Afeta duas em cada três pessoas e é um dos maiores desafios da ciência. Porque é que é tão difícil encontrar a cura - e a desejada vacina - para o herpes?

17 set 2023, 08:00
Imagem do vírus do herpes humano obtida com microscopia eletrónica de transmissão .(BSIP/Universal Images Group via Getty Images)

Há vários ensaios em andamento, mas ainda nenhum resultado concreto. O vírus do herpes pode ser uma doença devastadora, avisam os especialistas

A história poderia ser a de um filme de ficção científica, mas é a mais pura das realidades: há um vírus que afeta duas em cada três pessoas, que fica para toda a vida no organismo e para o qual ainda não existe cura nem forma de prevenir a transmissão. E não é por falta de tentativas da ciência - até agora todas falhadas.  

Trata-se do vírus, que pode ser o mais antigo da história e que há fortes suspeitas ter surgido de um beijo e que é conhecido como herpes. A sua capacidade para fintar o sistema imunitário é uma das principais barreiras sentidas pela comunidade científica - já sabe como o atua e como se movimenta, mas ainda não conseguiu chegar ao virus quando este se ‘esconde’ num reservatório e, por isso, a vacina é ainda um cenário utópico.

“Criar a vacina é difícil porque o vírus evoluiu para evadir a resposta imunitária”, diz Pedro Simas, investigador, professor universitário e virologista. E como se não bastasse, “a forma como as nossas defesas reagem ao herpes” aumentam toda “esta complexidade”, o que faz com que “tenhamos algum atraso e alguma dificuldade em chegar a vacinas e tratamentos”, refere, por seu lado, a médica Cândida Fernandes, especialista em Dermatologia e assistente hospitalar graduada no Hospital de Santo António dos Capuchos, do Centro Hospitalar de Lisboa Central.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 3,7 mil milhões de pessoas  com menos de 50 anos tenham infeção pelo vírus herpes simplex tipo 1 (HSV-1) - falamos de 67% da população em todo o mundo. E há ainda 491 milhões de pessoas até aos 49 anos infectadas pelo vírus herpes simplex tipo 2 (HSV-2). É um vírus que fica para a vida e cujos sintomas podem repetir-se ao longo dos anos (em alguns casos, de meses a meses).

Os vírus herpes simplex 1 e 2 tendem a ser benignos, mas com um grande impacto na autoestima, no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas. O primeiro é responsável pelo herpes labial e o segundo pelo herpes genital, mas começam a multiplicar-se os casos em que os casos de herpes genital são contraídos por contágio do herpes labial, uma tendência que se tem verificado nos Estados Unidos e na Europa, incluindo em Portugal. E este é apenas um exemplo do quão complexo consegue ser este vírus.

O vírus do herpes pode ser dos mais antigos de que há história. A Universidade de Cambridge diz que pode ter ‘nascido’ quando o beijo surgiu: em 3.300 a.C. “Os primeiros genomas antigos do herpes a serem sequenciados sugerem que o vírus se espalhou com as migrações da Idade do Bronze para a Europa e possivelmente com o surgimento do beijo”, diz a instituição, que publicou no ano passado esta descoberta na Science.

Há décadas que a ciência luta para encontrar a solução para este enigma, seja uma vacina que cure o herpes - e, com isso, trave as reincidências - ou que ‘simplesmente’ consiga prevenir o contágio. Mas o vírus tem-se mostrado demasiado inteligente para que tal seja possível. E é por isso que ainda ninguém conseguiu dizer ‘eureka’. .

O atual diretor do Centro de Investigação Biomédica da Católica mantém-se confiante. “Eu acredito que com conhecimento conseguimos sempre resolver tudo”, diz-nos, avisando que no caso deste virus o caminho ainda é longo e pode ser demorado.

Um vírus ‘ninja’ que finta o próprio sistema imunitário

Ao comparar os primeiros genomas antigos do herpes sequenciados com amostras do vírus em pleno século 20, os cientistas de Cambridge foram capazes de analisar as diferenças e estimar uma taxa de mutação que levou à descoberta de um cronograma para a evolução do vírus. E essa evolução começou há milhares de anos e permitiu que o vírus ganhasse a capacidade de fintar o próprio sistema imunitário, mesmo vivendo nele anos a fio. 

Algo aconteceu há cerca de cinco mil anos que permitiu que uma cepa de herpes ultrapassasse todas as outras; possivelmente um aumento nas transmissões, que poderia estar ligado ao beijo”, explica Christiana Scheib, investigadora do St. John’s College, Universidade de Cambridge.

