Havia folga orçamental para descer o IRS este ano. “Não foi essa a escolha política”

ECO - Parceiro CNN Portugal , Mónica Silvares
1 out 2023, 17:00
Rui Nuno Baleiras

Rui Baleiras, coordenador da UTAO, diz que é mais urgente descer o IRS do que IRC, que os escalões de IRS são muito baixos e que todas famílias deveriam entregar declaração, mesmo as que não pagam

Portugal é, neste momento, mais urgente baixar o IRS do que mexer no IRC, porque a “política fiscal em sentido alargado é adversária do fator trabalho”, defende o coordenador da Unidade Técnica Orçamental. Em entrevista ao ECO, Rui Baleiras defende que havia folga orçamental este ano para baixar o IRS, mas “não foi essa a escolha política”. No entanto, também alerta que em vésperas de apresentação de um Orçamento do Estado não é o momento para lançar a discussão de uma reforma fiscal.

Uma reforma que há muito se impõe já que, “como dizia Teodora Cardoso, em Portugal os impostos sempre serviram para financiar a despesa e não como instrumentos para regular a economia”, recorda o economista que integrou o Conselho das Finanças Públicas quando este era liderado pela agora falecida Teodora Cardoso.

Rui Baleiras considera que os escalões de IRS são demasiado pequenos e, rendimentos baixos quando comparados com a média da OCDE são tributados com taxas muito elevadas. O coordenador da UTAO, que acaba de publicar um parecer à Conta Geral do Estado de 2022, a bem da transparência defende ainda que todos os contribuintes deveriam entregar o Modelo 3 de IRS, mesmo aqueles que não pagam imposto. A ideia é justificada com o exemplo de uma pessoa de baixos rendimentos, com apoios sociais que ganha o Euromilhões.

“Temos de olhar conjuntamente para a forma como financiamos a Segurança Social e como tributamos os rendimentos da pessoais”, defende.

 

 

Quais são os riscos subjacentes à elaboração de uma proposta de Orçamento de Estado para o próximo ano?

Uma proposta de Orçamento de Estado, por muito bem feita que seja, enfrenta riscos de erro. Uma proposta, do ponto de vista contabilístico, faz previsões de cobrança de receita e de realização de despesa, tetos de despesa. E essas previsões assentam no conhecimento mais recente sobre o desempenho da economia e das finanças públicas, mas também em previsões de como a economia portuguesa e internacional se irão comportar nos próximos 12 meses. E, como é sabido, os macroeconomistas erram tanto quanto os meteorologistas quando se trata de prever o futuro. Mandam as boas práticas, que haja prudência na previsão da receita adicional que as Administrações Públicas conseguirão cobrar e, consequentemente, prudência também na fixação dos tetos de despesa.

O cenário internacional que vivemos — uma guerra no Ucrânia, juros em valores bastante elevados, uma inflação que persiste e resiste, apesar da política monetária — é um cenário acrescido de incertezas e dificuldades para a elaboração de uma proposta de Orçamento?

Acrescida em relação ao que tivemos há 12 meses quando a generalidade dos previsores oficiais não acreditava que a inflação fosse como se revelou ao longo dos meses seguintes e, portanto, também se esperava que o crescimento muito acelerado da economia em 2021 e também em 22 e não tivesse uma travagem tão brusca como as últimas previsões de verão das várias instituições internacionais estão a apontar. Os próprios dados do INE já apontam para uma travagem significativa no segundo trimestre de 2023 em Portugal. Com aquilo que se conhece em termos da evolução previsível das taxas de juro, é mais do que provável, que haja uma restrição financeira mais forte à execução do Orçamento de Estado de 2024 do que aconteceu em 2023. Não quer dizer que as Administrações Públicas vão cobrar menos receita. O que quero dizer é que a variação, ou seja o acréscimo face ao ano anterior, neste caso 2023 vai ser menor do que foi em 2023, relativamente a 2022.

O Governo no Programa de Estabilidade, já prometia que haveria uma redução do IRS em 2024. Essa redução deveria ser feita através de um aumento do número de escalões de IRS ou alterando as taxas de imposto existentes nos limites dos escalões?

