Traidor ou herói? É difícil para a Ucrânia identificar os colaboradores russos

CNN , Tim Lister e Sanyo Fylyppov
10 jun 2022, 08:00
Soldados russos guardam uma zona enquanto um grupo de jornalistas visita Kherson, no sul da Ucrânia, a 20 de maio de 2022

Está em andamento um ajuste de contas na Ucrânia, com os procuradores a trabalhar em dezenas de casos contra ucranianos acusados ​​de colaborar com as forças russas. O Ministério do Interior diz que já existem mais de 500 casos sob investigação.

Do presidente Volodymyr Zelensky para baixo, as autoridades ucranianas reservaram uma aversão especial a supostos colaboradores, ou “Gauleiters”, como são frequentemente apelidados. O termo Gauleiters era usado para os funcionários distritais na Alemanha nazi.

Zelensky disse em abril que “a justiça será reposta. Todos os que se tornaram Gauleiters podem registar-se para morar em algum lugar em Rostov-on-Don”, na Rússia.

De Mariupol a Enerhodar, os russos conseguiram encontrar ucranianos dispostos a tornar-se funcionários locais, embora em muitos casos, a competência dos mesmos tenha sido questionável.

A maioria dos acusados ​​de colaboração ainda está fora do alcance dos procuradores ucranianos. Mas cerca de 40 antigos funcionários e outros já foram julgados ao abrigo de leis rigorosas promulgadas logo após a invasão. Alguns foram considerados culpados de fornecer informações militares aos russos.

Os processos decorrem, mas nem todos os casos são claros. As autoridades locais em zonas invadidas pelas forças russas enfrentam frequentemente uma escolha nada invejável: tentar proteger e representar as pessoas que os elegeram - ou sair rapidamente. A zona sul de Kherson forneceu muitos exemplos desse dilema.

Tropas russas guardam uma entrada da central nuclear Kakhovka, no rio Dnieper, no sul da Ucrânia, a 20 de maio de 2022

Caos em Kherson

Nos primeiros dias da invasão, as tropas russas invadiram Kherson. Muitos funcionários regionais - polícias, membros do serviço de segurança, políticos - partiram rapidamente.

Mas Ilya Karamalikov, membro do conselho municipal de Kherson, ficou. Agora, enfrenta acusações de traição.

A acusação de seis páginas, a que a CNN teve acesso, alega que Karamalikov “realiza ações destinadas a prejudicar a soberania, a integridade e a inviolabilidade territorial” da Ucrânia, “mudando para o lado do país agressor, a Federação Russa, durante a lei marcial, e auxiliando os seus representantes em atividades subversivas contra a Ucrânia.”

O advogado de Karamalikov, Mikhail Velichko, nega veementemente as acusações e diz que Karamalikov deve ser elogiado por ter permanecido no seu posto e tentado manter a ordem na cidade, nos dias caóticos após a invasão.

“Todas as forças de segurança e a administração regional foram retiradas antecipadamente. Kherson foi abandonada”, disse Velichko. “Isso não só levou à ausência de representantes ucranianos no centro regional, mas também colocou em risco a segurança dos moradores de Kherson, que foram deixados à sua própria sorte.”

“Os civis não conseguem resistir à força armada bruta”, disse Velichko à CNN. “Sim, muitos colaboram. E muitos simplesmente recusam e esperam que Kherson seja libertada. Muitos professores, por exemplo, recusaram-se a trabalhar. O presidente da câmara recusou-se a trabalhar.”

Quase dois meses depois, Karamalikov foi preso depois de entrar em território controlado pelos ucranianos, enquanto tirava a sua família de Kherson. Foi detido no prédio dos serviços de segurança em Kryvyi Rih, e Velichko alega que sofreu abusos físicos e torturas. A CNN solicitou às autoridades ucranianas uma resposta a esta alegação.

Karamalikov ainda está detido e foi acusado de fornecer informações confidenciais às forças de ocupação, como dados pessoais de agentes da polícia, políticos e ativistas de Kherson.

Velichko diz que isso é ridículo. “O gabinete de registo e recrutamento militar tinha listas completas: com endereços, com apelidos, com telefones e os cargos das pessoas. Listas de todos os funcionários da defesa territorial da região de Kherson. Há listas de militares, bem como de civis. Estava tudo à disposição”, disse ele.

Os procuradores também alegam que Karamalikov ajudou na retirada de militares russos feridos e ajudou-os a encontrar comida e auxílio.

Soldados do exército russo ao lado dos seus camiões durante uma manifestação contra a ocupação russa na Praça Svobody (Liberdade) em Kherson, a 7 de março de 2022

A Guarda Municipal

A 25 de fevereiro, um dia depois de as tropas russas cruzarem a fronteira, Karamalikov publicou no Facebook um apelo por voluntários para uma Guarda Municipal que mantivesse a ordem e evitasse as pilhagens, além de organizar ajuda humanitária.

Um morador, que pediu para não ser identificado, disse à CNN: “Eles defendiam a cidade dos saqueadores. Todos os dias apanhavam alguém.”

Na verdade, o presidente da câmara de Kherson, Igor Kolykhaiev, que também ficou para trás, disse a 20 de março: “Não há polícia, procuradora nem sistema judicial na cidade… Há saqueadores na cidade, há tentativas para combatê-los. A Guarda Municipal protege Kherson 24 horas por dia contra as pilhagens.”

O próprio Karamalikov publicou no Facebook: “A Guarda Municipal de Kherson  é a única autoridade de poder na cidade, atualmente. Tarefas: patrulhar as ruas da cidade, combater os saqueadores, o comércio ilegal, a violência de rua e a violência doméstica.”

