"O mercado vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização"

ECO - Parceiro CNN Portugal , Flávio Nunes, Diogo Simões e Hugo Amaral
4 fev, 11:00
Jorge Batista da Silva, bastonário da Ordem dos Notários (Hugo Amaral/ECO)

Jorge Batista da Silva, bastonário da Ordem dos Notários, vê virtudes no simplex do licenciamento, mas alerta para novos riscos que se colocam junto de quem vai comprar uma nova habitação

Já foi publicado o novo simplex dos licenciamentos urbanísticos, com 26 medidas para reduzir a burocracia e aumentar a oferta de casas para habitação no mercado. O bastonário dos notários está satisfeito com a inclusão no decreto-lei de uma proposta da Ordem para facilitar a conversão de imóveis comerciais em habitação, mas está preocupado com “o facto de se dispensar, no momento da transmissão do imóvel, que se comprove a existência de licença e de ficha técnica da habitação”.

O decreto-lei elimina o que o Governo considera serem “formalidades que não representam valor acrescentado”, pelo que, no momento da assinatura de um contrato de promessa de compra e venda, dispensa-se a “exibição ou prova de existência da ficha técnica de habitação e da autorização de utilização”. Essa medida específica produz efeitos a 1 de janeiro de 2024, só que Jorge Batista da Silva diz que “veio espantar quase toda a gente” com quem tem falado, “desde a área da mediação imobiliária e dos cartórios à área dos registos”, até pela facilidade que existia na obtenção desses documentos, muitas vezes já na posse dos mediadores, ou obtidos digitalmente em algumas autarquias.

Em entrevista ao ECO, o bastonário da Ordem dos Notários diz que essa exigência foi introduzida “nos anos 80 e 90”, depois de “muitos portugueses” terem comprado casas que estavam “ilegais, sem o mínimo de condições de habitabilidade”. Apesar de admitir que os compradores continuam a poder pedir esses documentos, até por exigência da banca no momento de financiar a operação, o responsável avisa que o comprador fica mais desprotegido, porque “o mercado, neste momento, vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização”. “O que existe neste momento é uma verdadeira corrida até para os alienar”, assegura.

Começo com uma pergunta política: como é que o bastonário da Ordem dos Notários olha para a situação atual do país?

A longo prazo eu diria que Portugal não está tão mal como já esteve, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista do desemprego, quer do ponto de vista da evolução daquilo que é o investimento em novas áreas de atividade, através das startups, através de energias renováveis, etc.

A curto prazo já vejo alguns perigos para o país e algumas preocupações. Uma delas reside no facto de termos problemas para os quais ainda não existe uma resposta política — e espero que as próximas eleições também ajudem a dar esse passo — como a questão da habitação, que está tão em voga e que tem tanto a ver também com a nossa atividade, visto que nós somos responsáveis por grande parte da formalização dos contratos de aquisição de habitação.

É um problema que está cada vez mais claro e mais saliente e para o qual não vemos assim uma resposta imediata. Aliás, o que notamos, pelo contrário, é que é um problema que tem tendência a agravar-se, visto que, apesar de existirem agora algumas soluções legislativas, como o pacote Mais Habitação, não existe nada que seja verdadeiramente impactante para os próximos cinco anos, pelo menos, e, portanto, é um problema que vai persistir.

Por outro lado, estamos expectantes, como o resto do país, com a questão das próximas eleições. Próximas eleições essas em que, nos partidos, naquilo que é o setor em que os notários atuam, que é mais na área da justiça e também da Administração Pública e da modernização administrativa, as medidas que são conhecidas são muito poucas. Tememos que a falta de propostas ou que a falta de ideias nesses setores venham a significar, no futuro, a falta de reformas que são precisas, quer na área administrativa, quer na área da Justiça.

E que reformas seriam essas? Têm alguma espécie de caderno de encargos para quem vier a tutelar a área da Justiça?

