Desemprego. Ainda há uma dura realidade em Portugal. Os relatos de quem faz da vida uma luta pela estabilidade

9 nov 2022, 07:00
Multidão em movimento

António Silva é desempregado de longa duração após décadas de trabalho no mesmo ramo. Raquel Santos sonha em concretizar uma carreira no mundo das artes antes dos 30 anos. Duas gerações e duas experiências de vida diferentes, que se cruzam na incerteza quanto ao futuro – e que espelham a realidade de tantos outros portugueses. Hoje são conhecidos novos números do desemprego em Portugal. Mas são números, não mostram tudo

António Silva abre o jornal numa página qualquer. As novidades são otimistas, dizem. A taxa de desemprego recuou novamente. E os valores que persistem, esses, parecem difíceis de explicar. As empresas garantem que a oferta abunda; é a mão-de-obra que escasseia, talvez devido à falta de interesse dos trabalhadores e aos subsídios de desemprego estáveis, previsíveis, recebidos mensalmente na conta como um salário sem esforço. Só não arranja emprego quem não quer, ouve-se por aí.

António Silva e Raquel Santos não se conhecem. “Já sou velho”, diz António com um encolher de ombros; Raquel aproxima-se da curva entre os 20 e os 30. António regressa a um quarto vazio todas as noites. Raquel ainda se demora na casa dos pais, que já viram todos os outros filhos partir.

São entrevistados no mesmo dia, mas jamais se cruzam – ele vagueia na rotina que estabeleceu entre a casa e a biblioteca local, e ela prepara-se para mais uma noite de ensaios no grupo de teatro amador a que pertence. Pouco têm em comum e não parece haver motivos para que as suas experiências se articulem – mas inserem-se ambos no mesmo mosaico inconveniente da precariedade em Portugal. Os rostos, preferem não os mostrar; o estigma da condição de desempregado pede recato e desvendam apenas uma mão a segurar um jornal, um pé a pisar o palco, algo que os caracterize, mas não identifique.

Os seus nomes completos e fotografias tipo passe empoeiram-se em currículos arquivados após um olhar de soslaio; as semanas desdobram-se em meses de incerteza e um olhar fixo no saldo bancário, nas moedas que levam no bolso, como se algo fosse mudar em meros instantes por intervenção cósmica. São aqueles que, quando os relatórios anuais são anunciados e as estatísticas celebradas com punhos no ar e otimismo desmerecido, permanecem estagnados no mesmo local onde foram esquecidos.

Hoje, quando o Instituto Nacional de Estatística (INE) publicar os dados de desemprego do terceiro trimestre, ninguém espera grandes alterações. A taxa de desemprego não será muito diferente dos 5,7% registados em junho.

Formação para a precariedade. Será mesmo?

“E agora? Onde é que eu vou? O que é que correu mal? O que se segue?” Raquel lança perguntas para ninguém, num desabafo devolvido a si mesma.

A incerteza das palavras contrasta com o semblante sereno e a postura confiante de quem tem um objetivo delineado desde tenra idade. Foi aluna de excelência desde o ensino primário até ao superior, e enquanto os colegas ponderavam as hipóteses de futuro já Raquel tinha enveredado por aquilo que sabia ser a sua paixão suprema – o teatro. Pisou um palco pela primeira vez aos 15 anos, no teatro da escola secundária, e dez anos depois concluiu o mestrado em Artes Cénicas.

O sorriso ao mencionar o curso é amargo – já conhece o estigma associado às artes; as críticas que, mais ou menos diretamente, lá vão dizendo que o investimento na formação artística é uma condição autoimposta de precariedade. Mas estes cursos existem, e os artistas formados por instituições de ensino também. O ruir dos sonhos só acontece quando são despejados da etapa formativa para um mercado de trabalho “muito empresarial, muito virado para as ciências exatas”, com pouco mais do que um diploma nas mãos. A culpa não é sua, insiste. Seguiu passo a passo a receita para o sucesso: definiu um sonho e investiu tempo e dinheiro para lá chegar, sem saber que o caminho lhe estava vedado à partida.