Hoje em dia sabe-se que o herpes simplex se transmite pelo contacto e que assim que a pessoa contrai o vírus, este “entra num gânglio nervoso, fica numa fase de latência” e “nem se percebe muitas vezes que o vírus lá está”. Mas fica toda a vida “e vai tendo reativações, manifestando-se na pele com uma frequência muito variável”, explica a médica Cândida Fernandes.

“Havendo uma primeira infecção, a primo-infecção, o vírus fica depois sob a forma latente”, adianta Pedro Simas. Essa latência acontece porque o vírus ‘esconde-se’ e ‘adormece’, sendo despertado por alguns gatilhos que ativam “a memória imunitária”, que dá início a uma “imuno-invasão”, podendo demorar seis a 24 horas a resultar numa lesão, seja labial ou genital.

“O organismo consegue eliminar o vírus das células, mas não do reservatório de latência que está noutras células. Por isso, o vírus torna-se invisível ao sistema imunitário. Torna-se apenas visível quando está ativo”, explica o investigador e virologista . E quando está ativo, já há vesículas visíveis, muitas vezes dolorosas e propensas a infetar.

Mas se até agora se acreditava que cada vírus o seu herpes, mudanças de estilo de vida e de práticas sexuais parecem estar a criar uma fusão entre os simplex. E isso já foi tema de estudo em Portugal.

“Os herpes simplex 1 e 2 são muito semelhantes e o que tem acontecido é que nos ultimos anos tem aumentado o número de pessoas com herpes genital causado pelo virus do herpes simplez 1, através do sexo oral. Mas o vírus herpes 1 na região genital tem uma vantagem, menos crises, menos reativações, é uma infeção é benigna”, conta à CNN Portugal Cândida Fernandes, que coordenou a primeira investigação em Portugal sobre o herpes genital e que permitiu perceber que a tendência que se verifica noutros países acontece também por cá.

Imagem do vírus do herpes humano obtida com microscopia eletrónica de transmissão .(BSIP/Universal Images Group via Getty Images)

Pedro Simas, que há mais de uma década se dedica ao estudo deste vírus, destaca as “características biológicas dos herpesvírus”, sendo “precisamente a capacidade” de fintar o sistema imunitário a sua principal valência e aquilo que torna tão difícil ‘caçá-lo’ e aniquilá-lo - e que torna a descoberta de uma vacina eficaz uma tarefa quase hercúlea. Mas nem tudo são más notícias: pode também o vírus do herpes ser o caçador de outras doenças. 

Há oito tipos de herpesvírus pertencentes à grande família de vírus ADN Herpesviridae. Herpes labial, herpes genital, varicela, mononucleose infecciosa, rubéola e, às vezes, herpes zoster (conhecida como zona) são algumas das doenças que podem causar. Alguns destes vírus do herpes estão ainda envolvidos em certos tipos de cancro, incluindo o linfoma de Burkitt. E se a ciência ainda não conseguiu uma cura para o herpes, a mesma ciência olha para este vírus como uma potencial cura para outras doenças.

O vírus herpes associado ao Sarcoma de Kaposi tem sido um dos focos de investigação de Pedro Simas. Três anos depois de ter criado um vírus quimera, o investigador português, juntamente com Kenneth M. Kaye, professor da Harvard Medical School, descobriu, em 2020, uma região da proteína viral LANA que pode ser a chave para a latência viral e infeção persistente dentro das células humanas, o que abre portas para novas terapias para linfomas ou tumores como o sarcoma de Kaposi. 

A cada falha, uma descoberta. Mas a luz ao fundo do túnel continua distante

Os primeiros grandes estudos sobre o herpes e potenciais tratamentos começaram a ganhar força nos anos 1970, como disse ao The New York Times Harvey Friedman, professor de medicina da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Desde então, muito se descobre, muito se refuta. Nascem novas teorias à mesma velocidade que se multiplicam as dúvidas. 

Chegou mesmo a haver uma promissora vacina contra o herpes genital que “continha um componente denominado glicoproteína D, que se encontra no envelope [estrutura presente na parte externa da dos vírus] que envolve o vírus herpes simplex 2 (HSV-2)”, mas esta não foi capaz de prevenir a infeção, como se lê neste estudo. “Sabemos que falhou, mas não sabemos porquê”, lamentam os investigadores.

