Crise nas urgências. Há, pelo menos, oito hospitais com serviços em que todos os médicos se recusam a fazer mais horas extra

6 out 2023, 07:00

Mais de dois mil médicos já fizeram chegar às administrações hospitalares as declarações em que atestam a recusa em exceder as 150 horas extraordinárias anuais. O caos instalou-se no Serviço Nacional de Saúde com praticamente todos os hospitais em dificuldades para ter clínicos nas escalas de urgência

São, pelo menos, oito os hospitais portugueses que, de momento, têm serviços em que todos os médicos apresentaram a minuta de recusa à realização de mais horas extraordinárias para lá das 150 horas anuais estipuladas por lei. São eles o Hospital da Guarda, na especialidade de Anestesiologia, e os hospitais de Santa Maria Maior (Barcelos), Caldas da Rainha, Beatriz Ângelo (Loures), Portalegre, Santarém e Viana do Castelo na especialidade de Cirurgia Geral, assim como o Garcia da Orta, em Almada, em que todos os especialistas e internos de Pediatria, assim como todos os especialistas de Neurologia (num total de oito) . Em Aveiro, todos os médicos internos de Pediatria assinaram a declaração de recusa.

Há ainda casos em que o número de clínicos a colocar um travão a mais horas extraordinárias é próximo da totalidade, como acontece ainda no Hospital Garcia de Orta, em Almada, em que apenas um médico de Medicina Interna não apresentou a declaração de recusa, e no Amadora-Sintra, em que foram 90% os médicos dos Cuidados Intensivos que também disseram ‘não’ a ultrapassar as 150 horas extraordinárias. Em Bragança, Famalicão e Penafiel, 95% dos especialistas em Medicina Interna, Pediatria e Ginecologia, respetivamente, também se mostram indisponíveis para mais horas extra. Nesta unidade do Vale do Sousa, a partir de 1 de novembro, todos os especialistas e internos de Ginecologia deixarão de fazer mais horas extraordinárias para lá das 150 horas anuais, o que, segundo o Médicos em Luta, coloca em risco as escalas noturnas.

Entre janeiro e agosto deste ano, os médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) já fizeram mais de quatro milhões de horas extraordinárias. As minutas de recusa a exceder as horas extra contratualizadas começaram a ser entregues em massa ainda em setembro e são já mais de dois mil os médicos envolvidos nesta luta . Os constrangimentos são notórios e tendem a agravar-se, podendo mesmo colocar em causa o setor público da saúde nas próximas semanas, sobretudo a nível de urgências, havendo já sete serviços encerrados em todo o país, podendo chegar aos 25 no inverno. Segundo a FNAM, “praticamente não existem hospitais com possibilidade de organizar as escalas de outubro e onde é certo que não será possível fazerem as de novembro e dezembro”.

Segundo a informação recolhida pela CNN Portugal junto dos hospitais, sindicatos de médicos e do movimento Médicos em Luta, praticamente todos os hospitais têm médicos que recusam fazer mais horas extraordinárias do que as previstas e há unidades hospitalares que admitem condicionar ou fechar algumas linhas de produção para fazer frente aos constrangimentos nas urgências caso a situação não seja resolvida.

Centenas médicos do Norte já apresentaram recusa

A Norte, são mais de 200 os médicos que apresentaram minutas de recusa a exceder as 150 horas anuais e já ultrapassadas há largos meses. Em Bragança, segundo os dados facultados à CNN Portugal pelo movimento Médicos em Luta, 90% dos especialistas em Cirurgia (10 dos 12 médicos) apresentaram minutas de recusa, assim como 95% dos especialistas em Medicina Interna (27 dos 28 médicos) e 80% dos especialistas dos Cuidados Intensivos (nove dos 13 médicos), o que levou ao encerramento de camas neste serviço. Em Pediatria, cinco dos seis médicos (90%) nesta unidade também já disseram 'não' a mais horas extra.

O Porto Canal adianta que apenas no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro foram apresentadas minutas de escusa por parte de mais de cem médicos, incluindo-se aqui internistas e cirurgiões. No Hospital de Viana do Castelo, “100% dos médicos de cirurgia” já se mostraram indisponíveis para fazer mais do que as 150 horas suplementares, tendo também sido entregues minutas de recusa por parte de “80%” dos médicos de medicina interna, anunciou à TSF Paulo Passos, dirigente da FNAM.