Tenho, e a Ordem dos Notários vai enviá-lo aos partidos, como fez, aliás, nas últimas eleições. Na Justiça, mais do que fazer a mega reforma da qual ouço falar pelo menos há 20 anos, é necessário resolver os problemas imediatos. E os problemas imediatos da Justiça têm a ver com coisas tão pequeninas como as pessoas não terem de trabalhar num computador com o sistema operativo XP, em que, para a apresentação de uma queixa, para fazer uma participação ou para enviar um simples e-mail, perdem dez a vinte minutos de trabalho. Ou não estarem em instalações em que chova lá dentro. Ou não terem mobiliário adequado. Este tipo de coisas pequeninas, que em Portugal se tende — principalmente na Administração pública — a considerar como pouco importantes para o desenvolvimento da Justiça, na verdade, são fulcrais.

Mas quais são as barreiras? É simplesmente falta de vontade?

Eu acho que é falta de organização. Mais do que falta de vontade política, nós temos um problema de organização e de timings. Hoje em dia, os governos andam constantemente a tentar responder àquilo que é notícia do dia nas redes sociais. E isso é um problema, porque não é propriamente uma notícia para uma rede social ou para abrir um telejornal que um tribunal, uma esquadra da polícia ou um serviço da administração pública recebeu um sistema operativo novo.

Não existe nada que seja verdadeiramente impactante para os próximos cinco anos [para resolver a crise da habitação].

Notam sinais de abrandamento no mercado imobiliário?

Notamos, mas de uma maneira um pouco estranha. É estranho como é que nós descobrimos em 2023, ou em 2022, que tínhamos um problema. Verdadeiramente, o problema do imobiliário começou na altura da troika.

Está a referir-se à crise da habitação?

Não só da habitação mas mesmo do ponto de vista comercial, porque também há problemas com a instalação de empresas em espaços comerciais, porque os preços também subiram bastante.

O que nós tivemos, nomeadamente na questão do imobiliário, foi que nós passamos de um pico, no princípio deste século, de construção de casas em torno dos 120.000 fogos para habitação [por ano] e chegámos a baixar até aos 8.000 no pico da crise da troika. Neste momento, há cerca de um ano, eram cerca de 20 mil fogos para habitação licenciados por ano. Portanto, nós temos aqui um problema gravíssimo do lado da oferta. E o problema não é de hoje.

Depois, demoramos muito tempo a identificar as causas. E uma das causas foi que, durante o período da troika, grande parte das empresas de construção civil ou ficaram insolventes ou foram dissolvidas, e os recursos humanos que nelas trabalhavam emigraram. Portanto, nós, neste momento, mesmo que quiséssemos construir mais e aumentar o ritmo de construção, não temos recursos humanos.

Quando se fala da necessidade de imigração, se nós perdêssemos a imigração, que é quem está a alimentar neste momento o mercado da construção civil e outros, aí o problema da habitação seria ainda mais grave, porque nós não conseguimos recrutar mão-de-obra qualificada, até porque muita da mão-de-obra qualificada não faz falta só em Portugal, mas faz falta em Espanha, em França e na Alemanha, onde se paga muito melhor do que se paga em Portugal.

Nós não vamos conseguir que os nossos emigrantes regressem. Dificilmente o vamos conseguir fazer. A única solução é conseguir formar pessoas em Portugal, sejam de nacionalidade portuguesa ou não, para atacar verdadeiramente o problema da habitação. Tudo o resto são pequenos paliativos que podemos aplicar, sendo que o programa do Mais Habitação vem trazer alguns desses paliativos.

Já disse que não é suficiente. Poderia ter ido muito mais além.

Na minha opinião, podia ter ido mais além, principalmente naquilo que é a construção de instrumentos macro de política pública de habitação. A política pública de habitação vai ter que nascer e não seria uma originalidade portuguesa. A política de habitação existiu nos anos 80 em Portugal, quando era necessária, e continua a ser necessário. Nunca devia ter parado e existe em toda a Europa. O próprio Estado tem que ter instrumentos para intervir no mercado de habitação e não é isso que nos torna menos liberais ou menos capitalistas, ou o que seja.

