«A História de Um Jogo» faz ‘rewind’ e volta a Estugarda, 1985. Há 35 anos, Carlos Manuel chocou a Alemanha e colocou a Seleção Nacional no México-86. «Depois do jantar sentei-me no bar do hotel e não saí de lá até de manhã»
'A História de Um Jogo' é uma rubrica semanal do Maisfutebol. Escolhemos um duelo marcante e partimos em busca de histórias e heróis passados. Todas as quinta-feiras.
Da Alemanha ao México é só um Saltillo. Pelo menos para Carlos Manuel. Há 35 anos, no dia 16 de outubro de 1985, o antigo médio marca um dos mais mediáticos golos na história do futebol português e coloca, 20 anos depois, Portugal num Campeonato do Mundo.
O ‘Milagre de Estugarda’ ganha vida própria, estatuto de lenda e rótulo mitológico. Mas terá sido assim tão revolucionário e anómalo? Carlos Manuel, o herói desta história, garante ao Maisfutebol que não. Foi, admite, um instante de inspiração como tantos outros. Um instante de futebol.
«Eu acho que o Toni Schumacher [guarda-redes alemão] não vê a bola a partir. É um remate inesperado, até porque há um jogador que está quase à frente da bola e vira as costas. Aquilo é um golo que sai a quem, normalmente, está habituado a rematar de fora da área. Isso era muito meu, fiz muitos golos de fora da área.»
A potência de remate de Carlos Manuel é reconhecida. Pela Seleção Nacional faz oito golos [um no Mundial do México, à Inglaterra] e pelos clubes chega aos 80, divididos entre Benfica, Sporting, Sion, Estoril e Boavista. A memória de Estugarda-85 está bem fresca.
«Transportei a bola do nosso meio-campo até perto da área, driblei o Brehme se não estou em erro e depois… o Fernando Gomes estava aberto na direita, mas marcado. Não havia outra solução, rematei, foi o risco. A bola até podia sair por cima da barra e tínhamos de dar dois tiros, para matar o pombo (risos). Mas saiu-me bem. Às vezes enganámo-nos, como costumo dizer aos meus amigos.»
Retirem, pede Carlos Manuel, qualquer pozinho de esoterismo ou religião desta narrativa. O futebol é assim mesmo, feito de atos heroicos.
«Houve ali um clic importante quando soubemos que a Suécia tinha perdido na Checoslováquia, não foi milagre nenhum. Depois, entrámos muito bem no jogo e ao intervalo podíamos estar a ganhar por 2-1. Talvez com a Alemanha um pouco descontraída. Tivemos duas grandes oportunidades de golo, uma pelo Jaime Pacheco e outra pelo Mário. Fizeram ambos um grande jogo, aliás fizemos todos.»
Aos 54 minutos, o golo de Carlos Manuel. Um pontapé extraordinário, ao ângulo superior esquerdo da baliza de Schumacher. Extraordinário e traiçoeiro. Até o narrador da RTP é enganado pela trajetória e grita ‘ao lado!’. Nem pensem nisso. Este remate ao lado dá o melhor golo a Portugal, pelo menos até um tal de Eder silenciar o Stade de France, 31 anos mais tarde.
«Quando soubemos que a Suécia tinha perdido, acreditámos que era possível»
No princípio era o verbo sonhar. Portugal ganha «aflito» à frágil Malta por 3-2 e chega à Alemanha com possibilidades matemáticas de se qualificar para o Mundial. Carlos Manuel volta ao princípio de tudo.
«Nós tínhamos ganho a Malta uns dias antes, aflitos, e é evidente que ninguém acreditava que fossemos à Alemanha ganhar. Ainda por cima estávamos dependentes do resultado entre a Checoslováquia e a Suécia. Portugal só poderia sonhar com qualquer coisa se os checos ganhassem», contextualiza o antigo internacional português.
«Há 20 anos que não íamos a um Mundial. Saímos do hotel e soubemos que a Suécia estava a ganhar, isso não nos interessava nada. Já perto do estádio de Estugarda, uma hora e pouco antes do nosso jogo, ficámos a saber que a Checoslováquia tinha dado a volta ao jogo. Se ganhássemos à Alemanha estaríamos no México-86. O problema é que a Alemanha nunca tinha perdido um jogo de apuramento em casa (risos).»
