de campanha que passaram pelo discurso de vitória de Meloni foram a situação económica da Itália - confrontada, como toda a Europa, com a inflação, a ameaça de recessão e a crise energética que resulta da invasão russa da Ucrânia - e a promessa de reerguer o orgulho nacional. Com uma retórica semelhante ao “make America great again” de Donald Trump, Meloni afirmou que “o nosso grande objetivo, como força política, é que os italianos sejam novamente orgulhosos de serem italianos, de desfraldar a bandeira tricolor.” 

A prioridade à economia ficou clara - “A situação com a que a Itália se defronta, a situação com que a União Europeia se defronta, a situação com que seremos confrontados, é particularmente complexa” - e o potencial de confronto entre o futuro governo italiano e as instituições europeias também. Em linguagem mais ou menos cifrada, Meloni indiciou uma nova atitude confrontacional em relação a Bruxelas. Prometeu “reconstruir a relação entre o Estado e os cidadãos, entre as instituições e os cidadãos, porque somos cidadãos livres, não somos súbditos”, e acrescentou que “este é o tempo da responsabilidade, é o tempo em que se se quer fazer parte da história, tem de se compreender a responsabilidade de assumir os confrontos, de defender milhões de pessoas.” 

“Não trairemos Itália, como nunca traímos”, prometeu a futura chefe do governo, que ainda teve, no final do seu discurso, uma palavra de agradecimento para Matteo Salvini e Silvio Berlusconi.

3. Meloni ganhou em todos os tabuleiros

O partido fundado e dirigido por Giorgia Meloni não venceu apenas por ter sido o mais votado. Também venceu por ter sido o motor do que poderá ser uma maioria confortável para a coligação tripartida que negociou com Salvini e Berlusconi. E pode celebrar, igualmente, o facto de ter crescido de forma estrondosa em relação às eleições anteriores (teve 4% em 2018), enquanto os seus parceiros de maioria viram a sua força eleitoral encolher.

Meloni foi ministra num governo liderado por Berlusconi, e foi sempre vista como o parceiro júnior da Liga, de Salvini. Agora, as posições de força inverteram-se - e os resultados eleitorais deixaram ainda mais clara essa inversão, tendo em conta a tendência registada pelos três parceiros da futura coligação. Salvini está em queda, e Berlusconi também.

Tendo pela frente uma governação complicada - crise económica e energética, inflação, guerra na Europa -, e como parceiros de governo dois partidos com os quais está muitas vezes em desacordo, Meloni agradece a enorme vantagem eleitoral do seu partido em relação aos restantes. Os FdI valem mais do que os seus dois parceiros juntos. Meloni precisará desse peso para lidar com figuras tão problemáticas como são Salvini e Berlusconi.

4. A extrema-direita europeia exulta

Assim que ficou clara a vitória eleitoral de Giorgia Meloni, os seus parceiros noutros países europeus não tardaram a dar-lhe os parabéns. Sem surpresa, as primeiras mensagens de congratulações chegaram de Viktor Órban, o presidente húngaro, através de um tweet do seu diretor político, que incluiu fotos de Órban com os três líderes da coligação transalpina. Também Marine le Pen, a líder da extrema-direita francesa, enviou as felicitações à futura primeira-ministra, assim como o Vox, de Espanha, e o primeiro-ministro polaco, da mesma família política de Meloni. Um dos filhos de Jair Bolsonaro também já se juntou à festa nas redes sociais.

5. Meia derrota para Salvini

Matteo Salvini, o líder da Liga, foi dos primeiros a assinalar a vitória da coligação de direita, através do Twitter. “Centro-direita em clara vantagem tanto na Câmara como no Senado! Vai ser uma longa noite, mas já quero dizer OBRIGADO”, escreveu o antigo ministro e antigo líder do espaço da extrema-direita italiana assim que surgiram as primeiras projeções. Se é certo que, com este resultado, Salvini voltará ao poder, também é verdade que é um dos grandes derrotados da noite. Nas anteriores eleições legislativas, em 2018, a Liga surgiu como terceira força política, com 17,4%, o melhor resultado de sempre para uma formação neo-fascista italiana, que tornou Salvini num fenómeno político e mediático, e o levou ao cargo de vice-primeiro-ministro. Agora, cai para cerca de metade, ficando provavelmente abaixo dos 9%. A queda é ainda mais estrondosa se se fizer a comparação com as eleições europeias de 2019, em que a Liga foi o partido mais votado, com uns inesperados 34,3%.