Jorge Silva, bastonário da Ordem dos Notários, em entrevista ao ECO (Hugo Amaral/ECO)

A 4 de março entra em vigor o simplex do licenciamento. Já elogiou a iniciativa, disse que tem algumas virtudes. Mas também identificou sérios riscos. Pode explicá-los?

Eu começo pelas vantagens e são logo tudo aquilo que consta do diploma que nos venha a permitir reduzir prazos, tornar mais transparente os processos de licenciamento, obrigar as Câmaras Municipais a serem mais ágeis nos processos de licenciamento, porque isso continua a ser uma barreira que temos que resolver a nível nacional.

Desde logo, tendo uma plataforma informática [Plataforma Eletrónica dos Procedimentos Urbanísticos], que já está lá prevista, que venha normalizar todos os procedimentos a nível nacional. Dentro dessa plataforma informática, defendo algo que é sabermos e termos a possibilidade, como cidadãos ou como empresários, de saber, exatamente, quais são os prazos para a tramitação dos processos em todos os municípios do país através de um só clique.

Nós devíamos saber isso, porque, quando eu decido que quero construir uma casa no município de Lisboa, Porto, Cascais ou onde quer que seja, deveria ter o direito de saber quanto tempo demora o processo de licenciamento. Claro que me podem dizer que, no novo simplex, na habitação, há ali uma série de processos em que se faz requerimento e aquilo automaticamente é deferido. [O deferimento tácito], na prática, não vai resolver nada, porque a maior parte dos processos de financiamento estão sempre associados à obtenção das licenças de facto. Nem o facto de na lei dizer que afinal já não é preciso licença para transmitir, porque quem empresta o dinheiro para adquirir casa vai sempre exigir esse tipo de burocracias.

E os jovens que compram casas, normalmente, é com recurso a financiamento.

Exatamente. Portanto, isso não vai resolver o problema. O que resolve o problema, quanto mais não seja até do ponto de vista político e da competitividade dos municípios, é nós sabermos quanto tempo demoram os processos, para podermos responsabilizar quem de direito pela sua demora.

Este Mais Habitação também nos trouxe coisas que a própria Ordem defendeu, como a possibilidade de poder converter um imóvel comercial para habitação sem ter que pedir a todas as pessoas que moram no prédio, que era um processo horroroso. Imaginem um prédio que tem 50 pessoas, em que o meu vizinho pode bloquear só por maldade ou porque não gosta de mim, porque não gosta do meu clube de futebol.

A grande questão que se colocou, e a norma que veio espantar quase toda a gente, pelo menos toda a gente com quem eu tenho falado, desde a área da mediação imobiliária aos cartórios, a área dos registos, tem a ver com o facto de se dispensar, no momento da transmissão do imóvel, que se comprove a existência de licença e de ficha técnica da habitação.

Nós estamos a falar de pedir uma fotocópia. Em muitos casos, estamos a falar de uma fotocópia autenticada que até já está na posse do vendedor, ou que pode ser facilmente comprovada, ou é pedida pelo notário que estiver a fazer o processo, ou pelo serviço de registos. E muitas Câmaras do país já estão a desmaterializar o processo. Ou seja, já posso pedir uma certidão digital da licença e dispensar a exibição da licença no momento da transmissão e da ficha técnica.

Foram medidas que foram tomadas nos anos 80 e 90, precisamente por causa de muitos portugueses que compraram casas estavam ilegais, sem o mínimo de condições de habitabilidade, com problemas sérios até do próprio risco da sua utilização. E, depois, mais tarde, [no caso da] ficha técnica, para podermos determinar quem eram os responsáveis pelas obras, para podermos ter acesso à forma como o imóvel foi construído, que é um direito do consumidor, e muito disto nasceu da legislação europeia, que deu ao consumidor ferramentas para se poder defender.