Na Unidade Local de Saúde do Alto Minho, que inclui ainda a unidade de Ponte de Lima, 90% dos médicos de Medicina Interna, Obstetrícia e Anestesiologia também apresentaram recusa, diz o movimento Médicos em Luta, que adianta ainda que o serviço de urgência nesta unidade irá estar sem médicos internistas durante todo o mês de outubro.

Ao Conselho de Administração do Hospital de Braga chegaram, pelo menos, 52 minutas de indisponibilidade de médicos para fazerem mais do que as 150 horas extraordinárias a que estão obrigados. No que toca às escalas do Serviço de Urgência, o hospital “confirma haver dificuldades na definição das mesmas para os Serviços de Cirurgia Geral e Ginecologia e Obstetrícia”, no entanto, assegura que “as escalas estão definidas até ao próximo dia 5 de outubro, sem registo de condicionamentos”, ainda que a urgência de Ginecologia e Obstetrícia esteja encerrada durante o fim de semana. Como retaguarda estará o Hospital de Guimarães, mas não foi possível obter em tempo útil se foram ou não entregues minutas de recusa e quantas.

Contactado pela CNN Portugal, o Hospital Santa Maria Maior adianta que foram apresentadas escusas por parte de dez profissionais médicos da especialidade de Medicina Interna e oito da especialidade de Cirurgia Geral, que, segundo o movimento Médicos em Luta, representa a totalidade dos clínicos desta especialidade (100%), que, diz o Conselho de Administração do hospital em Barcelos, é a única em que “para já se verificaram” constrangimentos. “Sempre que necessário”, garantem, os utentes serão referenciados, “sendo que a solução já está assegurada e passa pela articulação com o Hospital de Braga”. Na resposta enviada por escrito é ainda referido que “a especialidade de medicina interna irá também encerrar aos finais de semana, a partir de dia 7 de outubro, em conformidade com o documento formal apresentado pelos profissionais aos médicos de ambas as especialidades ao Conselho de Administração do HSMM”. As restantes especialidades “mantêm o funcionamento habitual”.

No Centro Hospitalar Póvoa de Varzim-Vila do Conde, os dados do movimento Médicos em Luta dizem que 11 especialistas de Cirurgia Geral e três internos entregaram declarações de recusa, assim como oito especialistas de Medicina Interna e três internos dessa especialidade.

No Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, “além das escusas que foram entregues na semana passada pelo Serviço de Medicina Intensiva Polivalente (19 médicos em formação e 23 especialistas), nos últimos dias receberam cerca de 50 novas escusas, de várias especialidades”, anuncia a unidade hospitalar à CNN Portugal, adiantando que “até ao momento” não se verificou “qualquer constrangimento a assinalar”, mas que, ainda assim, estão em curso “algumas reorganizações internas, procurando garantir que os cuidados de saúde aos utentes se mantêm assegurados”. No caso das urgências, “onde se trabalha 24 horas sobre 24 horas poderão, eventualmente, ocorrer alguns constrangimentos no futuro, caso esta situação se prolongue indefinidamente”. Ao todo, e segundo o documento partilhado pelo Médicos em Luta, no hospital de Gaia, 90% dos especialistas em Cuidados Intensivos, 70% em Anestesiologia, 50% em Obstetrícia e 63% de Cirurgia entregaram minutas.

Já no Centro Hospitalar Universitário São João, o diretor clínico Roberto Roncon diz que “é impossível quantificar” o número de pedidos de escusa à realização de horas extraordinárias para lá das obrigatórias, “mas todos os dias este número tem aumentado”. “São dezenas de profissionais, não são casos isolados de manifestações de indisponibilidade em vários serviços”, sobretudo na cirurgia geral, disse aos jornalistas, admitindo que “não têm sido noites fáceis para elaborar as escalas". "Temos feito um grande esforço.”

No Centro Hospitalar Universitário de Santo António, no Porto, foram entregues 31 minutas, todas elas “da mesma especialidade, anestesiologia, com o compromisso de que só começarão esta escusa a 1 de novembro”, revela à CNN Portugal José Barros, diretor clínico da unidade, que se apressa em dizer que é possível que mais declarações de recusa sejam entregues.

