Ministério Público abre investigação à Agência Portuguesa do Ambiente após queixas de conflitos de interesse

11 jul 2023, 07:00

Em 2019, a Agência Portuguesa do Ambiente mandou encerrar atividades de um empresário numa pequena barragem em Benavente, após queixas de moradores representados por José Eduardo Martins. O advogado é amigo do presidente da APA, Nuno Lacasta, o que levou o empresário a apresentar queixas de conflito de interesse. Quatro anos depois, Lacasta enfrenta vários processos: MP enquadra possível tráfico de influências e manda PJ investigar, IGAMAOT faz buscas e deputados do PSD instam governo a agir

O Ministério Público delegou no final de junho na Polícia Judiciária uma investigação à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e ao seu presidente, Nuno Lacasta, por suspeitas de tráfico de influências. Em causa está uma decisão de 2019 de encerrar as atividades náuticas de uma empresa na barragem da Herdade do Zambujeiro, perto de Benavente, assim validando uma queixa de dois moradores da Herdade representados pelo advogado José Eduardo Martins, amigo próximo de Lacasta e antigo secretário de Estado do Ambiente. O empresário afetado pela decisão da APA, Rodrigo Gallego, avançou com uma série de denúncias por alegados conflitos de interesse que chegaram ao DIAP e ao Parlamento, e levam agora a Polícia Judiciária e a Inspeção-Geral do Ambiente a investigar o processo.

A empresa Sociedade de Desportos Náuticos do Zambujeiro operava na barragem desde os anos 90, com atividades náuticas como jet ski, barco à vela, wakeboard e paddle surf . Em 2019, os queixosos representados por José Eduardo Martins defenderam que a infraestrutura era ilegal e que as suas atividades deviam ser encerradas por falta de segurança. A APA teve o mesmo entendimento, salientado que a mesma não tinha licença para a sua construção. O processo, no entanto, não ficaria por aqui, evoluindo para um litígio entre as partes com várias frentes.

Quatro anos depois, e após sucessivas queixas de Gallego ao Ministério Público e ao Ministério do Ambiente, Nuno Lacasta enfrenta um processo-crime que o procurador do DIAP de Sintra enquadra como tráfico de influências. O litígio entre as partes já implicou também outro processo por denúncia caluniosa, que chegou a ser arquivado pelo DIAP da Amadora e seria reaberto em janeiro deste ano. Além disto, o responsável está a ser alvo de uma investigação ordenada pelo ministro Duarte Cordeiro.

Imagem aérea da barragem na Herdade do Zambujeiro, em Benavente/ D.R.

Barragem “ilegal”

A primeira queixa sobre a barragem à APA surgiu no verão de 2019 e foi feita por dois moradores de Benavente representados por José Eduardo Martins, advogado e sócio da sociedade Abreu Advogados. A queixa alegava que a barragem estava ilegal porque não tinha título de utilização de recursos hídricos: faltava-lhe “licença”.

Em setembro de 2019, e de acordo com o ofício que a CNN Portugal consultou, a Agência Portuguesa do Ambiente interditou a utilização da barragem “no que diz respeito às competições desportivas” e “ao seu uso para práticas comerciais”, sob pena de tal constituir uma contraordenação ambiental muito grave.

Rodrigo Gallego reagiu: no mesmo mês de setembro de 2019, pediu à APA licenciamento para utilização desportiva, num processo que até hoje não foi decidido. Meses depois, em janeiro de 2020, a Câmara Municipal de Benavente veio atestar em reunião de câmara que a barragem era anterior a 1955, pelo que dispensaria licenciamento: “Só por absurdo tal necessidade se efetivará em conjunto com todas as situações semelhantes que ocorrem no país”, declarou então o presidente da Câmara, segundo registos escritos da reunião. Gallego reuniu ainda o apoio da Federação Portuguesa de Motonáutica, que em carta enviada à APA pediu a reabertura das atividades para treinos para os Jogos Olímpicos. Finalmente, e segundo notícia do Jornal O Mirante, cerca de 500 subscritores enviaram uma outra carta à APA solicitando a reabertura de operações comerciais na barragem em defesa do interesse económico para a região.

