"Muitas urgências do país correm o risco de fechar já em outubro". Médicos estão a entregar em massa escusa às horas extra

26 set 2023, 07:00
Médica (Pexels)

No Hospital de Santarém e de Viana do Castelo 100% dos médicos de cirurgia geral já informaram a administração que não fazem mais trabalho extraordinário para além do obrigatório. E não são caso único: os intensivistas de Portimão, os médicos de medicina interna de Santa Maria e de Aveiro seguiram o mesmo exemplo. Clínicos criaram movimento para denunciar e alertar para o caos que se instalou.

A situação nas urgências dos hospitais público parece estar cada vez mais grave e no próximo mês muitos destes serviços podem ter de encerrar portas por falta de profissionais.

Há muitos médicos a entregar às administrações hospitalares minutas de escusa ao trabalho extraordinário, além das 150 horas obrigatórias por lei. As especialidades mais afetadas são cirurgia geral, medicina interna e cuidados intensivos, mas também a pediatria e a obstetrícia vão ser afetadas. Os dados foram adiantados à CNN Portugal por um grupo de médicos que recentemente criaram um movimento, para alertar para o risco que corre neste momento os serviços de saúde em Portugal.  "Muitas urgências de país correm o risco de fechar já em outubro", garante  Susana Costa, 52 anos, médica de cirurgia geral e porta-voz do movimento

De acordo com o recém-criado movimento cívico Médicos em Luta, há mesmo hospitais onde 100% dos médicos já entregaram a minuta às respetivas administrações hospitalares em que se escusam a trabalhar mais do que as 150 horas extraordinárias a que são obrigados por lei. Muitos deles, quando chegaram “a fevereiro ou março, já tinha ultrapassado essas 150 horas”, diz Susana Costa, 52 anos, médica de cirurgia geral e porta-voz do movimento.

No Hospital de Santarém e de Viana do Castelo, por exemplo, 100% dos médicos de cirurgia geral já entregaram a minuta de escusa ao trabalho extraordinário para além daquele que é obrigatório. Mas não é caso único: os intensivistas de Portimão, os médicos de medicina interna de Santa Maria e de Aveiro seguiram o mesmo exemplo. Também no hospital de Aveiro, 80% dos pediatras entregaram o documento à administração, de acordo com dados daquele movimento

“A situação é transversal ao país inteiro. No Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, a adesão ronda os 100%. No Tâmega e Sousa 90% dos médicos do serviço cirurgia geral e maioria cardiologia geral também entregaram o documento, o que significa que o hospital vai deixar de ter via verde coronária neste período”, alerta Susana Costa.

O caos que se pode instalar, garante, é já do conhecimento das administrações hospitalares. “Na escala de outubro, estes médicos vão fazer apenas as 12 horas de urgência que têm contempladas no seu contrato. Os conselhos de administração dos diversos hospitais têm estes números todos, têm as minutas todas”, garante.

Por isso, os médicos avisam que o protesto vai ter um “impacto enorme” no funcionamento do Serviço Nacional de Saúde, já no próximo mês: “Sabemos que vai haver vários serviços em que não há escalas suficientes. Há equipas que agora têm quatro médicos a trabalhar já muito, muito e que vão passar a ter apenas dois”. “E isto vai ter um grande impacto na saúde das pessoas e até na mortalidade, numa altura em que se prevê um aumento dos internamentos, por causa das infeções respiratórias típicas da época do ano”, sublinha.

O movimento Médicos em Luta nasceu há pouco mais de um mês, sem ligações sindicais ou partidárias, com o intuito de alertar a população para o estado em que se encontra o Serviço Nacional de Saúde. “Estão a preparar um homicídio premeditado do SNS, privilegiando a medicina privada, que não é alternativa para a maioria da população", argumenta a responsável do movimento, sublinhando o cenário que se vive nas unidades públicas de saúde. "Todos os hospitais têm doentes em maca nos corredores e tempo de bloco operatório insuficiente".

Quanto às causas de todo este cenário, a porta-voz dos Médicos em Luta explica que "há poucos médicos no SNS, porque as pessoas não aguentam as condições de trabalho que têm". Por outro lado, diz,  há uma "burocracia que se vai acumulando e que rouba tempo para o doente".

"Temos muito pouco tempo para prestar cuidado ao doente, com consultas contabilizadas em tempos que são insuficientes para prestar cuidados necessários e adequados. Temos limitações em relação às prescrições e aos exames complementares que podemos prestar aos doentes”, detalha Susana Costa.

A porta-voz do Médicos em Luta assegura que o SNS só se mantém de pé “fruto de muito trabalho, dedicação e trabalho extraordinário dos médicos” e que há clínicos a fazer mais 600 horas extraordinárias por ano do que aquelas que estão obrigados por lei. De outra forma, será impossível manter muitos serviços de urgência abertos.

Os médicos queixam-se que não são ouvidos pela tutela e que lhes propõem aumentos que estão longe de colmatar a perda de compra que se verificou nos últimos 10 anos: “Somos muito perseguidos e maltratados quando fugimos àquilo que a tutela pretende e que os conselhos de administração exigem”.

“A população precisa de saber o que está a passar no SNS. O que a população é ensinada a fazer pela tutela é a manifestar revolta contra o médico, que não tem culpa do estado em que se encontra o Serviço Nacional de Saúde”, lamenta.

A iniciativa de protesto serve, assim, para mostrar à população que o SNS está em risco e para exigir melhores condições de trabalho, salários dignos e “compatíveis com os que tinham antes da perda do poder de compra das últimas décadas e progressão na carreira, já que, “em toda a carreira, só evoluímos uma vez”.

“O SNS tem muito de sangue, suor e lágrimas dos médicos e isso viu-se durante a pandemia. Não vamos desistir do SNS como médicos, mas também como doentes. Não queremos um dia vir a necessitar de um SNS que esteja doente”, remata a médica cirurgiã.

As urgências hospitalares, que já sofrem frequentes constrangimentos, conforme mostram as notícias que vêm a público podem assim "parar" já no próximo mês.  

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