Neste momento, nós temos um consumidor que para comprar um frigorífico tem uma série de defesas e para comprar uma casa o Estado vem dizer, afinal, [que a obtenção desses documentos] fica na sua disponibilidade: “Se quiser pedir o título a quem lhe está a vender a casa, o documento que efetivamente lhe diz que a sua casa tem as condições de habitabilidade e que é legal, ou seja, que a Câmara Municipal não pode mandá-la abaixo, perdendo o seu dinheiro quase todo, isso fica na sua disponibilidade”. Claro que me podem dizer assim: “Se fica na disponibilidade, o comprador pode exigir”. O problema é que o comprador no mercado atual é o mais fraco.

Está-se a desproteger o comprador?

Ele é o mais fraco, porque há falta de imóveis no mercado.

No limite, poderíamos ter a situação de um comprador adquirir um imóvel que teria que ser demolido algum tempo depois, por ser ilegal.

Exatamente. Isto pode acontecer.

Mas isto foi o desconhecimento do legislador? Foi uma opção política?

Só posso atribuir isto a desconhecimento do legislador. E dou um exemplo para explicar porque é que eu acho que é desconhecimento do legislador. Eu acho que é um erro jurídico. Imagine só: eu, para comprar uma casa, não tenho que exibir licença de utilização, porque o legislador revogou a norma que o exigia. Mas, para fazer um contrato de promessa de compra e venda de uma casa, preciso de exibir uma licença de utilização, porque o legislador se esqueceu que estava noutro artigo do Código Civil. Claramente, o legislador não conhecia o sistema. Nós passámos de um regime jurídico em que eu, para prometer vender uma casa, tinha que mostrar uma licença, para um regime jurídico que, no momento da efetiva venda da casa, não tem que mostrar rigorosamente nada.

Há imobiliárias que, tanto quanto sei, colocam nos contratos de promessa de compra e venda uma cláusula que dispensa.

Está previsto no Código Civil a não exibição de uma licença original. Eu, sinceramente, não percebo para quê, porque obter a licença de utilização é um processo relativamente simples… quando ela existe. Quando alguém me diz que não consegue obter uma licença de utilização, normalmente é porque ela não existe. E, se não existe, temos um problema, claro, principalmente para quem compra.

No mercado atual, em que há falta de habitação, o que estamos a falar é de alguém que precisa de uma casa e, portanto, encontra o vendedor. E o vendedor diz: “Olha, tenho aqui uma casa para vender, mas isto não tem licença.” Até lhe diz. E a pessoa, à falta de alternativas, a compra, sem sequer perceber verdadeiramente no que se está a meter. Pode ficar sem casa e sem o dinheiro.

Neste momento, nós temos um consumidor que para comprar um frigorífico tem uma série de defesas e para comprar uma casa o Estado vem dizer que [a apresentação de licença e da ficha técnica] fica na sua disponibilidade.

Um dos objetivos deste simplex do licenciamento é aumentar o número de imóveis no mercado. Considera que isso vai acontecer?

Vai acontecer. Por duas razões, neste caso: vai acontecer por razões boas e por razões más. Vai acontecer pelo processo de simplificação, porque há imóveis que estavam fora do mercado e que vão passar a estar, que serão imóveis comerciais, mas até pela facilitação dos próprios licenciamentos intermédios, e as pequenas burocracias foram eliminadas. E vai pela vertente negativa: o mercado, neste momento, vai ser inundado por imóveis ilegais e sem licença de utilização. Vai ser inundado. E o que existe neste momento é uma verdadeira corrida até para os alienar.

Então tem esperança de que ainda vá ser revisto esse simplex do licenciamento?

Eu tenho esperança de que sim. Aliás, não tenho grandes dúvidas de que o próximo Governo terá que olhar para isto. A Ordem dos Notários apresentou uma proposta da possibilidade de se poder vender e comprar um imóvel não licenciado, mas fazer depender isso da emissão pela Câmara de uma declaração a dizer se aquele imóvel, pelo menos, é licenciável ou não, para o comprador ter noção de que se pode regularizar.

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