A União Europeia prepara-se para falhar a meta estabelecida para o fornecimento de um milhão de munições para a Ucrânia. Fábricas paradas, interesses em choque e dois modelos industriais põem à prova a determinação europeia de continuar a apoiar o esforço de guerra ucraniano
Os militares costumam dizer que a infantaria vence batalhas, mas é a logística que ganha as guerras. A motivação dos soldados é um fator importante no campo de batalha, mas sem capacidade de fornecer tudo aquilo que um exército necessita para derrotar o inimigo não é possível vencer uma guerra. Depois de meses de promessas de apoio “enquanto for necessário”, a União Europeia continua longe de atingir os seus compromissos de envio de armamento para a Ucrânia e as consequências podem levar a Ucrânia "a ser vencida no campo de batalha. O tempo está cada vez mais curto e os especialistas alertam: "Não basta fazer discursos".
“A União Europeia está a falhar e a Ucrânia pode chegar a um beco sem saída. Os ucranianos têm um exército excelente, mas não basta ter soldados motivados: se não há munições, não há como fazer guerra”, explica o major-general Agostinho Costa.
Conscientes desta realidade, a União Europeia apressou-se em enviar apoio militar para Ucrânia. Mas décadas de paz no continente levaram a um quase desmantelamento da indústria militar europeia, que se mostrou incapaz de produzir as quantidades necessárias de munições para enviar à Ucrânia. Para resolver o problema, os líderes europeus decidiram fazer uma promessa ambiciosa: um milhão de munições de 155 milímetros para a Ucrânia.
Mas a poucos meses do final do prazo, apenas 300 mil unidades foram entregues a Kiev e os líderes europeus admitem que dificilmente a promessa vai ser cumprida. “É seguro assumir que o milhão de munições não será atingido”, revelou o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorious. Thierry Breton, Comissário europeu de Mercado Interno, diz que ainda é possível, mas depende de os Estados assinarem contratos. No entanto, os governantes apontam o dedo à indústria, mas, para os especialistas, a culpa é da incapacidade dos estados-membros de não conseguir obter um consenso, por quererem ser eles a receber os fundos para produzir essas munições.
“Toda a gente concordou com a aquisição conjunta de um milhão de munições de artilharia, mas depois instalaram-se os interesses dos países. A França queria produzir, a Alemanha queria produzir e os interesses começaram a ser postos em cima da mesa e ninguém se chegou à frente”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira, que acrescenta que, ao mesmo tempo que a União Europeia se atrasa na entrega daquelas que são as mais importantes munições, a Coreia do Norte enviou um milhão de unidades para a Rússia.
Mas, na verdade, a situação pode ser ainda mais complicada. Na frente de batalha, o racionamento de munições é uma realidade a que os militares ucranianos não conseguem fugir. Ainda no início do ano, a tão antecipada contraofensiva ucraniana foi sujeita a sucessivos atrasos no fornecimento logístico ocidental, de acordo com uma entrevista do presidente Zelensky à CNN a 5 de julho. Atualmente, a Rússia dispara uma média de 60 mil munições de vários calibres. A Ucrânia dispara apenas 20 mil, de acordo com uma investigação do jornal Kyiv Independent, que cita fontes governamentais. Esta diferença de poder, insiste Kiev, é paga com vidas ucranianas.
Ao todo, a Ucrânia consome, pelo menos, cinco vezes mais munições do que a União Europeia é capaz de produzir e o problema não é fácil de resolver. Apesar do consenso político no Ocidente para o auxílio à Ucrânia, as decisões de aumentar a produção demoraram a ser tomadas. Em parte, porque a expectativa era de que a Ucrânia não fosse capaz de resistir ao poderio do exército russo, reconhecido pelos analistas como “o segundo melhor do mundo”. Camille Grand, que serviu como secretária-geral adjunta da NATO para investimentos em defesa até novembro de 2022, admitiu: “Tínhamos a impressão de que a guerra não duraria muito”.