“Não excluo que haja outros serviços”, afirma, admitindo que as horas extraordinárias são “um motivo de grande transtorno” no hospital. “Não temos constrangimentos [nas urgências] à custa das horas extraordinárias, é impossível com horários de trabalho convencionais manter as urgências, só com horas extraordinárias”, diz, destacando que até hoje o hospital não teve qualquer rutura nas escalas de urgência graças “à compreensão e solidariedade” dos profissionais de saúde, mas, mais uma vez, não descarta que o cenário mude: “Neste momento, a insatisfação é tão grande que não excluo que [a rutura nas urgências] possa vir a acontecer.”

José Barros destaca que os médicos que apresentam a recusa estão a exercer um “direito”, mas que a falta de soluções para colmatar este problema “não é comportável a longo prazo”, sobretudo, diz, num hospital como o do Santo António, “que é de fim de linha e não pode dizer não a ninguém, nem fecha portas”. “A urgência é sagrada”, atira, e na eventualidade de haver constrangimentos admite “ter de parar outras linhas de produção". "Mas estou a antecipar-me a uma realidade que não existe neste momento.”

O Hospital de Penafiel solicitou o “desvio de doentes da urgência externa” por não conseguir reunir o mínimo de especialistas em Cirurgia Geral devido à recusa dos médicos em fazer mais horas extraordinárias do que aquelas que estão previstas por lei. Segundo o movimento Médicos em Luta, 90% dos especialistas em Cirurgia e 95% dos especialistas em Ginecologia recusam fazer mais horas extraordinárias.

No Centro Hospitalar Médio Ave, 95% dos especialistas em Pediatria entregaram declarações de recusa na Unidade de Famalicão, o que, segundo o movimento Médicos em Luta, levou “ao cancelamento da atividade não assistencial, formações, consultas e horário de internamento para garantir a escala”. Na mesma unidade hospitalar, 11 dos 16 especialistas de Cirurgia Geral também se juntaram à recusa, assim como 70% dos especialistas em Anestesiologia.

Médicos de Medicina Interna e Cirurgia Geral são os que mais batem o pé no centro do país

No centro do país, em Aveiro, segundo o movimento Médicos em Luta, cerca de 90% dos médicos de Medicina Interna assinaram a declaração de recusa, assim como 80% dos especialistas em Pediatria - aliás, nesta especialidade, somam-se ainda todos (100%) os internos, também eles a recusarem-se a fazer mais do que 150 horas extra por ano. Neste hospital, há ainda alguns constrangimentos em Obstetrícia e Cirurgia Geral.

No Hospital de Coimbra, 50% dos especialistas de Cirurgia Geral entregaram as minutas, assim como a totalidade dos internos. A indisponibilidade para fazer mais horas extraordinárias entra em vigor a 1 de novembro.

Em Viseu, a partir de 1 de novembro, 90% dos especialistas em Medicina Interna, incluindo internos, deixarão de fazer mais horas extra para lá das estipuladas por lei. Na Guarda, em Medicina Interna 90% dos médicos entregaram o documento de recusa e a unidade de saúde esteve “sem internistas no Serviço de Urgência” no dia 1 deste mês. Na especialidade de Cirurgia Geral, 65% (seis de nove especialistas) recusam mais horas extra a partir de 1 de novembro, data também a  partir da qual todos os médicos de Anestesiologia (100%) deixam de fazer mais horas extra para lá das 150 horas anuais.

No Centro Hospitalar Universitário Cova da Beira, diz à CNN Portugal a administração, "foram apresentados três pedidos de escusa ao trabalho extraordinário, além das 150 horas obrigatórias", duas delas em Pediatria e uma em Ortopedia. Vítor Mota, vogal executivo do Conselho de Administração, revela ainda que, "tem vindo o Conselho de Administração e, em particular, o seu Diretor Clínico, a envidar todos os esforços no sentido de garantir as escalas necessárias à manutenção dos serviços de urgência (geral e especialidades), até agora contando com a disponibilidade da esmagadora maioria dos profissionais médicos, convocados para o efeito, para garantir o funcionamento normal dos serviços".

O Hospital Distrital de Santarém (HDS) revela à CNN Portugal que 81% dos médicos do Serviço de Cirurgia e 80% dos médicos do Serviço de Medicina Interna entregaram ao Conselho de Administração um pedido de escusa de realização de mais de 150 horas extra, informação que, diz o a unidade hospitalar, “foi reportada à Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, aguardando-se orientações”. Já o documento do Médicos em Movimento dá conta de que 100% dos médicos de Cirurgia Geral entregaram o documento, assim como 90% dos especialistas em Pediatria (80% médicos e 100% internos).

