Consumo de gasóleo e gasolina volta a níveis pré-pandemia. Porque é que não conseguimos largar o carro?

26 set 2022, 07:00
Covid-19: o novo normal nos transportes públicos

Nunca se pagou tanto para meter combustível no carro, mas isso não nos impede de continuarmos a consumir como antes

Depois de uma grande quebra provocada por sucessivos confinamentos e recolheres obrigatórios, o consumo de combustíveis está de volta a valores considerados normais. Isto apesar de muitos terem equacionado que a pandemia de Covid-19 serviria para adquirirmos novos hábitos como o teletrabalho ou uma maior utilização dos transportes públicos.

Mesmo tendo em conta que a pandemia ainda não terminou oficialmente, nos primeiros sete meses de 2022 consumiu-se mais gasolina do que em 2017 e 2018, sendo que os valores do gasóleo também andam muito próximos. Um regresso a uma tendência que, atendendo aos diferentes desafios, talvez não fosse expectável: por um lado enfrentamos o fenómeno das alterações climáticas, que apontaria para uma redução do uso do carro, e não o contrário; por outro estamos em pleno contexto de guerra, com os preços a dispararem, com os dos combustíveis logo à cabeça (este ano é, de longe, aquele em que se verificam os preços mais caros na gasolina e no gasóleo.

Preços médio anual dos combustíveis*
Ano Gasolina Gasóleo
2016 1,367 1,119
2017 1,463 1,242
2018 1,537 1,343
2019 1,492 1,363
2020 1,387 1,244
2021 1,619 1,423
2022 1,93 1,81

* Consumos de 2022 até julho

E mesmo pagando os combustíveis mais caros o volume aumentou: este ano já se consumiram 2.535.688 toneladas de gasóleo e 548.718 toneladas de gasolina s/chumbo 95. O consumo de gasóleo é, ainda assim, mais baixo que em 2017, 2018 e 2019, provavelmente explicado por uma subida abrupta neste combustível ao longo de 2022 (chegou a estar mais caro que a gasolina), enquanto só em 2016 e 2019 é que só se consumiu mais gasolina s/chumbo 95.

Mas num ano de escalada de preços, como se justifica esta dependência do carro? Será que o nosso sistema de transportes não é suficiente, serão razões de nível comportamental, ou ainda não estamos a sentir a sério o peso do aumento dos preços?

A questão dos transportes (e uma mentalidade portuguesa)

Carlos Gaivoto, especialista em política de transportes, explica à CNN Portugal que há vários fatores que podem ajudar a explicar esta situação. Para começar, diz o membro do Conselho Superior de Obras Públicas, a oferta de transportes coletivos é fraca, tanto a nível regional como a nível nacional, faltando planeamento e ordenamento, mas também um maior cuidado com o urbanismo.

Adepto confesso da ferrovia, que defende ser a grande solução, critica o desinvestimento feito em Portugal, lembrando casos como a Linha do Alentejo ou a Linha do Leste, que nem sequer estão eletrificadas. É nesse contexto que dá um exemplo: "o alfa pendular que vai para o Algarve, em alguns trechos, só pode andar a 20 quilómetros à hora [o comboio tem uma velocidade máxima de 220 quilómetros por hora]". É um caso, diz Carlos Gaivoto, que mostra bem como a população tem facilidade em escolher entre soluções: além de ser mais cómodo, o carro também é, neste cenário, mais rápido.

E o desinvestimento vem desde os anos 1980, com uma contradição relativamente àquilo que se esperava que fosse feito: "nessa década tínhamos 70% das deslocações de transporte público e 30% de transporte automóvel, hoje é ao contrário", nota Carlos Gaivoto, que aponta 40 anos em que "não evoluímos nada". "Na década de 1980 não se modernizou a ferrovia e investiu-se no sistema mais improdutivo, a rodovia, pelo que estamos a assistir a uma herança de falta de investimento na ferrovia", conclui.

Ainda assim, refere o engenheiro que é mestre em Sistemas de Transportes, a culpa também estará, em parte, na forma como a população entende o seu dia a dia.

Filipe Duarte Santos define esse comportamento numa palavra: consumo. O presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável sublinha à CNN Portugal que "estamos conscientes" dos riscos de continuar a utilizar o carro em detrimento dos transportes, mas há algo que nos leva a não mudar: "a utilidade, o consumo, porque é algo que nos é útil".

No fundo, nota, é o traço de um "mundo completamente viciado na questão da utilidade", no conceito que foi definido por John Stuart Mill, que classifica as ações na direção de deixar o ser humano satisfeito ou feliz.

"Posso ser otimista e fazer um discurso a dizer que as pessoas podiam andar a pé ou viver perto do campo, viam animais e não percebiam que era por haver menos carros, menos agitação, mas estamos viciados em consumir", acrescenta o também o professor de Física na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Filipe Duarte Santos lembra que a pandemia também resultou, em parte, deste imediatismo: os padrões de transporte e de viagem mudaram "brutalmente".

A diferença lá para fora (e uma possível solução)

Carlos Gaivoto conhece bem os mais avançados sistemas de transporte de todo o mundo, e não tem dúvidas em apontar que estamos "muito distantes" de nos aproximarmos. Alguns deles, refere, são já aqui ao lado, como em Espanha, onde se fez uma "aposta séria" na ferrovia.

Hoje é possível chegar a quase todo o lado no país vizinho através do comboio. Talvez isso explique o porquê de, com uma consulta rápida ao website da Renfe, verificarmos que os mais variados destinos estão muitas vezes esgotados.