Mas cada falhanço é também uma descoberta, como provou a Universidade de Yale na sua tentativa de encontrar uma vacina para o herpes genital. “Os investigadores descobriram pela primeira vez que o anticorpo do HSV-2 que o corpo produz em resposta à vacinação não estavam presentes na cavidade vaginal, onde é mais necessário para proteger contra a infecção”, lê-se no site da instituição, que explica ainda que “ter o anticorpo a circular no sangue por si só não é suficiente para proteger contra a infecção por herpes genital” - daí uma vacina ‘convencional’ não ser suficiente.

Para a ciência, o vírus do herpes tem sido um dos principais enigmas e são dois os grandes desafios na hora de desenvolver um fármaco eficaz, seja um comprimido ou uma vacina. É preciso prevenir e curar. E só aqui dá para perceber a complexidade e a dificuldade que a natureza evasiva deste vírus traz.

“A dificuldade é que a vacina teria de atuar nestas duas fases, uma vacina profilática, que permita não transmitir a doença, ou com efeitos terapêuticos para que a pessoa não tivesse tantas crises”, esclarece a dermatologista Cândida Fernandes.

David Knipe, virologista da Harvard Medical School, é crítico quanto à lentidão da ciência - e à desistência de algumas empresas farmacêuticas (e em 2019 foram três) - e, num artigo partilhado pela Nature, diz que “falharam tantas vacinas que as empresas estão a ver as vacinas contra herpes como um negócio arriscado”. Mas a médica portuguesa rejeita esta teoria da falta de interesse e investimentos da indústria - e prova disso são as vacinas atualmente em estudo, como a que foi desenvolvida pela equipa de Harvey Friedman, da Universidade da Pensilvânia, em parceira com a BioNTech. Falamos de uma vacina para o herpes simplex 2 e que foi administrada numa pessoa em dezembro do ano passado..

Existem muitos ensaios e muitas novas tentativas. Há mais de 20 ensaios para tentar perceber a melhor estratégia para se conseguir uma vacina nestas fases [infecção e latência]. Estão a decorrer imensos ensaios clínicos ainda numa fase pré-estudo, mas acho que vai haver bastante investimento para que se consiga uma vacina eficaz”, diz a médica e investigadora.

Atualmente, continua a Cândida Fernandes, estão a decorrer “alguns ensaios com vacinas vivas atenuadas, são vírus herpes que são deficientes e não se conseguem dividir no organismo, mas seriam suficientes para criar uma resposta imunitária”, que é como quem diz, quando “o vírus verdadeiro” entrar em ação a pessoa deixa de ter “tantas crises”. “É uma das estratégias que está em estudo”.

A teoria de que a edição genética pode ajudar a eliminar o herpes ganha destaque e, em 2020, um estudo publicado na Nature Communication veio mostrar que, através de terapia genética, é possível destruir até 95% dos vírus do herpes que se encontram em determinados grupos nervosos. O estudo foi realizado em ratos de laboratório.

Por se tratar de um vírus que conseguiu evoluir ao ponto de fintar o sistema imunitário e cuja forma de ação ainda não é taxativa, as vacinas até agora testadas “têm tido uma eficácia abaixo dos 50%”. “Como é uma infecção muito frequente, [as vacinas] não são eficazes na proteção global”, adianta Cândida Fernandes. Além disso, continua, “os mecanismos de defesa do organismo são diferentes na fase de entrada e nas reativações” do vírus, o que agrava ainda mais o estudo científico, além de que “alterações da imunidade” dão-se “no local onde aparecem as lesões e não nas defesas gerais”. E, diz, “todos estes mecanismos estão ainda a ser estudados e conhecidos”. 

Lesão labial causada pelo vírus herpes simples 1. O tratamento com pomadas antivíricas e a toma de antivíricos orais são formas de atenuar a dor e acelerar a cicatrização. (Arno Burgi/picture alliance via Getty Images)

Olhando para casos de sucesso na criação de vacinas, como aconteceu recentemente com o SARS-CoV-2 e anteriormente com a hepatite B, “o sistema imunitário julga que o vírus pertence ao nosso corpo e permite que ele viva lá”, explica Pedro Simas. Mas há vírus que conseguem fintar esse reconhecimento do sistema imunitário, como é o caso do vírus herpes simples 1 e 2 e do vírus da imunodeficiência humana (VIH, que causa sida). “O VIH evoluiu para invadir todos os mecanismos de resposta imunitária. É difícil conseguir uma vacina eficaz”, lamenta o investigador, dizendo se essa evolução é também notória no vírus do herpes.