Porque é que continuamos a insistir que toda a gente pode tirar o curso com que sempre sonhou, se afinal isso não vale nada?”, Raquel Santos

Para António, nascido numa geração diferente, arranjar emprego após o ensino secundário foi a etapa mais fácil de toda a carreia que se sucedeu.

Tentou entrar no curso de Filosofia, “mas a média era mais elevada do que atualmente” e foi condicionado por apenas uma décima. Sem problema: as oportunidades de emprego sucediam-se e experimentou vários ramos, aqui e ali, até se estabelecer na área de distribuição de filmes.

Sabia de cor as obras de Kusturica, Kurosawa e Gordard e conciliou o agradável – o interesse enquanto cinéfilo – com o “incrivelmente lucrativo”: uma oportunidade profissional que foi “um autêntico boom nos anos 80”, década das permanentes, das cassetes Betamax e dos clubes de vídeo. O difícil não foi encontrar trabalho; foi dedicar-lhe a sua vida e vê-lo esmorecer à medida que a tecnologia o ditava obsoleto.

O aparecimento do DVD foi um augúrio do que ainda estava por vir. Os laboratórios de vídeo esforçavam-se, na medida do possível, por acompanhar o desenvolvimento tecnológico cada vez mais célere. Os projecionistas de cinema e bobines ficaram reservados para os filmes antigos e viram-se substituídos por “drives do tamanho de um maço de tabaco”. Em vez do aluguer em clubes de vídeo, passou a investir-se num mercado de venda direta ao público – agora praticamente desaparecido e reservado a colecionadores. Nos últimos anos de trabalho, “até as campanhas ao euro já não vendiam nas grandes superfícies. Vinha tudo devolvido, e ficava nos armazéns aos montes”.

António folheia o jornal enquanto fala, sublinhando distraidamente as frases mesmo sem as ler, com o olhar absorto entre manchetes e fotografias. “O mercado de venda deixou de ser rentável, muito devido à internet. Surgiu a pirataria, uma série de plataformas em que as pessoas podem ver os filmes gratuitamente, e muitas editoras acabaram por despedir os colaboradores e fechar portas”. Vira uma página e alisa o papel com a mão. “Foi o meu caso”.

 (Foto: cortesia de António Silva)

Profissionais da formação profissional

“O que se segue?”, perguntava Raquel, para ninguém em particular. Está desempregada há cinco meses, após várias passagens breves por experiências de atendimento ao público e apoio ao cliente. António está desempregado há quase uma década, depois de mais uma empresa de distribuição de filmes fechar portas. Nenhum deles encontrou resposta.

A solução mais imediata parece ser, superficialmente, os Centros de Emprego distribuídos pelo país. O tópico e duração dos cursos de formação promovidos por estas entidades diferem bastante – alguns resumem-se a um único módulo de 25 horas, enquanto outros são cursos de “dois ou três anos” com equivalência a habilitações.

“Não me recordo bem de todas as formações”, reconhece António, “mas algumas estavam relacionadas com técnicas de marketing, desenho assistido por computador, secretariado, lições básicas de inglês. E a mais recente foram 25 horas de computador.” O que aprendeu? Um sorriso adivinha-se por detrás do bigode espesso.

Word, Excel. CTRL+C, CTRL+V, pouco mais do que isso. Obviamente, não consegui usufruir de nenhuma mais-valia no mercado de trabalho”, António Silva.

Cerra o jornal e começa a dobrá-lo lentamente, como que pesando as palavras que está prestes a dizer. “É a minha perspetiva”, salvaguarda-se, “mas parece-me apenas uma forma de destabilizar as estatísticas. É uma forma de dar emprego aos que estão desempregados e que trabalham ali como formadores. É uma forma de dar a entender que se preocupam e ao mesmo tempo distorcer a realidade, porque enquanto fazemos formações não contamos para as estatísticas”. São lidos como população ativa empregada durante as horas ou anos em que frequentam os cursos, até os concluírem e voltarem a pender as estatísticas para o lado oposto. Como recordação, levam um certificado de participação. “Tenho uns quantos em casa – querem ver?” 