Essa reviravolta da Checoslováquia acaba por mexer com os níveis de otimismo dos portugueses. No balneário, as caras já estão diferentes. «No momento em que nos disseram o resultado final do Checoslováquia-Suécia, ainda no autocarro, sentimos qualquer coisa. Aí sim, sentimos que era possível. Quando chegámos aos vestiários explodimos de alegria, tivemos um primeiro festejo. Começámos a dizer entre nós, ‘pode ser possível’.»
«Sentei-me no bar do hotel e já não saí de lá até de manhã»
Carlos Manuel não gosta de vestir a capa de super-herói e raras vezes fala deste golo em público. Mesmo a esta distância, prefere destacar «o roubo de bola do Jaime Pacheco», «a movimentação do Gomes» e, naturalmente, «o meu pontapé».
«Esse golo não foi meu, foi dos portugueses. Estávamos num período de 20 anos sem Mundiais. É um golo bonito, um golo que me marcou muito. A mim, ao futebol português e a toda a nossa equipa e aos treinadores. José Torres, Jaime Graça, Marinho, massagistas e a algumas pessoas da FPF, não todas.»
No ano seguinte, essa Alemanha chega à final do Mundial, como bem lembra Carlos Manuel. Briegel, Rummenigge, Littbarski, Schumacher, uma grande equipa, uma equipa nada habituada a perder.
«Depois do golo, claro, sofremos muito. Soubemos sofrer. Levámos ali um massacre, recuámos um bocadinho, mas tínhamos o apuramento na mão. Isso deu-nos uma força enorme. Fomos coesos, responsáveis e concentrados. Toda a gente deu mais do que podia dar. Sentimos que tínhamos de conseguir chegar lá, com o Bento a defender tudo e os postes também.»
O feito é devidamente celebrado. Primeiro no estádio, depois no hotel, mais tarde no aeroporto e em solo português. Mas, sobretudo, no bar do hotel em Estugarda.
«Nessa noite não dormimos. Sentei-me no bar do hotel depois do jantar e já não saí de lá até de manhã. O bar estava cheio de gente, dos nossos emigrantes. Eles tinham de ir trabalhar de manhã e fizeram uma direta. Sentiram uma alegria enorme por olhar de cima para baixo para os alemães naquele dia. Imagino o que terá sido em Portugal nessa noite.»
«Tenho orgulho no que fiz e no golo, claro», prossegue Carlos Manuel. «Mas ainda mais orgulho no que o nosso grupo fez depois de sair do autocarro e saber que a Suécia tinha perdido. Gente muito boa, grandes jogadores. A década de 80 deu muito ao futebol português, foram anos importantes.»
«Não foi o golo mais bonito da minha carreira, esse foi outro»
Vale a pena nomear, um a um, os escolhidos do selecionador José Torres nessa noite fria de Estugarda. Na baliza, Bento (Benfica). A líbero, José António (Belenenses), atrás de João Pinto (FC Porto), Frederico (Boavista), Venâncio (Sporting) e Inácio (FC Porto). Veloso (Benfica) joga a trinco. No meio-campo estão Mário Jorge (Sporting), Jaime Pacheco (Sporting) e Carlos Manuel (Benfica). Na frente, sozinho, Fernando Gomes (FC Porto).
No banco, mais cinco elementos importantes: Damas (Sporting), Álvaro (Benfica), Jaime (Belenenses), Litos (Sporting) e José Rafael (Boavista). A RFA já está qualificada para o México-86 e entra a passo no relvado do Neckerstadion. Rudi Voller e Felix Magath não jogam, mas a equipa apresentada por Franz Beckenbauer é de luxo.
Sete dos 11 escolhidos serão titulares na final do Mundial e têm vista privilegiada para o golão de Carlos Manuel. «Não foi o golo mais bonito da minha vida, não foi. Mas foi o golo mais mediático da minha vida», atira o herói de Estugarda, enquanto lembra um outro momento nos relvados, ainda mais antigo.
«Ando há anos atrás dele, mas a RTP não tem as imagens. Tem o resumo do jogo, mas não apanhou o momento desse golo. Muitas pessoas da Póvoa falam-me desse jogo. Era a meia-final da Taça de Portugal, em 1980. Vencemos por 2-1 e só o Bento, o Toni e eu é que tocámos na bola na jogada do golo. Dei de trivela quase na linha de fundo.»