“Há muitos anos que se tenta uma vacina contra o herpes simplex 1 e 2. Há várias estratégias em cima da mesa. A razão pela qual [a ciência] ainda não foi bem-sucedida é porque as vacinas não são eficazes a prevenir. Mesmo uma pessoa que tenha uma resposta imune, se a pessoa contrair o vírus ele consegue sempre estabelecer uma latência, essa é a grande dificuldade”, diz Pedro Simas, que destaca a dificuldade em chegar a esse “reservatório de latência” do vírus, o local no nosso organismo onde se esconde e vive adormecido até uma gripe, uma cirurgia, um dia de demasiada exposição solar ou uma semana de extremo stress o acorde.

O mensageiro que nos protege da covid-19 pode não conseguir passar bem a mensagem contra o herpes

A crença de que as vacinas mRNA possam ser a solução para o herpes é vista com cautela por parte dos entrevistados da CNN Portugal. Há estudos a decorrer e até com resultados promissores, como acontece na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, que após ensaios em ratos de laboratório, crê uma vacina com mRNA poderá ajudar a prevenir doenças sexualmente transmissíveis, incluindo o herpes genital (HSV-2). Porém, apesar do sucesso que este ‘mensageiro’ alcançou em plena pandemia, para este vírus pode não ser a opção mais indicada. 

Dizia-se que as [vacinas] mRNA que eram a solução para VIH e herpes, mas estou mais cauteloso, não é por serem mRNA que vamos conseguir fazer isso. Precisamos de conhecer mais profundamente os mecanismos que levam este vírus a contrariar o sistema imunitário, só assim conseguiremos desenhar uma estratégia e uma vacina que permita erradicar estas infeções”, adianta Pedro Simas.

O investigador lamenta “esta expectativa que existe nas mRNA” e defende, “como virologista”, que “é preciso mais conhecimento”, pois “são vacinas boas, muito fáceis de produzir, mas não são milagrosas”.

Um vírus benigno, mas não para todos. Porque é que não se deve desvalorizar o herpes?

Para uns é apenas uma ‘ferida’ nos lábios, para outros é ‘mais uma ferida nos lábios’, mais um golpe na autoestima, o regresso da vergonha e do medo de contagiar outros. À boleia disso pode vir a febre, os gânglios inchados, a dor no local lesionado. No caso do herpes genitial, há toda uma vida sexual afetada, um receio constante.

“A comunicação tem de ser cuidada”, alerta Cândida Fernandes, que diz que o estigma é uma realidade e que este vírus consegue comprometer o bem-estar emocional de quem o tem. E o impacto é ainda maior no herpes genital, um estigma faz com que muitas pessoas escondam o diagnóstico ou até nem procurem ajuda. 

O herpes pode ser uma doença devastadora. Mas como  é sexualmente transmissível, as pessoas não querem falar sobre isso”, reconhece Akiko Iwasaki, professor de Imunobiologia e de Dermatologia. Em 2019, um estudo veio mostrar que a infecção pelo vírus Herpes Simplex Tipo 1 está associada ao comportamento suicida e ao primeiro diagnóstico psiquiátrico registado em pessoas saudáveis.

Cândida Fernandes destaca que “o facto de ser tão frequente, a maioria parte das pessoas na vida adulta vai ter contacto com um destes vírus". Na maior parte das vezes sendo uma doença benigna, a comunicação não pode ser muito ansiogénica, que faz com que as pessoas se sintam mais estigmatizadas e ansiosas”. Mas, ainda assim, a médica diz que se “deve chamar a atenção para uma infecção que pode ter alguma complicação”, destacando o maior impacto nas pessoas com um sistema imunitário mais frágil ou nos bebés, em que o vírus do herpes pode ser fatal.

“O problema não é a primo-infeção, mas sim as reativações, que podem causar cegueira, muito desconforto nos genitais”, continua Pedro Simas.

A higienização das mãos, o tratamento das vesículas com cotonetes (e não com os dedos), a não partilha de toalhas e talheres são estratégias a ter em conta na prevenção do contágio do herpes labial. O uso de preservativo ou outras formas de ato sexual (que não impliquem o sexo oral ou o coito) podem ajudar a evitar o contágio do herpes genital.

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