Uma penalização que, segundo a análise do jornal italiano La Reppublica, é a consequência de “três anos de erros e caprichos” de Salvini. Nesse rol de erros conta-se a decisão de abandonar a coligação de governo que integrava, em 2019, passando a liderar a oposição ao executivo de Giuseppe Conte, do qual fora nº2. Quando o governo de Conte caiu, em 2021, abrindo caminho à formação do governo de unidade nacional liderado por Mario Draghi, Salvini deu o apoio da Liga a esse executivo - o que deixou os Irmãos de Itália no papel de maior partido da oposição.

6. Mais uma vida para Berlusconi

O antigo primeiro-ministro de Itália, agora com 85 anos, confirma o seu estatuto de sempre-em-pé da política italiana, voltando a fazer parte de uma maioria de governo. Berlusconi já não é o motor da direita, como nos tempos em que chefiava governos (como quando integrou Meloni como sua ministra), mas fez questão de assinalar, logo após as primeiras projeções, que a sua Força Itália foi “decisiva” para levar a coligação tripartida ao poder. O próprio Berlusconi voltou a conquistar um lugar no Senado (não foi candidato em 2018). Apesar de se declarar “satisfeito” com os resultados, o partido de Berlusconi também regista uma forte queda em comparação com os resultados de 2018: teve então 14%, e agora o seu resultado ficará por volta dos 8%. O suficiente, ainda assim, para mais uma vida na sua longa carreira política.

7. A vingança de Conte

Giuseppe Conte, que liderou o governo italiano entre 2018 e 2021 - primeiro apoiado na Liga e depois nos socialistas do Partido Democrático - viu ser-lhe prognosticada a morte política nestas eleições, mas não só sobreviveu como teve muitas razões para sorrir. Quando chefiou o governo, Conte era próximo do 5 Estrelas, mas formalmente era independente, sem vínculo a qualquer partido. Entretanto, assumiu a proximidade ao M5S, tornando-se o líder do partido em agosto do ano passado. O facto de ter sido um dos principais responsáveis pela queda do governo de Mario Draghi deixou-o na linha de fogo tanto fora do seu partido como dentro - assistiu mesmo a uma importante cisão, capitaneada por Luigi di Maio, antigo líder do M5S.

As notícias sobre a sua morte política foram exageradas. O M5S é a terceira maior força política de Itália, com 15%, e conseguiu ser o partido mais votado no sul do país. “O Movimento 5 Estrelas teve um grande regresso. Toda a gente nos via com menos de 10%, em descida constante, e hoje estamos aqui como terceira força. E no sul, de acordo com os dados, seremos o primeiro partido”, declarou Conte, considerando que "o centro-direita pode ter maioria no parlamento, mas não no país”.

Uma das vitórias mais expressivas do M5S foi em Nápoles, onde chegou aos 40% e, mais do que isso, o candidato do partido no círculo uninominal impediu a eleição de Luigi di Maio, antigo líder do Cinco Estrelas que liderou uma cisão em rutura com Conte.

8. Morreu uma estrela

Houve um tempo em que Luigi di Maio era uma estrela no firmamento político italiano. Mas, como o próprio acaba de sentir na pele, esse é um firmamento bastante instável. E a estrela de Di Maio morreu neste domingo. Fundador do Movimento 5 Estrelas, ao lado do comediante Beppe Grillo, Di Maio tornou-se líder do partido em 2017. No ano seguinte foi o grande vencedor das eleições gerais, com 32% dos votos - dessas eleições resultou uma difícil negociação para a formação de um governo, que acabou por ser liderado pelo jurista independente Giuseppe Conte. Di Maio e Salvini, os dois principais parceiros da coligação, ficaram como vice-primeiro-ministros. Di Maio acabou por deixar a liderança do partido em 2020; no ano seguinte, Conte passou a chefiar o Cinco Estrelas depois de deixar o cargo de primeiro-ministro. O M5S foi um dos partidos que apoiou o executivo de unidade nacional liderado por Mario Draghi, mas os dois principais protagonistas do partido não tardaram a entrar em choque: Conte como líder partidário e Di Maio, o ex-líder, como ministro dos Negócios Estrangeiros. 

