Do futebol ao golfe, o país está a pôr em marcha uma estratégia de enorme investimento no desporto mundial. Pistas, perguntas e respostas para o que está em jogo
Arábia Saudita passou a ser o destino mais repetido quando se fala no mercado de transferências, uma vertigem de notícias sobre quem vai, quem pode ir, quem ia mas não vai. Já foi Cristiano Ronaldo, primeiro, depois Benzema, Kanté, Koulibaly, Rúben Neves. Mas há muito mais em volta desta história, que já virou do avesso, por exemplo, a estrutura do golfe mundial. Através do desporto, o mundo fala sobre a Arábia Saudita e a sua capacidade financeira como nunca antes.
Houve outros fenómenos recentes de investimento massivo de Estados no desporto, também no Médio Oriente. A Arábia Saudita começou mais tarde, mas está a posicionar-se de forma particularmente incisiva e abrangente. Perguntas, respostas e perspetivas para perceber o que está o maior país do Médio Oriente a fazer, quais são as intenções e onde pode isto levar.
Onde está afinal a investir a Arábia Saudita no desporto?
No futebol, o investimento mais relevante foi a aquisição do Newcastle, no ano passado, através do principal fundo soberano saudita, o PIF (Public Investment Fund). Mas a aposta internacionalmente mediática no futebol até é o lado mais recente da estratégia saudita. Os investimentos vão muito para lá disso, sobretudo como destino de grandes eventos internacionais. O país recebe desde 2021 um Grande Prémio de Fórmula 1, tem uma parceria de longo prazo com a WWE, organização mundial de wrestling, também recebe a Fórmula E, é anfitrião das Supertaças de Espanha ou Itália – e num futuro próximo talvez também da final four da Taça da Liga portuguesa. Tem planos para organizar muitas mais competições – o site The Athletic cita fontes governamentais sauditas a definir como objetivo receber 25 Mundiais de várias modalidades até 2030. Vai receber a Taça de Ásia das Nações em 2027. Lançou a hipótese de se candidatar ao Mundial 2030 e, embora tenha abandonado a intenção, esse cenário está sobre a mesa para o futuro. Também tem a organização de uns Jogos Olímpicos como «grande objetivo», segundo assumiu o ministro dos desportos, o príncipe Abdulaziz. Além disso estabeleceu uma parceria de «cooperação e desenvolvimento» com a CAF, a Confederação Africana de futebol, que deverá passar também pelo patrocínio da futura Superliga africana. E depois há o golfe. Há um ano, a Arábia Saudita patrocinou, de novo através do fundo PIF, a criação de um circuito de golfe alternativo, concorrente do PGA Tour e do circuito europeu.
O que aconteceu mesmo no golfe?
O circuito LIV Golf foi anunciado com pompa, fazendo alarde de muito dinheiro para aliciar jogadores de topo, com um formato que se anunciava mais atrativo e melhores prémios monetários. Conseguiu seduzir vários golfistas, entre eles o norte-americano Phil Mickelson ou o espanhol Sergio Garcia, e disputou-se em 2022 ao longo de oito provas. Aconteceu à revelia da PGA Tour, a principal organização profissional do desporto, e do circuito europeu. E o que se seguiu foi uma dura batalha jurídica, com suspensão pela PGA dos jogadores dissidentes, com processos de uma parte e da outra em tribunal. Estávamos nisto quando, no início de junho, foi anunciada… uma fusão entre todos. PGA Tour, Circuito Europeu e LIV Golf passam a ser uma só entidade. Os pormenores dessa fusão ainda não foram divulgados, mas esta representa uma decisão sem precedentes ao mais alto nível numa modalidade profissional. Tanto que já levou o Senado americano a exigir ouvir os envolvidos e, segundo noticiou o Wall Street Journal, à abertura de um processo na justiça, para averiguar eventuais quebras das leis da concorrência.
Porque é que a Arábia Saudita desatou a gastar tanto no desporto?