Neste hospital, há médicos que dizem já ter realizado 800 horas extraordinárias apenas este ano. De acordo com a resposta enviada por escrito à CNN Portugal, o hospital diz também que “as repercussões da situação refletem-se apenas no Serviço de Urgência Externa, onde foi solicitado ao CODU o reencaminhamento doentes do foro cirúrgico e politraumatizados” entre os dias 2 e 3 de outubro. “Os restantes doentes serão atendidos normalmente e as cirurgias de urgência estão asseguradas”, conclui.

No Centro Hospitalar do Oeste, todos os médicos de Cirurgia Geral do Hospital das Caldas da Rainha apresentaram recusa. No mesmo hospital, 30% dos especialistas em Anestesiologia também negaram mais horas extra. No Centro Hospitalar Médio Tejo, “neste momento, são muito poucas (menos de dez) as escusas apresentadas e surtem efeito apenas a partir de novembro, pelo que não impacta o regular funcionamento da instituição”, diz o organismo numa resposta por escrito.

Em Loures, no Hospital Beatriz Ângelo, todos os médicos de Cirurgia Geral aderiram a esta luta contra a realização de mais horas extraordinárias, tendo também entregado documentos de escusa os médicos internos desta especialidade.

Em Lisboa, diz a SIC Notícias, cerca de metade dos médicos e todos os internos do Hospital de Santa Maria já apresentaram uma declaração de escusa à realização de mais horas extraordinárias. “Nunca vi o SNS num período tão crítico. Não está em coma, mas está numa situação grave e precisa de medidas imediatas a curto, médio e longo prazo”, descreveu à CNN Portugal o diretor clínico desta unidade, Rui Tato Marinho. O documento do movimento Médicos em Luta diz que oito dos 14 especialistas de Cirurgia Geral (60%) e 100% dos internos disseram ‘não’ a mais horas extras. “Apenas está garantida a escala de Cirurgia até meados de outubro”, lê-se no documento.

Já o Hospital Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) viu 90% dos médicos dos Cuidados Intensivos a apresentar recusa à realização de mais horas extraordinárias. Nos serviços de Anestesia e Obstetrícia, a percentagem de clínicos que entregaram as minutas de recusa rondam, respetivamente, os 94% e os 50%.

No Centro Hospitalar de Leiria, o documento dos Médicos em Luta dá conta de que 75% dos especialistas em Cardiologia entregaram a declaração de recusa a mais horas extra.

No IPO de Lisboa, por seu turno, foi apenas entregue uma minuta com pedido de recusa às horas extraordinárias. “Felizmente, esta situação não causa impacto na atividade assistencial, pois o IPO não tem urgência aberta”, diz-nos fonte da unidade. O IPO de Coimbra adianta, por e-mail, que "foram entregues sete minutas de médicos especialistas de ginecologia, com manifestação de indisponibilidade para a realização de mais horas extraordinárias, além das 150 anuais definidas por lei, tendo a situação sido ultrapassada". O IPO do Porto não respondeu em tempo útil às questões enviadas pela CNN Portugal.

Cancelada atividade cirúrgica adicional em Portalegre. Médicos do sul também dizem 'não' a mais horas extra

A sul, no Hospital Garcia de Orta, apenas um médico de Medicina Interna não apresentou a minuta de recusa, segundo os dados facultados pelo movimento Médicos em Luta. A urgência de Obstetrícia deste hospital estará encerrada todos os fins de semana de outubro. O documento deste movimento diz ainda que todos os especialistas e internos de Pediatria, assim como todos os especialistas de Neurologia (num total de oito) apresentaram as minutas de escusa a mais horas.

Em Portalegre, todos os 18 especialistas em Cirurgia Geral entregaram o documento de recusa, estando “cancelada a atividade cirúrgica adicional para aliviar as listas de espera”, segundo o Médicos em Luta.

A CNN Portugal entrou ainda em contacto com os hospitais de Évora e da região do Algarve, mas não obteve resposta em tempo útil. Porém, segundo o documento do movimento Médicos em Luta, no serviço Medicina Intensiva de Portimão quatro dos 13 clínicos apresentaram escusa, sendo um deles um interno.

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