“A Ucrânia está a pagar uma fatura que pode ser demasiado cara. A União Europeia tem de ser coerente com aquilo que diz. Se isso não acontecer, a Ucrânia vai ser vencida no campo de batalha”, frisa Isidro de Morais Pereira.
Gigante adormecido
Por outro lado, os gigantes da indústria militar europeia permaneciam adormecidos, fruto de décadas de paz e aumentar a produção de equipamentos militares é algo que não acontece do dia para a noite. Para produzir uma munição, por exemplo, são necessárias dezenas de materiais que têm de ser comprados individualmente aos produtores. E, em muitos casos, estes produtores não têm capacidade para fornecer as matérias-primas nas quantidades necessárias, o que obriga os fabricantes de armamento a ter de procurar novas cadeias de fornecimento, estabelecendo contratos milionários, que demoram tempo a estar concluídos.
Em alguns casos, as empresas foram mais rápidas a reagir do que os governos. Antes mesmo de estarem a ser celebrados os primeiros contratos, no início do conflito, várias empresas começavam a antever a necessidade de aumentar a produção e começaram a adquirir toneladas de materiais. A francesa Nexter comprou centenas de toneladas de pólvora, logo no início do conflito. O mesmo aconteceu com a empresa norueguesa NAMMO. No entanto, os primeiros contratos só chegaram quase um ano depois.
“É como uma fábrica de carros. Existe uma fábrica de montagem que monta o veículo e o envia até ao consumidor, mas há também uma série de outras fábricas que produzem outros componentes e matérias-primas para essa fábrica. A indústria da defesa é uma teia de empresas que se apoiam umas às outras”, explica Isidro de Morais Pereira.
O aumento da cadeia de produção é um problema particularmente lento de se resolver e que tem atrasado o fornecimento de equipamento bélico, particularmente no que toca à produção de munições de artilharia. As fábricas que produzem estes equipamentos requerem maquinaria de grandes dimensões, que, por sua vez, também requerem algum tempo a ser produzida. Algumas destas máquinas têm o tamanho de um pequeno edifício e funciona em conjunto com centenas de outros equipamentos, que requerem tempo, dinheiro e mão-de-obra.
Todas estas mudanças requerem quantidades significativas de investimento que podem atingir os milhares de milhões. Para os produtores de armamento, a perspetiva de criar novas linhas de produção para aumentar a produção, só faz sentido se essa produção houver a promessa de compra dessas munições no futuro. Ou seja, os fabricantes podem não querer investir numa nova fábrica se daqui a cinco anos ninguém quiser comprar armamento. Por isso, em muitos casos, exigem aos compradores que façam contratos a longo prazo, que obriguem à compra de munições ao longo de vários anos.
“A indústria da guerra alimenta-se da morte e do medo, mas também está sujeita às leis de mercado, como a lei da procura e oferta. Estas empresas exportam para quem lhes pagar mais”, refere o professor José Filipe Pinto, que acrescenta que os cidadãos europeus podem não estar disponíveis para suportar os custos adicionais necessários para reverter a situação.
"Os cidadãos europeus, ao contrário dos cidadãos russos, não aceitariam uma transição para economia de guerra", defende.
Um exemplo desta realidade desta indústria pode ser visto na própria Rheinmetall. Para o gigante industrial alemão, o principal problema ao aumento do fabrico de munições estava na produção de pólvora. Para o resolver, é necessário investir numa nova unidade de produção, com um custo inicial de 700 milhões de euros. Mas, para a avançar com o projeto, o CEO da empresa insiste que só o fará se tiver garantias de que serão compradas munições suficientes para tornar o negócio rentável. Segundo Armin Papperger seria necessária a compra de 100 mil unidades por ano, durante oito anos, mas quase nenhum exército tem necessidade para este tipo de quantidades.