A questão é complexa e terá várias respostas, que vão da estratégia à necessidade. A Arábia Saudita é o maior exportador mundial de petróleo, o grande responsável pela riqueza do país. Mas a volatilidade do preço do barril nos últimos anos - que o regime saudita tem tentado contrariar de várias formas, nomeadamente reduzindo a produção para tentar elevar os preços, o que impacta no consumidor final – levou à necessidade de tornar a economia saudita menos dependente do petróleo. Em 2016 a Arábia Saudita lançou um plano estratégico a que chamou Visão 2030, que tem como objetivo precisamente diversificar a economia. Por trás desse projeto estava Mohammed Bin Salman, príncipe reinante desde 2017 e na prática o líder do país. O investimento no desporto faz parte dessa estratégia.
A Arábia Saudita chegou a esta lógica de investimento massivo no desporto mais tarde do que os seus vizinhos. O Qatar fê-lo logo no início do século. Também procurou contratar estrelas para o seu campeonato – Pep Guardiola, por exemplo, passou por lá no final da carreira – e conseguiu o ás de trunfo que foi a organização do Mundial 2022, com tudo o que de obscuro isso envolveu. O Mundial 2022 serviu de alavanca para um enorme investimento em formação e infraestruturas, mas a estratégia foi também internacional, com a aquisição do PSG. E mantém-se, uma vez que é qatari a principal proposta para uma eventual aquisição do Manchester United, um processo que se arrasta há meses.
Os Emirados Árabes Unidos também foram procurando atrair jogadores e treinadores estrangeiros e receber grandes eventos desportivos, mas sobretudo garantiram um posicionamento forte no futebol internacional alicerçado na compra do Manchester City e na expansão do grupo para várias latitudes.
O investimento no desporto é também uma via privilegiada para promover uma imagem mais positiva do país, particularmente cara a regimes autocráticos como os do Médio Oriente, como a Arábia Saudita. Uma gigantesca operação de marketing ou, para pôr a coisa noutros termos, «sportswashing», o termo que esteve na ordem do dia a propósito do Mundial no Qatar e que se tem repetido também a propósito da Arábia Saudita.
A questão dos direitos humanos levou mesmo à marcha-atrás num plano de investimento da Arábia Saudita no Mundial feminino. Esteve sobre a mesa um patrocínio saudita à competição, mas ele foi criticado por várias jogadoras e pelos países organizadores, Austrália e Nova Zelândia. A FIFA acabou por anunciar que tinha sido uma hipótese, mas não avançaria.
Quem já foi e quem vai ainda para a Liga saudita?
Antes de mais Cristiano Ronaldo, que no último dia do ano passado rumou ao Al Nassr depois de rescindir com o Manchester United e pôs definitivamente a Arábia Saudita nas bocas do mundo. Neste defeso Karim Benzema despediu-se do Real Madrid e assinou pelo campeão Al Ittihad. O francês, atual detentor da Bola de Ouro, estava em fim de contrato. Falando ainda de estrelas planetárias, a Arábia Saudita tentou contratar Messi, mas o argentino optou pelos Estados Unidos e pelo Inter Miami. Mas a Arábia Saudita «tem» Messi por outra via, através de um contrato de promoção do turismo no país em vigor já desde 2021 e que também terá contornos milionários.
Outro jogador de topo que fez agora a mudança foi N’Golo Kanté, também em fim de contrato com o Chelsea e que aos 32 anos se juntou a Benzema no Al Ittihad. Foi o primeiro a trocar o clube inglês pelo futebol saudita. Neste domingo seguiu-se o central Kalidou Koulibaly, que aos 32 anos assinou pelo Al Hilal, onde chegou também Rúben Neves. Os valores da transferência de Koulibaly não foram divulgados, mas o negócio reforça as questões sobre outra área de influência saudita - o fundo PIF será um dos investidores da Clearlake Capital, a empresa de investimento privado que foi a principal financiadora da compra do Chelsea. O tema tem sido motivo de debate em Inglaterra, ainda sem uma posição oficial do Chelsea, que tem passado no entanto a ideia, citada por exemplo pela BBC, de que não há qualquer envolvimento direto do PIF no clube londrino.