Em fevereiro de 2021, contudo, os dois moradores da queixa original, ainda assessorados pelo advogado José Eduardo Martins, apresentam uma nova queixa: Rodrigo Gallego estaria a desrespeitar as autoridades pois teria reaberto ilegalmente sem autorização as atividades náuticas na barragem. Um ano depois, a APA declara que, para reabrir a atividade, o empresário necessitará de obter o estatuto de interesse público, processo que Rodrigo Gallego inicia na Câmara de Benavente. A 11 maio de 2022, a APA confirma o encerramento total da utilização da barragem.

É aqui que o processo deixa de ser um desentendimento burocrático e evolui para litigância.

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Emails contraditórios em 107 minutos

Para declarar o estatuto de interesse público, a Câmara Municipal questionou em maio de 2022 a APA sobre se seria necessário efetuar uma Avaliação de Impacto Ambiental (AIA). Vieram duas respostas contraditórias. Primeiro, um email assinado pelo próprio presidente da APA, Nuno Lacasta, garante à Câmara Municipal que, sendo a barragem anterior a 1955, não será necessária uma avaliação de impacto ambiental para lhe ser atribuído o título de interesse público e poder funcionar. Menos de duas horas depois, um segundo ofício num novo email, assinado por uma técnica da APA, “desautoriza” o presidente, informando que a primeira informação tinha sido “enviada por lapso” e deveria ser considerada “sem efeito”, e indicando que, afinal, a barragem tinha de ser alvo de uma Avaliação de Impacto Ambiental.

É este o gatilho que leva Rodrigo Gallego a efetuar uma queixa-crime contra Nuno Lacasta, contra a APA e contra a técnica que anulou o primeiro parecer, sublinhando, nessa queixa dirigida ao Ministério Público, que “esta atitude poderá vir a preencher os pressupostos para um eventual crime de abuso de poder”. Paralelamente, o empresário chegou a apresentar uma providência cautelar contra a decisão da APA para impedir o encerramento, mas o Tribunal Adminsitrativo Fiscal de Leiria não lhe dá razão.

PJ investiga tráfico de influências

É esta queixa-crime, apresentada originalmente no DIAP de Sintra, que evoluiu agora. No inquérito que deu seguimento a esta queixa-crime, e de acordo com documentação a que a CNN Portugal teve acesso, o Ministério Público mandou alterar o crime em causa para o de “tráfico de influências” e pediu para inserir um “alarme para controlo de prazos”.

O procurador encarregado deste caso delegou ainda na Polícia Judiciária a realização das investigações e diligências “necessárias à instrução do presente Inquérito”.

Sobre esta questão, a Agência Portuguesa do Ambiente afirma que "prestou a informação que lhe foi solicitada pelo Ministério Público, colaborando no apuramento da verdade e na prossecução da justiça, como sempre faz".

IGAMAOT promove buscas

Em junho de 2022, o empresário fez também uma denúncia no Ministério do Ambiente pedindo uma sindicância ao processo, alegando conflito de interesses por causa da relação de proximidade pessoal entre Nuno Lacaste e José Eduardo Martins, defendendo que não necessita da licença e pedindo escusa do presidente da APA neste processo.

A denúncia não tem resposta até ao fim desse ano, o que leva Gallego a apresentar em janeiro de 2023 uma queixa na Provedoria de Justiça por inação do Ministério do Ambiente. Em março, o Ministério responde que ordenou uma investigação ao Inspeção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT).

Ao mesmo tempo, o caso chegou à Assembleia da República, tendo o grupo parlamentar do PSD questionado por escrito o ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro, sobre este assunto. “Os factos se comprovados são graves e carecem de melhor esclarecimento pois atingem a credibilidade e dignidade do Ministério e da própria APA”, lê-se no requerimento entregue em abril no Parlamento pelos deputados Paulo Rios de Oliveira, Jorge Salgueiro Mendes e Márcia Passos.

Esta investigação, que foi pedida pelo ministro do Ambiente após ter recebido um pedido de sindicância em junho do ano passado, está a ser liderada pelo IGAMAOT e já levou a buscas tanto na herdade onde se situa a barragem, como na Câmara Municipal de Benavente, confirmou a CNN Portugal junto de fonte do IGAMAOT. A inspeção “encontra-se a desenvolver as diligências inerentes ao processo de inquérito mandado instaurar pelo Ministro do Ambiente e da Ação Climática e que se encontra em fase de execução”.