Realidade diferente da portuguesa, onde houve um grande desinvestimento nas linhas de comboio, que Carlos Gaivoto diz serem a grande solução: "a ferrovia em Portugal não é um bom exemplo, desprezou-se completamente, fecharam-se mais de mil quilómetros de rede, devia ter sido instrumento estratégico para fixar populações no interior".

Mas ainda não é tarde para tentarmos aproveitar o que temos e fazer de novo. Um exemplo que o especialista dá, e que garante funcionar a nível regional e nacional, é o chamado light-rail transit (LRT), ou comboio ligeiro, que, na prática, funciona como um elétrico, mas tem várias vantagens: "é mais barata e mais rápida", destaca Carlos Gaivoto, explicando que esta seria uma forma de fazer uma transição que considera essencial: passar de um sistema de transportes intermodal para um sistema multimodal, e que também permitiria maior interoperabilidade do sistema.

Mas o LRT tem ainda outra vantagem, uma vez que podem ser utilizadas todas as linhas ferroviárias existentes, como comboio ou metropolitano, não sendo assim necessário maior investimento. Os números explicam bem a diferença: um veículo de LRT equivale à utilização de três autocarros e à utilização de 150 carros, assinala o especialista.

Graz quer retirar todos os carros da cidade até 2030 (Beata Zawrzel/Getty Images)

Sobre as cidades que destaca como bons exemplos de sistemas de transporte, e cujos resultados permitiram retirar carros das cidades, Carlos Gaivoto tem muitos exemplos, e quase todos europeus: Zurique, Karlsruhe, Paris ou Graz. A seu tempo, e com o seu modelo, estas cidades transformaram as suas redes de transporte ao ponto de não conseguirem apenas reduzir o número de circulação rodoviária, transformando a cidade num sítio com mais espaço e melhor ambiente, mas também tiveram um impacto financeiro.

No caso de Graz, a segunda maior cidade da Áustria, vinca Carlos Gaivoto, a autarquia conseguiu poupar 400 milhões de euros no orçamento de saúde ao transferir 5% da população do automóvel para transportes coletivos ou outras formas sustentáveis, como a bicicleta. A autarquia chama-lhe o "masterplan para Graz", que tem o ambicioso objetivo de retirar da cidade todos os carros até 2030, substituindo-os, na sua maioria, por bicicletas.

Mas talvez até nem seja preciso olhar para tão longe. Em Portugal, e na Área Metropolitana de Lisboa, há um caso que o especialista identifica como sendo de sucesso. Cascais tem, desde 2020, transportes públicos gratuitos para toda a população, algo que conseguiu pelo facto de se ter desvinculado do centralismo de Lisboa em relação aos 18 municípios que compõem a zona suburbana.

Carlos Gaivoto refere que esta medida foi bem acolhida, com um aumento superior a 15% da utilização do transporte público, naquilo que aponta como um bom exemplo, até porque "as comunidades são diferentes", o que quer dizer que seria mais proveitoso se cada autarquia fizesse o seu próprio planeamento, até porque "está mais ciente dos problemas existentes" naquele local em concreto.

Sobre medidas como a gratuitidade dos transportes para maiores de 65 anos e até 23 anos em Lisboa, o especialista nota que ainda não se sentem grandes impactos, apontando, mais uma vez, um mau planeamento na capital: "há zonas em que não temos acesso. Lisboa podia ter uma rede fantástica de elétricos, mas foi criminosamente anulada. Hoje, com as tecnologias que existem, podíamos ter elétrico em Benfica, nas zonas mais altas da cidade", algo que Carlos Gaivoto diz que é "fundamental".

E a inflação, ainda não se nota?

Tudo isto acontece num cenário de uma inflação que atingiu os valores mais altos em 30 anos, mas nem isso parece demover os portugueses de continuarem a pagar para andarem de carro. O investigador do Instituto Superior de Economia e Gestão, Ricardo Ferraz, admite algum "comodismo" da população neste cenário, mas realça que "a maior parte da população que utiliza veículo próprio precisa mesmo dele".

O também professor da Universidade Lusófona diz que "a gasolina e o gasóleo continuam a ser um bem essencial", pelo que não é algo de que as famílias possam abdicar, mesmo que isso implique um acréscimo brutal nas contas do mês.

"A inflação alta já aí está e isso reflete-se nos combustíveis. Se começar a apertar muito podemos vir a cortar nas viagens de fins de semana, eu já o faço", revela, voltando a dizer que "quem usa o carro é obrigado a usá-lo".

O economista fala das pessoas que trabalham em locais onde os transportes não chegam, como no interior, e que "não veem alternativa ao carro".

Alterações climáticas: ainda não acordámos?

Filipe Duarte Santos e Carlos Gaivoto referem que tudo isto é sinal de uma coisa: ainda não acordámos verdadeiramente para o problema das alterações climáticas, seja a nível da população, seja a nível de quem toma as decisões.

O presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável diz que "não estamos a levar a sério as alterações climáticas, podíamos ter aprendido na pandemia, podíamos ter pensado, mas o imediatismo no consumo impede isso". "Dá-nos dopamina", continua, referindo-se a "um excitante que nos deixa bem-dispostos".

Por isso, diz o especialista, só vamos aprender "quando as crises começarem a ser sucessivas", referindo que essas crises podem não ser apenas financeiras, mas também climáticas, como um grande aumento de fenómenos extremos, exemplos das ondas de calor ou das tempestades.

Já Carlos Gaivoto entende que a população não pensa ainda muito nisso, voltando a focar a atenção nos sistemas de transporte: "quando o rendimento disponível não for assim tanto as pessoas vão começar a exigir melhores redes. É somar 1+1".

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