E Harald Schumacher? Terá Carlos Manuel reencontrado a vítima de 85 nos anos seguintes? Não, nunca, assegura o ex-médio português.
«Agora há encontros promovidos pela FIFA e UEFA, antigamente não havia nada disso. Num ano tínhamos dois jogos da seleção, hoje o contato entre os jogadores é grande. Na altura, não. Nunca mais estive com o Schumacher, nem com nenhum jogador alemão dessa seleção. O único adversário que encontrei recentemente até foi o Graeme Souness, que mais tarde treinou o Benfica. Falámos sobre os Benfica-Liverpool nos anos 80 na Taça dos Campeões Europeus. Mas imagino que o Schumacher tenha ficado triste, apesar de mais vezes triste ter ficado eu. A Alemanha ganhava mais do que Portugal. (risos)»
«Não somos os vilões de Saltillo
Passo em frente. Portugal acaba com uma seca de duas décadas fora do Mundial e chega ao México. O pesadelo em solo azteca fica eternizado no nome da cidade que acolhe os Magriços: Saltillo. Problemas e mais problemas.
«Naquela altura havia uma dificuldade que hoje não existe. Iam dez jogadores do Benfica, dez do FC Porto, oito do Sporting e havia muita clubite. Se jogássemos na Luz os jogadores do Porto e do Sporting eram assobiados, se jogássemos em Alvalade os jogadores do Benfica e do Porto eram assobiados e se jogássemos nas Antas os jogadores do Sporting e do Benfica eram assobiados. Hoje isso não existe e ainda bem. Os jogadores estão quase todos fora de Portugal.»
É tudo mau? Não. Carlos Manuel está certo de que o seu golo e as reivindicações de Saltillo provocam as mudanças que a FPF e o futebol nacional precisam.
«Esse golo deu-nos os dissabores que se conhecem, Mas não foi o momento negro do futebol português, ao contrário do que muitos dizem. Foi dos momentos mais positivos e permitiu a mudança e a reorganização da FPF. Não me venham dizer que Saltillo foi o momento negro, não foi. Foi a abertura do futebol português», sublinha Carlos Manuel.
«Não fomos vilões. Não fomos heróis, mas também não fomos vilões. Aquele grupo de trabalho tentou, já com algumas reivindicações que fizera em 1984, que houvesse uma mudança total no futebol português. O 25 de abril acontecera em 1974 e continuava a não chegar à federação. Isso deu-nos problemas grandes. Eu nunca mais fui à seleção depois do Mundial de 1986, por uma questão de coerência minha. Outros colegas também voltaram a não ser convocados. Pelo menos fizemos alguma coisa para mudar o nosso futebol.»
Tudo verdade. Carlos Manuel, só com 28 anos, joga pela última vez por Portugal a 11 de junho de 1986, na humilhante derrota contra Marrocos. Menos de um ano depois de ser elevado à categoria de herói: 16 de outubro de 1985.
«Sei qual é o dia, porque as pessoas falam. Mas até é mais falado no meu dia-a-dia. Entro num restaurante e falam-me do golo de Estugarda. É logo nisso que falam. É um golo marcante, não tenho dúvidas disso. Há um colega na Sport TV que nos festejos partiu a cama e já me contou essa história.»
VÍDEO: o golo de Carlos Manuel faz 35 anos
FICHA DE JOGO:
16 de outubro de 1985, Estugarda (Alemanha)
Árbitro: Keith Hackett (Inglaterra)
ALEMANHA: Harald «Toni» Schumacher; Ditmar Jakobs (Heinz Grundel, 46), Matthias Herget, Karl-Heinz Forster e Andreas Brehme; Hans-Pieter Briegel, Thomas Berthold, Karl Allgower e Norbert Meier; Pierre Littbarski (Thomas Allofs, 63) e Karl-Heinz Rummenigge.
Selecionador: Franz Beckenbauer
PORTUGAL: Bento; João Pinto, José António, Venâncio, Frederico e Inácio; Veloso; Mário Jorge, Carlos Manuel (Litos, 81) e Jaime Pacheco; Fernando Gomes (José Rafael, 86).
Selecionador: José Torres
Suplentes não utilizados: Damas (GR), Álvaro e Jaime.