Outra transferência relevante foi a de Rúben Neves, esta com contornos diferentes, pelos valores envolvidos e pela idade do médio. Não foram revelados valores oficiais, mas será na ordem dos 55 milhões de euros. O internacional português assinou pelo Al Hilal e chega ao futebol saudita aos 26 anos, numa fase da carreira que contraria a tendência de aliciamento sobretudo de jogadores mais veteranos.
Há muitos outros nomes que têm sido apontados como hipóteses, entre eles o português Bernardo Silva. Mas no meio de tanto ruído é difícil perceber o que de facto são potenciais negócios em curso e muito menos os reais valores envolvidos. Fonte conhecedora do processo disse ao Maisfutebol que, nesse campo, muitos dos valores que têm sido noticiados estão inflacionados.
Entre outros jogadores que rumaram recentemente ao futebol saudita estão também os portugueses Ivo Rodrigues (ex-Famalicão) e Pedro Rebocho (ex-Lech Poznan), que rumaram ao Al Khaleej, onde já estão Fábio Martins e Pedro Amaral e que tem o também português Pedro Emanuel como treinador.
Nuno Espírito Santo, que foi campeão com o Al Ittihad, é outro dos técnicos portugueses na Arábia Saudita, tal como Filipe Gouveia, à frente do Al-Hazm, que subiu esta época ao primeiro escalão. Nos últimos anos houve vários outros treinadores portugueses no futebol saudita, desde logo Jorge Jesus ou Rui Vitória.
A aposta saudita já começou portanto há uns anos, associada ao tal projeto Visão 2030, mas tornou-se bem mais mediática no último ano. E ainda muito pode acontecer nos próximos meses, uma vez que a janela de mercado europeia ainda agora está a abrir.
Há ainda muita margem de contratação por parte da Liga saudita, que tem aliás regulamentações quando a jogadores estrangeiros mais folgadas do que era regra até há poucos anos nos países asiáticos. Na próxima época, cada clube vai poder inscrever e utilizar em simultâneo oito jogadores estrangeiros. Também a nível continental foi aumentado o limite. Nas competições da Confederação asiática, como a Liga dos Campeões, o máximo permitido era até agora de quatro estrangeiros, mas vai passar esta época a seis – ou 5+1, sendo o sexto estrangeiro obrigatoriamente um jogador asiático.
Uma Liga a crescer ou uma bolha que vai rebentar?
Pois, boa pergunta. Há muitas opiniões sobre o assunto, a começar pelo otimismo incondicional de Cristiano Ronaldo, quando diz que pode vir a ser «uma das cinco melhores Ligas do mundo» e para isso só precisa de «tempo, jogadores e infraestruturas».
Recentemente foi anunciada a compra pelo fundo PIF de vários clubes sauditas, entre eles quatro dos principais clubes – o Al Nassr de Cristiano Ronaldo, o Al Ittihad de Nuno Espírito Santo e agora de Benzema e Kanté, o Al Hilal e o Al Ahli. Esta medida pode ser vista numa lógica de tentar diversificar custos, mas também receitas.
O PIF passa a deter 75 por cento desses clubes, que ficam também associados a algumas das grandes empresas sauditas, como patrocinadoras. É um passo naquilo a que a estratégia saudita chama privatização, embora na verdade numa economia como a saudita a origem do dinheiro seja sempre estatal. «Não se trata apenas de trazer jogadores de topo, mas também mudar a economia do jogo para o tornar mais privado e desenvolver os clubes, companhias e marcas», diz um responsável da Liga saudita citado pela BBC.
A medida pode ser vista também como uma tentativa de levar algum rigor à gestão dos clubes, que não são conhecidos exatamente pela sua liderança racional. Os exemplos sucedem-se, de processos por incumprimento salarial a casos como o do português Pepa, atual treinador do Cruzeiro, que contou ao Expresso como soube do seu despedimento do Al-Tai através do Twitter, quando o clube anunciou o seu substituto.
