"Sou gay." Iker Casillas "insultou todas as pessoas que têm a coragem" de se assumir (especialmente os jogadores de futebol)

11 out 2022, 22:00
Iker Casillas (AP Photo/Bernat Armangue)

Conta hackeada ou piada de mau gosto? Independentemente da razão, que impactos é que estas palavras de uma estrela do futebol mundial podem ter? E porque é que o futebol tem tão poucos jogadores a "saírem do armário"?

A homossexualidade continua a ser um tema tabu dentro do futebol. São raros os jogadores no ativo ou fora dele que assumiram publicamente a sua orientação sexual: Josh Cavallo, jogador do Adelaide United; Jake Daniels, jogador da equipa Blackpool FC; e o antigo internacional brasileiro Richarlyson, que assumiu a sua bissexualidade em junho deste ano. 

No domingo, Iker Casillas terá tentado contornar a imprensa cor de rosa espanhola - que divulgou várias notícias que davam conta de um alegado romance entre o jogador e a atriz Alejandra Onieva - ao publicar um 'tweet' no qual se podia ler: "Espero que me respeitem: sou gay. #felizdomingo".

Ao final de pouco mais de uma hora, o antigo guarda-redes do FC Porto e do Real Madrid apagou a mensagem, pediu desculpa aos seguidores e à comunidade LGBTQI+. A justificação? Segundo ele, a conta foi hackeada.

A internet dividiu-se. Houve quem acreditasse em Casillas e houve quem achasse que não tinha passado de um piada de mau gosto, aliada ao comentário que se seguiu de Puyol. O ex-craque do Barcelona escreveu: "É o momento de assumirmos o nosso caso, Iker". E também acabou a ter de pedir desculpa.

Contactada pela CNN Portugal, a ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) acredita que o tweet de Iker Casillas não só foi uma piada de mau gosto, como possuía "contornos homofóbicos". 

Ao usar o coming out como piada está a insultar todas as pessoas que todos os dias têm a coragem para o fazer. O coming out tem quase sempre um custo, pessoal, familiar, social e até profissional. Mais, a saída do armário significa muitas vezes violência, bullying e até expulsão da própria casa. É também um acto punível com prisão e morte em vários países do mundo", afirmou Pedro Carreira, membro da Direção da ILGA Portugal.

Pedro Carreira defendeu ainda que, enquanto figura pública, Casillas deveria "garantir uma especial responsabilidade e empatia perante colegas e fãs do desporto, mas falhou redondamente ao desrespeitar as pessoas que lutaram - e lutam - para que pudéssemos cada vez mais assumirmo-nos com orgulho". 

Em maio, um inquérito realizado pelo Centro de Psicologia da Universidade do Porto (CPUP) demonstrou que quatro em cada cinco jovens LGBTQI+ preferem não o revelar aos professores ou funcionários no contexto escolar. A notícia, avançada pelo jornal Público, assinalava que os jovens ainda são alvo de bullying nas escolas, talvez porque o tema da diversidade sexual e de género ser pouco abordado nas aulas. Esta lógica pode ser aplicada aos balneários das equipas de futebol masculino. 

Ao contrário do futebol feminino, onde se têm assistido a grandes avanços na aceitação de atletas e fãs da comunidade LGBTQI+, no futebol masculino ainda existe uma forte resistência para celebrarmos jogadores e fãs LGBTQI+. Em milhares de jogadores profissionais de topo em todo o mundo, há muitos poucos que o fazem. Presentemente, recordo-me do australiano Josh Cavallo ou do inglês Jake Daniels, dois jogadores que tiveram a coragem para assumir a sua orientação sexual."

Josh Cavallo foi mesmo dos primeiros a criticar Iker Casillas e Puyol pelo que escreveram no Twitter. "Casillas e Puyol a brincarem e gozarem sobre assumir homossexualidade no futebol é dececionante. É uma luta difícil pela qual qualquer pessoa LGBTQ+ tem de passar. Ver os meus modelos e lendas do jogo a gozarem com isso e com a minha comunidade é mais do que desrespeitador", escreveu o médio australiano do Adelaide United.

Na opinião de Pedro Carreira, a onda de comentários homofóbicos que o tweet de Iker Casillas provocou "dificulta a vida a quem ainda hoje não se sente seguro para se assumir publicamente LGBTQI+".

É por este tipo de casos que a ILGA Portugal defende a importância da existência de formações e ações de sensibilização, para que "a empatia e o respeito pelas pessoas LGBTQI+ cresçam na consciência do grande público". "E aí, o futebol, como desporto de massas, pode aliar-se a estas causas e tornar-se também ele numa voz de orgulho, respeito e igualdade, dentro e fora do campo", acrescenta.

"Sou jogador de futebol e tenho orgulho em ser gay"

Esta foi uma das frases utilizadas por Josh Cavallo, jogador do Adelaide United, quando, a 27 de outubro de 2021, utilizou as redes sociais para assumir publicamente que é homossexual. "Hoje, estou pronto para falar de um assunto pessoal e do qual estou finalmente confortável para falar. Estou orgulhoso de anunciar publicamente que sou gay", lê-se na publicação que fez na altura no Instagram. 

Na altura, com 21 anos, Josh partilhou com os seus seguidores que nos últimos seis anos lutou contra a sua sexualidade e que estava "feliz" por finalmente ter acabado com esse desconforto. "Sendo eu um jogador de futebol gay no armário, tive que aprender a esconder os meus sentimentos para me encaixar nos moldes de um jogador de futebol profissional. Crescer enquanto gay e jogador futebol eram dois mundos que não se cruzavam"

Admitiu que sentiu a necessidade de esconder a sua orientação sexual por ter "medo de não poder fazer o que gosto", ou de não concretizar "o sonho desde criança" de ser jogador de futebol. 

Cansado de viver duas vidas paralelas, Josh partilhou o seu testemunho e quis com isso inspirar outros jogadores ou mesmo árbitros a fazer o mesmo. Muitos destes profissionais só assumem a sua orientação sexual quando já não estão no ativo. O Adelaide United, a 27 de outubro, também partilhou um vídeo do jogador com a descrição "A verdade de Josh" como sinal de apoio. Neste vídeo é notório o nervosismo e a emoção do médio. 

"Muito tempo de mentiras"

Aos 17 anos, Jake Daniels, jogador do Blackpool FC, sentiu que estava na hora de pôr fim às mentiras. Numa entrevista à Sky News, a 16 de maio deste ano, disse que queria ser conhecido por aquilo que é: homossexual.  

"Foi muito tempo de mentiras e eu pensava e pensava todos os dias como o queria fazer e quando o queria fazer. Acho que agora é a altura certa para o fazer e sinto que estou preparado para contar a minha história às pessoas. Quero que conheçam aquilo que eu sou."

Boris Johnson, na altura ainda primeiro-ministro do Reino Unido, agradeceu ao jogador pela "bravura" e "coragem". 

Tal como Josh Cavallo, Jake também sentiu a necessidade de esconder a sua orientação sexual durante algum tempo por receio de nunca conseguir ser jogador de futebol profissional. Acredita que este é um assunto tabu porque existe uma espécie de doutrina que olha para os gays como "fracos" e os jogadores de futebol são por norma apresentados como símbolos de "masculinidade". 

Foi preciso esperar mais de 30 anos para surgir na Europa o segundo jogador de futebol no ativo a assumir publicamente a sua homossexualidade. O primeiro foi o britânico Justin Fashanu, em 1990.

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