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Economista e Professor Universitário

Combate à inflação: combinar uma “Política de Aforro” com as Políticas Monetária e Fiscal. A ousadia requer coragem

14 jul 2023, 10:52

A inflação alta é nociva. Deve ser controlada. A utilização exclusiva de política monetária para o efeito acarreta injustiças e imoralidade. Terá os dias contados. É o progresso civilizacional que o irá ditar. Se mais cedo ou mais tarde no tempo? Tudo dependerá da coragem política.

Com Christine Lagarde, a insensibilidade social alcança máximos. Já não restam dúvidas de que se atingirá o maior nível de juros diretores desde que o Euro é moeda circulante. São centenas de euros a mais nas prestações mensais dos créditos à habitação. Para as famílias portuguesas o processo é asfixiante. São das mais mal remuneradas da Europa.

É certo que a aplicação de política monetária contracionista afeta todos por igual, mas isto só é verdade para decisões a tomar no futuro. As famílias decidem contrair menos empréstimos e o investimento também cai. Está certo. Se o objetivo é aliviar a pressão inflacionista, está certo. Mas, e aqueles que são fatalmente atropelados por causa de decisões que tomaram no passado? O caso de maior aflição é o dos créditos hipotecários. Em fevereiro de 2022, com as Euribor ainda em terreno negativo, dificilmente se podia antecipar que, apenas um ano e meio depois, os juros viessem a atingir máximos de vinte e três anos. Para as famílias portuguesas é um esforço incomportável. Por esta razão, a política monetária aplicada pelo Banco Central Europeu chega a ser uma leviandade social.

A subida indiscriminada dos juros diretores é uma solução duplamente cega. Por um lado, não é ajustável em função das diferenças entre os Estados-membros da Zona Euro. Um quadro assim pode desencadear um impacto próximo de socialmente criminoso em países com economias mais frágeis, como é o caso de Portugal. Por outro lado, a política monetária atinge diretamente apenas quem tem empréstimos contraídos, com particular ênfase para os créditos à habitação. Então, e o resto da população? E os demais setores da economia? Por que razão lógica deverá ser somente quem tem créditos hipotecários ativos a suportar “retroativamente” o esforço de debelar um surto inflacionário com génese num acontecimento hediondo e extraeconómico?

É aqui que entra a política fiscal, aplicada de uma forma específica. Desde logo, com o recurso complementar à política fiscal, distribuir-se-ia mais simétrica e justamente o sofrimento resultante do combate à inflação. Por um lado, poder-se-ia discriminar positivamente os mais atingidos pela subida dos juros: as famílias com créditos hipotecários. Por outro lado, aumentar-se-ia, ponderadamente, o contributo fiscal dos que não carregam o peso do crédito à habitação. Simultaneamente, alavancar-se-ia a carga fiscal sobre os setores mais beneficiados quer pela crise militar quer pela transferência massiva de recursos financeiros proporcionada pela subida dos juros diretores do BCE: energéticas e banca, respetivamente. Também esta calibragem fiscal ocorreria segundo critérios bem definidos, que não ofendessem excessivamente o desejo legítimo de lucro que é tido pelo setor privado. Para o efeito, no atual contexto de excecionalidade, poder-se-ia assumir como referencial os níveis de lucro previsivelmente registados em condições de normal funcionamento da sociedade e dos mercados.

Também é certo que o aumento do encargo fiscal de energéticas e banca pouco impacto direto teria no controlo da inflação. No entanto, contribuiria para aumentar a sensação coletiva de justiça relativamente ao esforço da sociedade face a uma crise com origem no comportamento errático de um decisor mundial. Depois, a prazo, quando a conjuntura o permitisse, a receita fiscal extraordinária permitiria ainda ao Estado canalizar parte do esforço coletivo para investimento público.

(É importante esclarecer que a lógica de política fiscal aqui abordada não corresponde à aplicação de “windfall taxes”. Os windfall taxes são exclusivamente direcionados para lucros extraordinários. A solução em equação neste artigo abrangeria toda a sociedade, ainda que com critérios de equidade de esforço muito bem regulados).

Já a receita adicional gerada a partir dos impostos cobrados à generalidade da população poderia ser orientada para estabilizadores sociais, sempre muito prementes em períodos de crise inflacionária.

A última opção para contrariar o atual quadro inflacionário é bastante mais ousada. Consiste na aplicação de uma “política de aforro”, combinada com as políticas monetária e fiscal. Poder-se-ia impor às famílias da Zona Euro níveis de poupança predeterminados e indexados ao IRS. Esta medida vigoraria até o quadro de crise inflacionária estar debelado e decorreria com patamares de alívio na aplicação da medida. Desta forma, retirar-se-ia igualmente liquidez da economia, e ainda com mais eficácia.

Os juros e as Euribor afetam sobretudo os que têm créditos à habitação. O aforro imposto abrangeria progressivamente toda a população com rendimentos a partir de um determinado escalão do IRS e não resultaria em prejuízo para as famílias. À medida que a inflação fosse aliviando, também o nível de aforro imposto ia diminuindo. Uma solução assim permitiria aos agregados familiares manter a posse dos seus recursos financeiros, ao contrário do que ocorre com fórmula da política monetária utilizada pelo BCE, em que quantias suplementares de dinheiro das famílias com dívidas hipotecárias são desviadas irreversivelmente para aumentar os lucros dos bancos. Com a “política de aforro”, a eficácia do combate à inflação aumentaria, inclusivamente.

São várias as opções para combater a inflação. Transferir dinheiro dos parcos orçamentos familiares para banca e energéticas é a pior, mais cruel e mais injusta de todas.

A Administração Pública e as entidades internacionais têm disponível know-how suficiente. Conceptualmente, as alternativas à utilização estrita de política monetária não são complexas, mas requerem ousadia e coragem política, que parece não haver.

Apesar das diferentes opções possíveis, resiste a ideia de que serão os mesmos de sempre a sofrer e a suportar o fardo da atual crise. E também serão os mesmos de sempre a beneficiar com ela.

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