Como economista, tenho uma opinião pessoal sobre a estrutura fiscal ideal para a qual devíamos caminhar. Mas enquanto coordenador de uma unidade independente que avalia a política orçamental, não o devo fazer. Em termos de análise positiva, daquilo que os dados cantam, deixe-me dar dois ou três indicadores que revelam quão necessário é baixar o esforço fiscal em sede de IRS. Repare que disse esforço e não carga fiscal.

A carga fiscal é um conceito sempre polémico.

A carga fiscal significa que no numerador temos os impostos todos e as contribuições para a Segurança Social e no denominador temos uma medida da dimensão da economia: o PIB, ou seja, tanto a parte que paga impostos como a que não paga impostos. Quando falamos de esforço fiscal, estamos a falar da receita que é cobrada ao nível de um agente, dividindo pelo rendimento que ele tem. No caso do IRS, convém lembrar que 50% das famílias portuguesas não paga IRS, o que faz com que haja aqui uma grande diferença em termos de carga fiscal do IRS e esforço fiscal do IRS.

E devia? O IRS devia ser pago por um leque maior de contribuintes?

Essa não é a questão essencial, embora ache importante começarmos por todas as famílias, independentemente do seu nível de rendimento e da origem do rendimento, apresentarem uma declaração Modelo 3. Não quer dizer que é para tributar, mas para conhecer a verdadeira diferenciação financeira das pessoas. Vou dar o exemplo do professor, Hélder Reis: uma pessoa que ganha menos do que o salário mínimo tem a sorte de lhe sair o Euromilhões. Ganha 50 milhões de euros de uma vez só. Mas como os rendimentos declarados são muito pequenos, ela é beneficiária de vários apoios sociais. Será justo que uma pessoa que ganhou 50 milhões euros continue a receber esses benefícios sociais? Não se sabe que essa pessoa recebeu porque não entrega declaração de IRS. Portanto, termos uma declaração de IRS abrangente, mesmo com isenção de pagamento de IRS, dá mais informação às políticas públicas sobre condições de elegibilidade e condições de pagamento das pessoas.

Voltando ao esforço fiscal…

Preocupa-me o facto de a dimensão da eficiência na afetação de recursos que a estrutura do IRS possui ser muito grande. A Taxa Social Única (TSU) também afeta o preço do fator trabalho. Relativamente a outros fatores de produção na economia, como o solo, o capital, etc, o fator trabalho é de longe o que tem uma maior tributação na margem. Isto é, cada euro adicional de salário paga mais imposto. Vejamos o exemplo de um indivíduo que enfrente uma taxa marginal de 48% — e em Portugal chega-se a esta taxa com rendimento baixo em termos europeus, estamos a falar de 78 mil euros por ano, ou seja, 5.500 de rendimento bruto. Se for contratado por uma empresa, a empresa sobre o salário, vai pagar 23,75%, o trabalhador paga 11% mais os 48% por cada euro a mais no seu salário. Ou seja, a diferença entre o custo de uma hora a mais desse trabalhador para a empresa e o rendimento líquido que leva para casa é de 2,5 vezes. A empresa paga 2,5 vezes mais do que o que o trabalhador recebe. Não há nenhum outro fator de produção na economia tão penalizado pela intervenção fiscal.

Acresce que o fator capital é, em muitas circunstâncias, até é subsidiado em Portugal. Pense nos benefícios fiscais que muitas formas de investimento material têm, nos subsídios atribuídos pelos fundos estruturais. A política fiscal em sentido alargado, incluindo TSU, benefícios fiscais, fundos estruturais, incentiva o crescimento económico que é adversário do fator trabalho. Isto ajuda-nos a compreender porque é que, numa perspectiva de longo prazo, os salários são tão baixos em Portugal.

É por isso a CIP agora sugere oferecer um 15.º salário isento de tributação.