Velichko diz que o seu cliente teve de lidar, inevitavelmente, com as novas autoridades. Um dos telefonemas de Karamalikov, intercetado pelos serviços de segurança ucranianos, ilustrava a sua estranha posição. Os voluntários detiveram um desertor russo, segundo o seu advogado. Detê-lo enquanto Kherson estava sob ocupação poderia ter resultado numa dura retaliação, portanto, Karamalikov decidiu entregá-lo de volta e estabeleceu contacto com as forças russas.

Rejeitando as alegações de que mantinha boas relações com os russos, um assistente disse que o edifício de que Karamalikov era proprietário, na cidade de Kherson, foi revistado pelas forças russas a 24 de março. Duas semanas depois, canais pró-russos do Telegram alegaram que a “Guarda Municipal” de Kherson estava envolvida em pilhagens e acusaram Kolykhaiev e Karamalikov de encobrirem as extorsões.

Karamalikov decidiu retirar a sua família de Kherson. Quando o fez, a 14 de abril, foi detido pela polícia ucraniana num posto de controlo.

Segundo documentos analisados ​​pela CNN, o caso contra Karamalikov baseia-se em grande parte no relato de um alto funcionário dos serviços de segurança que deixou Kherson antes da chegada dos russos e que foi posteriormente demitido por decreto presidencial.

Algumas autoridades regionais dizem que receberam pouca orientação de Kiev sobre como lidar com a ocupação. O presidente da câmara da cidade de Kherson, Ihor Kolykhaev, disse: “Continuamos a trabalhar remotamente com os especialistas e os vereadores da Câmara Municipal e ainda estamos à espera de uma resposta do gabinete do Presidente.” Kolykhaev ainda está na região, mas foi afastado do cargo.

Traidor ou herói?

Marina Peschanenko, que conhece bem Karamalikov, acredita que ele foi acusado injustamente.

“O Ilya e o presidente da câmara Ihor Kolykhaiev fizeram de tudo para garantir que a cidade continuasse a funcionar. E isso sem o apoio do governo de Kiev”, disse.

Em momentos de tão grande desespero, disse ela, há poucas opções boas. “Aja a seu critério, escolha as soluções que considera as melhores para a cidade. E, nesta situação extrema, qualquer decisão é correta”.

Petro Andrushenko, conselheiro do presidente da câmara de Mariupol, ecoa esse pensamento. “É importante lembrar que trabalhar para os ocupantes na esfera humanitária não é uma colaboração, na sua essência”, disse ele no mês passado, logo depois de a autodeclarada República Popular de Donetsk, separatista, ter assumido a administração da cidade. “Haverá retaliação, mas apenas para os verdadeiros colaboradores.”

Mas não se sabe se os serviços de segurança e os procuradores verão a situação da mesma forma, e isso preocupa alguns que estão a lutar para fornecer serviços essenciais em áreas ocupadas pela Rússia. A CNN conversou com um alto representante de uma rede de farmácias nacional em Melitopol, também no sul, que colaborou com os russos. “Precisamos de fechar todas as farmácias e fugir?”, perguntou essa pessoa à CNN. “Deixar os moradores, na ocupação, sem atendimento médico e sem medicamentos? Que solução nos oferece o governo?”

Esta pessoa pediu para não ser identificada para sua própria segurança, mas acrescentou: “Há falta de medicamentos na cidade, mas o encerramento da rede de farmácias levará a que haja ainda menos medicamentos. Não há uma decisão certa, qualquer escolha será má. Se ficarmos, somos colaboradores. Se partirmos, abandonamos os cidadãos e deixamo-los sem assistência médica.”

Entre outras profissões afetadas estão os professores das áreas ocupadas. A ministra-adjunta da Justiça, Valeria Kolomiets, disse à agência de notícias Ukrinform que “os educadores são responsáveis ​​pelas suas ações - e se começarem a fazer propaganda em instituições educacionais, dizendo, por exemplo, que não há ocupação, estão a violar a lei.”

Em Kherson, os professores foram colocados sob grande pressão para ensinar um novo currículo “russo”. Alguns foram ameaçados em abril, segundo ativistas locais, com uma mensagem contundente: “Ou nos dão as chaves e os documentos ou vamos mandar-vos ‘descansar’ na cave.”

Outros foram enviados para a Crimeia, ocupada pelos russos, para aprenderem o currículo russo, segundo afirmam as autoridades ucranianas.

Também há evidências em Kherson de que os detidos foram obrigados a assinar uma “condenação do regime ucraniano” e a solicitar um passaporte russo, segundo afirmou um responsável de Kherson, Serhii Khlan, bem como pessoas que conversaram com a CNN depois de fugirem da região.

Estes exemplos mostram que, muitas vezes, é difícil distinguir entre quem está a colaborar ativamente e quem está a tentar navegar numa existência arriscada e imprevisível.

A primeira-ministra adjunta Iryna Vereshchuk reconhece o dilema, mas o governo não cede. “Não aceitem passaportes russos”, disse ela no final do mês passado. “Sei que pode não ser fácil, mas a longo prazo, a cidadania russa trará mais problemas do que benefícios.”

Em Kryvih Rih, um dos mais importantes julgamentos por colaboração - o do vereador de Kherson, Karamalikov - deve começar nos próximos dias.

Velichko, o seu advogado, tem a certeza de que o seu cliente será ilibado, apesar das várias acusações contra ele.

“Traidor? Ou herói da Ucrânia?” pergunta ele. “Para mim enquanto seu advogado, e para muitos moradores preocupados de Kherson, a resposta é óbvia: Ilya Karamalikov é um herói.”

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