Raquel acusa uma experiência diferente no Centro de Emprego local. Na verdade, nem sequer consegue relatar uma experiência – “foi sempre um enorme mistério, um enorme silêncio da parte deles”. Na única ocasião em que foi contactada, há alguns anos, “deve ter havido um erro de comunicação, porque já estava empregada noutro sítio há um mês”.

Novamente desempregada desde o verão, opta agora por não se inscrever. “Da última vez não me serviu de nada e acabei por conseguir sozinha, portanto vou esperar uns meses e só então pensar em dar outra oportunidade”. A voz titubeia na última frase, e recompõe-se com um pigarrear. “Mas, claro, espero que não passem meses”.

Investiu seriamente na sua área de estudo e não perdeu ainda a convicção de que é lá que se irá realizar, mais tarde ou mais cedo, depois de todas estas circunstâncias finalmente cederem lugar à bonança. Por enquanto, porém, está disposta a abraçar qualquer projeto – mesmo que não se encaixe no seu perfil académico bem definido.

Se tivesse esperado por um emprego na minha área de estudo, não teria tido um único trabalho até hoje. Não gosto de atendimento ao público? Pois, não posso fazer nada quanto a isso. Tenho de ir para atendimento ao público na mesma, senão fico em casa durante anos”, Raquel Santos.

 

Um mestrado que assusta

Raquel foi aluna-modelo nas turmas que frequentou e precoce na determinação do seu percurso profissional, e esta maturidade revela-se na forma como reconhece, vez após vez, o privilégio da sua educação e a oportunidade de continuar em casa dos pais, com refeições quentes e uma cama confortável onde repousar no fim do dia. “Todos os trabalhos são dignos e essenciais, e não é por ter conseguido investir num curso superior que não tenho a humildade de o reconhecer. Se tiver de ir lavar escadas, vou, e não tenho nenhum problema com isso. A única coisa que importa é trabalhar e ter uma base financeira”.

Mas esse pilar essencial – essa estabilidade financeira e realização pessoal que os pais já tinham alcançado com a mesma idade – mantém-se ainda envolto em incerteza. E não é por falta de motivação: os currículos são enviados em massa para segmentos onde sabe que a oferta abunda (“os famosos call center e a área da restauração”), mas as respostas tardam em chegar.

“Se enviar 50 currículos num dia, terei sorte em receber uma resposta para agendar uma entrevista. Mais do que a desvalorização da área de Humanidades ou Artes, o que mais me custa é não haver resposta. O que custa é o silêncio por parte das entidades empregadoras. É angustiante: não sei o que faltou, o que fiz bem, o que fiz mal”, lamenta.

Talvez um dos principais factores de exclusão seja o próprio mestrado, poço de dinheiro e trabalho (“e de saúde mental, admito”) que, afinal, poderá rotulá-la como “sobrequalificada” para as funções a que se candidata. “Os salários deveriam ser proporcionais às habilitações, eu sei, mas isso era mais no tempo dos meus pais. Eu compreendo que um mestrado possa assustar as entidades empregadoras, mas se estou a candidatar-me é claro que tenho noção do salário provável, e é claro que o aceito. Prefiro ter esse salário a não ter nenhum”.

O teatro onde Raquel ensaia (Foto: cortesia de Raquel Santos)

António recorre aos computadores da biblioteca pública para enviar currículos quase diariamente, mas recebe igual silêncio.

Quando descreve as suas qualidades, o discurso sai-lhe escorreito e organizado, como se o tivesse praticado vezes sem conta em frente ao espelho, em preparação para uma entrevista de emprego que nunca chegou. “Sinto-me imensamente capaz, depois de tantos anos de trabalho no mesmo nicho, mas tenho valência para qualquer outro tipo de trabalho. Não tenho grandes estudos, mas também não sou iletrado. Sou versátil, empenhado, e sinto-me ainda com fortes capacidades físicas e intelectuais para desempenhar qualquer função”.

O seu currículo diz algo semelhante, numa sucinta descrição pessoal ainda antes de começar a enumerar a vasta experiência profissional. Mas sabe que, provavelmente, o olhar do avaliador ficará preso num campo mais acima. “O grande ónus é a minha idade”, afirma em tom categórico, encarando-o como uma realidade e não apenas especulação pessimista.