 

Rodrigo Gallego, proprietário da Sociedade de Desportos Náuticos do Zambujeiro/ D.R

 

APA acusa empresário de "bullying"

À CNN Portugal, a Agência Portuguesa do Ambiente reitera que nenhuma das suas decisões foi tomada com o intuito de favorecer alguém e critica o empresário que, segundo fonte oficial, tem optado por, "em litigância incessante, visar o Presidente e vários outros funcionários da APA". "Tudo sem fundamento porque, como referido, a APA não negou a sua pretensão, pelo contrário, abriu a porta à sua satisfação. E quem se vem sistematicamente recusando a cumprir os mais elementares preceitos legais é o proponente. Quem vem sistematicamente fazendo mesmo algum “bullying” a vários elementos da APA é o proponente", aponta a mesma fonte.

Já José Eduardo Martins salienta que a sua "vida profissional não se confunde com as relações pessoais" e que "qualquer insinuação que contrarie este princípio é difamatória". “Trabalho na defesa dos legítimos interesses dos meus clientes, cumprindo as regras deontológicas da profissão, o que é facilmente verificável pela consulta dos guias da profissão ou prémios ganhos ao longo dos anos. A realidade dos factos, nomeadamente o arquivamento de queixas idênticas a esta em pelo menos duas comarcas, desmente qualquer insinuação em contrário, venha ela de anónimos ou de uma contraparte derrotada que pretende, em oposição aos interesses de clientes meus, legalizar a ilegalidade", reitera o advogado, acrescentando que já teve duas queixas-crime em processos idênticos a este e que ambas foram arquivadas.

Questionado sobre se estas queixas a que se refere dizem respeito ao processo por denúncia caluniosa e à providência cautelar,  José Eduardo Martins destaca que se tratam de "duas queixas crime que foram arquivadas pelo MP". "De notar que o MP tomou a decisão de arquivamento sem nunca ouvir os alegados denunciados, tal era a fundamentação", adianta. "Estes assuntos resolvem-se seguindo as regras do Estado de Direito, e não através de manobras que visam unicamente prejudicar o bom nome de quem trabalha honestamente na advocacia há mais de 30 anos com resultados conhecidos", declara ainda José Eduardo Martins.

José Eduardo Martins, aqui fotografado em 2016 num almoço comemorativo dos 40 anos da aprovação da Constituição/ Arquivo Lusa

 

“Situação de incompatibilidade e conflito de interesses”

O empresário e dono da herdade onde se situa a barragem e onde desenvolvia atividades náuticas alega que está a ser vítima de uma “teia de interesses”, conforme afirmou à CNN Portugal. Segundo a documentação que consta da sindicância que originou a investigação da Inspeção-Geral do Ambiente, Rodrigo Gallego invoca a relação “muito estreita” entre José Eduardo Martins e o presidente da APA para considerar que se pode “estar perante uma situação de incompatibilidade e conflito de interesses”.

Uma situação que o levou a dar entrada com um pedido de escusa de Nuno Lacasta neste processo “devido às suas relações de proximidade” com José Eduardo Martins. O pedido chegou aos serviços da APA no dia 7 de outubro do ano passado, mas, garante, não obteve qualquer resposta.

Já Nuno Lacasta afirma, à CNN Portugal, que “não existem neste processo, nos termos da lei, quaisquer atuais ou potenciais conflitos de interesse por parte de qualquer colaborador da APA”.

O presidente da Agência Portuguesa do Ambiente garante também que a barragem é ilegal por não ter tido “licença para a sua construção” e que podia até ter sido alvo de “demolição”. Só não o fez, conta, porque a autarquia de Benavente explicou que a barragem era importante em vários aspetos, nomeadamente como “reserva de água estratégica para combate a incêndios florestais”. Já o empresário alega, contudo, que a infraestrutura nada tem de ilegal uma vez que é anterior a 1955, altura em que ainda não era obrigatório este licenciamento.

Por outro lado, a atuação da Agência Portuguesa do Ambiente é criticada pelo presidente da Câmara de Benavente, Carlos Coutinho, que sublinha que “não é normal que seja necessário mais do que um ano para que uma entidade como é a APA resolver esta situação”.

Neste momento, a barragem permanece interdita e o negócio que era desenvolvido pela Sociedade de desportos Náuticos do Zambujeiro está parado. 

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