A Liga saudita está muito longe de gerar dinheiro que compense o enorme investimento em jogadores e é difícil antecipar um cenário em que isso aconteça. Ou seja, em que a tal estratégia de diversificar a economia através do desporto que faz parte da Visão 2030 se traduza em retorno e não apenas em gastos.
Para conseguir aumentar receitas, precisaria por exemplo de gerar suficiente exposição mediática para garantir a venda de direitos de transmissão televisiva para mercados importantes. Os responsáveis sauditas dizem que isso começa a acontecer, graças a Cristiano Ronaldo, resta perceber em que medida.
Outra via para a Liga saudita ganhar algum peso internacional, como nota o interlocutor do Maisfutebol próximo do processo, poderia ser o mercado de transferências, se conseguir vir a ter jogadores que gerem interesse de outros clubes e entrar nesse circuito. Mas isso passaria por atrair não apenas veteranos, mas também jogadores mais jovens – nesse sentido contratações como a de Ruben Neves podem ser relevantes.
A Liga saudita também tem problemas de infra-estruturas, nomeadamente nas condições dos estádios. A organização da Taça da Ásia em 2027, observa a mesma fonte, exigirá uma aposta nesse sentido.
Além disso, ao contrário do que fez por exemplo o Qatar, o investimento saudita não está a passar por um plano concertado de formação de atletas e portanto de desenvolvimento da base do desporto.
Por outro lado, a Arábia Saudita tem uma dimensão muito maior do que os seus vizinhos do Médio Oriente e uma enorme base de adeptos. O futebol é muito popular no país e por aí as diferenças são grandes também para outros mega-investimentos falhados no futebol.
O exemplo recorrente que tem sido usado é o da China, que há uns anos também agitou o mercado com propostas milionárias. Em janeiro de 2017 não se falava de outra coisa, quando nomes como Carlos Tevez, Axel Witsel ou Oscar se converteram ao apelo chinês. Soa familiar.
Mas a bolha da China rebentou, com a falência das empresas que suportavam os clubes, e com as dificuldades em desenvolver uma estrutura de formação que sustentasse o crescimento do futebol no país.
A China foi precisamente o exemplo usado pelo presidente da UEFA, quando criticou a estratégia da Arábia Saudita. «Acho que a Arábia Saudita está a cometer um erro. Deveria investir em academias, treinadores e educar os seus jogadores. Comprar outros jogadores não melhorará o seu futebol. A China cometeu o mesmo erro. Nem tudo se trata de dinheiro. Os jogadores querem ganhar as melhores competições. E essas competições estão na Europa», disse Aleksander Ceferin. Teve resposta rápida de um dirigente saudita, a garantir que «isto é só o começo» e a dar precisamente o exemplo de Rúben Neves para defender que não estão a chegar apenas jogadores em fim de carreira.
Não é possível ter certezas sobre o que será no futuro a Liga saudita. Nem sobre a forma como os milhões sauditas podem impactar o futebol europeu. Poderão desde logo representar uma ameaça concorrencial, inflacionando as transferências de jogadores. Mas, por aí, a Europa tem mais com que se preocupar dentro de portas, com o enorme fosso que já existe entre a capacidade de investimento da Premier League e a esmagadora maioria dos restantes clubes e das restantes Ligas.
A estratégia da Arábia Saudita levanta outras questões, algumas delas a contribuir para o debate sobre temas complexos com que o futebol europeu tem de lidar - do fair play financeiro, quando estão em cena donos de clubes com enorme capacidade de injetar dinheiro e disfarçar perdas, aos clubes que partilham proprietários, algo que a UEFA admite poder representar uma ameaça à integridade das competições. Isso passa por outra realidade que ganha peso, a dos clubes que são detidos por empresas de investimento privados ou fundos com investidores não identificados - de novo a questão do Chelsea.