Querem pessoas mais jovens, não pessoas como eu. Acredito que nem sequer leiam as minhas habilitações e motivações e capacidades. Ao lerem a minha idade, o meu currículo é logo posto de lado”, António Silva.

O entardecer prematuro trouxe consigo chuva e nuvens pesadas, e António leva o jornal ao topo da cabeça para se abrigar. Voltará para casa em breve, mas ainda lhe resta uma paragem no itinerário: a casa da irmã. Espera-lhe uma refeição e um saco de conteúdo ainda incerto – às vezes são alimentos, outras vezes é roupa recolhida de quem já não a usa.

O rendimento social de reinserção não chega aos 200 euros e vê-se dependente da bondade de amigos e família (“ou caridade, para ser mais exato”) para sobreviver numa rotina já modesta, tão modesta que o prazer mais fútil é comprar o jornal todas as manhãs. “E às vezes, muito raramente, faço uns biscates por fora. Muitas das pessoas que conheci nas formações também o faziam – até me lembro de um caso em que era o filho que passava os recibos por ele”, confidencia, de voz amortecida pela chuva, apressando-se logo a justificar. “A pessoa tem de recorrer a isso, de vez em quando, porque só assim é possível sobreviver.”

“O que se segue, o que se segue?”, perguntava Raquel, mas António já não se atreve a adivinhar esperança no futuro. “Com a idade que tenho, só me resta esperar pela reforma, que sempre será melhor do que o subsídio”. E esperar por um ou outro curso de formação que talvez seja convidado a frequentar, para depois empilhar mais um certificado no monte que deixa acumular em casa. Despede-se numa esquina e aponta para a casa da irmã a uns meros metros, de janelas irradiadas pela luz da cozinha. Antes de ir, ri-se sem nota de humor. “É engraçado”, comenta, trocando o jornal pelo capuz do casaco. “É engraçado como uma pessoa é velha para o mercado de trabalho, mas perante a lei sou obrigado a trabalhar até ser velho”.

Raquel caminha pelas ruas da Graça, de mochila às costas. O ensaio do grupo de teatro tem começo marcado para as sete da tarde, numa porta tão discreta que poderia passar despercebida entre os becos estreitos e os degraus lisboetas. É um grupo pequeno e não, não é remunerada, mas prefere vê-lo por outro prisma. “Posso não estar a receber dinheiro, mas as ferramentas que recebo, e que me irão permitir um dia ser reconhecida nesta área, são uma forma de ser remunerada. Vejo isto como uma troca, em que estou a dar o meu esforço e recebo uma enorme aprendizagem de volta, para poder continuar a crescer e a lutar por aquilo que quero”.

E, quanto às experiências de trabalho precárias e currículos enviados sem resposta, opta também por não canalizar a sua frustração para uma única entidade individual. “É fácil apontar o dedo: a culpa é dos influenciadores que roubam as oportunidades aos artistas formados profissionalmente, a culpa é dos recursos humanos que não respondem aos trabalhadores, a culpa é do Centro de Emprego que não faz o seu trabalho. Mesmo dentro de toda a minha frustração e desilusão, não consigo culpar ninguém, porque isto ultrapassa os trabalhadores que também só querem ganhar o seu próprio ordenado. Isto… isto é maior”.

Os degraus até à pequena porta não assinalada começam a pesar os pulmões, e por momentos tudo o que se ouve são passos e respirações ofegantes. “É outra coisa”, conclui, ainda a galgar o último degrau. “É um problema enraizado a nível económico, social, político. É um problema a nível estrutural”.

O que se segue? Hoje, segue-se um ensaio que se arrastará até para lá da meia-noite. No final do mês, está agendada uma peça de teatro para família, amigos e uns ocasionais curiosos que de vez em quando arriscam e compram bilhete. A única estrutura definida é o guião que tem de decorar, as instruções cénicas a que tem de obedecer, a vénia em grupo durante o aplauso retumbante da audiência. Depois da celebração, resta varrer o espaço, apagar as luzes, e demorar-se mais um pouco a fitar as cadeiras dispersas. O que se segue? Neste momento, apenas recebe o eco de uma sala vazia.

Relacionados

Economia

Mais Economia

Mais Lidas

Patrocinados