E explica porque a participação do fator trabalho no VAB ou no Produto, no rendimento que é gerado todos os anos na economia portuguesa, baixou de cerca de 2/3 nos anos 80 para à volta de 40%. Quer dizer, perdeu mais de um terço do seu peso. Isto significa que temos de olhar conjuntamente para a forma como financiamos a Segurança Social e como tributamos os rendimentos da pessoais.

Ou seja é mais urgente, neste momento, baixar o IRS do que mexer no IRC?

Sim, sim.

Porque a tributação do fator trabalho é muito mais pesada?

A tributação é muito mais pesada e tem este efeito realmente muito adverso de promover um crescimento enviesado a favor do capital e contra o fator trabalho a que acrescem outros motivos. É um travão muito grande. Depois os escalões são muito baixos. Um estudo recente do Prof Fernando Alves da Faculdade de Economia do Porto, mostra que a média das taxas marginais mais altas no conjunto da OCDE ronda os 37 ou 38%. Ora, alguém que ganhe pelo menos 78 mil euros por ano, significa 5.500 euros por ano em termos brutos em números redondos, está a pagar em Portugal 48% de taxa marginal. As pessoas do último escalão na média da OCDE, não só o salário que ganham é muito superior a estes 78 mil como entram no último escalão com salários, se calhar superiores em 30 ou 40.000 euros por ano, e pagam 38%. Aqui é 48%! Isto também penaliza a competitividade do fator trabalho em termos internacionais.

Na análise da UTAO à Conta Geral do Estado sublinham o crescimento da receita como um todo, fruto da inflação e da retoma económica. Teria sido prudente avançar já com uma descida do IRS em 2023, porque se tinha mais previsibilidade quanto à evolução da economia este ano do que atirá-la para 2024?

Essa é uma escolha política e não me quero pronunciar sobre ela. É óbvio que a sua pergunta tem implícita a resposta, claro, se havia folga ou capacidade orçamental para o fazer. Sim. Não foi essa a escolha política.

No seu entender havia folga?

Sim. Havia aqui um elemento de incerteza e que o Governo foi mostrando atenção ao longo do ano: os efeitos nocivos da inflação alta sobre o poder de compra das famílias e o custo das empresas e pretendeu sempre ter capacidade adicional para a meio do ano poder introduzir essas medidas adicionais. Agora, não é na época da discussão do Orçamento que se faz uma reforma fiscal. Este é um erro estrutural do país, como outros. O nosso processo legislativo orçamental, de facto, não se recomenda a ninguém. Temos a mania de meter tudo — medidas novas, medidas de mercearia e medidas estruturais — na Lei do Orçamento e, portanto, não há escrutínio, não há sufrágio, não há reflexão técnica aprofundada, não há metas orçamentais a alcançar. Não há nada, só há marketing.

E dá-se muito mais atenção a este momento da preparação do Orçamento de Estado do que depois da verificação…

Absolutamente. Isso é uma ilação que se retira do nosso estudo sobre a Contas Geral do Estado de 2022 e que, neste particular, repete resultados que fizemos a outras contas. Temos uma esquizofrenia no nosso espaço mediático, espaço público, a propósito das medidas de políticas. Porque em outubro e novembro, quando está em discussão na Assembleia da República, a proposta de Orçamento de Estado para o ano seguinte, toda a gente, Governo, oposição, comentadores falam muito de anúncios de medidas. Na maior parte das vezes é uma linha ou duas no relatório do Orçamento do Estado. Há muitas outras medidas para além dessas 20 ou 30 que sobressaem no debate político, que estão escondidas no texto jurídico.

No articulado do Orçamento.

Na proposta de Lei. Efetivamente, o que domina a discussão no espaço público da proposta de Orçamento do Estado é o que se promete fazer. Mas quando chega à Conta Geral do Estado, qual é o espaço que ocupa na discussão pública? Bola, zero. Ou seja, parece que somos muitos exigentes sobre aquilo que o menos interessa — as promessas. Quando deveríamos, como cidadãos e sociedade sobre aquilo que é a entregue aos cidadãos e às empresas dos resultados das políticas públicas com tradução no Orçamento de Estado.

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