A invasão da Ucrânia marcou a rutura entre os antigos aliados. Conte quis travar o apoio militar da Itália ao governo de Kiev, uma imposição que nem Draghi nem o seu chefe da diplomacia aceitaram. Draghi levou a melhor, mas no conflito perdeu-se o apoio do M5S ao governo. Di Maio, acusando Conte de ser populista e irresponsável, rompeu com o seu antigo partido, liderou uma cisão entre os seus deputados, e formou uma nova organização política, a que chamou Empenho Cívico. Ontem, nem o novo partido se impôs, nem Di Maio conseguiu ser eleito deputado no círculo uninominal por onde se candidatou - derrotado por um seu antigo colega de governo que permaneceu no M5S.

Questionado sobre a derrota de Di Maio, Conte mostrou-se magnânimo: “Prefiro recordar as batalhas que travámos juntos e a determinação que pusemos em realizar as nossas reformas. Quero ficar com essa memória".

9. Líder socialista sem palavras

Os socialistas do Partido Democrático, o principal rival dos Irmãos de Itália nestas eleições, deverão ficar-se pelos 20%, sem qualquer hipótese de construir uma maioria num Senado e numa Câmara dos Deputados dominados pela direita. Com as sondagens a apontar uma margem entre um mínimo de 17% e um máximo de 22%, Enrico Letta, o secretário-geral socialista que era candidato a primeiro-ministro, optou por não falar na noite eleitoral. 

Debora Serracchiani, líder da bancada do PD na Câmara dos Deputados, deu a cara pelo partido, considerando que foi “uma noite triste para o país”. A representante socialista contestou as regras eleitorais, salientando que “com esta lei eleitoral a direita tem a maioria no Parlamento, mas não tem a maioria no país”.

Já Stefano Bonaccini, socialista que preside à região de Emilia Romagna, deu os parabéns a Giorgia Maloni, considerando que “a afirmação da direita é clara”. Andrea Marcucci, senador do PD que não conseguiu ser reeleito, reconheceu que “este é provavelmente o pior resultado, ou um dos piores, do centro-esquerda na história [de Itália]”. 

Os socialistas subiram pouco mais de 1 ponto percentual em relação a 2018, mas ficam fora de qualquer maioria governativa. E, com as vitórias do Cinco Estrelas no Sul de Itália, o PD enfrenta tempos difíceis. Conte já apontou o dedo aos socialistas, a quem havia proposto um entendimento. "As escolhas feitas por este grupo que lidera o PD comprometeram uma ação política que poderia ter sido competitiva com este centro-direita que se apresentou unido. O centro-direita ganhou, a liderança do PD tem de assumir a responsabilidade. Os cidadãos estão a mostrar, especialmente no Sul, que o voto de oposição ao centro-direita é o voto no M5S”, disse Conte, que deixou um desafio aos socialistas: “Seremos o posto avançado para a realização de uma agenda progressiva (...) Veremos se o PD virá atrás de nós.

10. A maior abstenção de sempre

Meloni lamentou a alta abstenção destas eleições, e foi também nesse sentido que prometeu reconstruir a confiança entre os cidadãos e o Estado - “Tornar a fazer com que os cidadãos acreditem nas instituições”. Será um trabalho árduo, se tivermos em conta que a votação de ontem foi a menos participada de sempre na história das eleições legislativas italianas. Só 63,9% dos italianos inscritos nos cadernos eleitorais foram votar, menos 9 pontos percentuais do que nas eleições anteriores, em 2018. Ou seja, apesar do dramatismo destas eleições, enfatizado tanto pela esquerda como pela direita, e num momento de crise económica e social, nunca tão poucos italianos foram às urnas escolher o seu governo.

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