Economia de Guerra
Apesar das reiteradas palavras de apoio à Ucrânia por parte dos vários Governos europeus, essas promessas não se têm traduzido em contratos a longo prazo que façam disparar a produção de munições para os níveis desejados, que permitam repor reservas e garantir o apoio à Ucrânia. O principal produtor de armamento, a empresa alemã Rheinmetall, acredita que em breve será capaz de fabricar 600 mil unidades de munições de artilharia de vários calibres por ano. Um número insuficiente para colmatar as necessidades ucranianas e europeias.
França defendeu, através de Emmanuel Macron, que a Europa precisa passar para uma “economia de guerra”, mas as medidas adotadas pelo governo não levaram os fabricantes franceses a criar linhas de produção. O Eliseu quer gastar 16 mil milhões de euros em armamento até 2030, mas deste dinheiro apenas 3 mil milhões são destinados à compra de munições. Ao todo, o ministério da Defesa francês vai comprar 15 mil munições por ano, mas para repor as reservas francesas.
Josep Borrell sublinhou que parte do problema prende-se mesmo no facto de 40% da produção da indústria militar europeia ir para compradores estrangeiros. Para José Filipe Pinto, especialista em Diplomacia e Relações Internacionais, este é um dos principais problemas. “Vendemos para quem nos pagar mais. O capital não tem rosto nem tem pátria, tem interesses apenas”, defende.
Existem outros fabricantes europeus com alguma dimensão, mas o ritmo a que a produção está a ser aumentada continua demasiado lento para o gosto de Kiev. A fabricante norueguesa NAMMO espera atingir uma produção anual de munições de 155 mm apenas em 2028, um salto considerável das dez mil unidades fabricadas anualmente antes da guerra. O conglomerado polaco PGZ também planeia aumentar a sua capacidade de produção de 200 mil munições por ano. Atualmente, a PGZ produz entre 20 a 40 mil unidades por ano.
No entanto, o think tank Centre for Eastern Studies estima que a capacidade de produção de munições de 155 mm na União Europeia seja de 230 mil projéteis por ano, muito abaixo das 25 a 40 mil que a Ucrânia utiliza por semana. Nos Estados Unidos o cenário é ligeiramente melhor. Logo em 2022, o responsável do Pentágono pela produção de armamento militar começou por implementar planos a longo prazo, que dessem às produtoras as garantias necessárias para abrir novas unidades de produção. No início do conflito, esta produção rondava as 15 mil munições por mês. Foram precisos quase dois anos de guerra para duplicar este valor, que agora ronda as 30 mil munições mensais. Espera-se que, no início de 2025, este valor atinga as 90 mil munições por mês. Por esse motivo, o secretário da Defesa norte-americano, Llyod Austin, deslocou-se de surpresa a Kiev para prometer um novo pacote de ajuda militar no valor de 100 milhões de euros que inclui munições de 155 mm e 105 mm.
Pouco se sabe sobre os dados de produção militar russa. Sabe-se, no entanto, que uma parte significativa da indústria militar russa pertence ao Estado e, por isso, não obedece a esta lógica de mercado. Se o Governo assim o decretar, a produção pode ser acelerada de acordo com as necessidades. E é isso que está a acontecer.
Desde o início do conflito, a Rússia tomou medidas para aumentar a produção de quase todos os tipos de equipamentos. Várias fábricas trabalham interruptamente durante 24 horas, com os trabalhadores a desdobrarem-se em três turnos de oito horas. O Governo russo prevê também gastar 6% do PIB em defesa, quando no ano anterior tinha gastado 3,9%. Segundo o think tank Carnegie Endowment for International Peace, a maior parte deste dinheiro será direcionado na produção de equipamentos militares. São dois modelos em rota de colisão: de um lado, o modelo capitalista e, de outro lado, o modelo estatista das ditaduras.
“Na Rússia muita da indústria russa é privada, mas a indústria de base é pública. O Estado manda aumentar e acontece. Os russos preparam-se para uma guerra a longo prazo. O ocidente apressou-se a fazer discursos. Não basta fazer discursos”, afirma Agostinho Costa.