opinião
Correspondente Médica CNN Portugal

Platão, Kusturica e a guerra na Ucrânia

8 mai 2022, 19:55

Naquela que muitos consideram ser a sua obra-prima – Underground ou, em Português, Era uma vez um país – o realizador e músico sérvio Emir Kusturica leva-nos numa viagem entre a aparente comédia e a assumida alucinação, ambas no limite do excessivo, sujeitando o espectador a um masoquismo consentido. Em jeito de sinopse, um grupo de pessoas abriga-se dos bombardeamentos da II Grande Guerra num subterrâneo em Belgrado, começando a fabricar armas e tendo como único ponto de contacto com o exterior o traficante de armas que, propositadamente, não lhes revela quando a guerra termina, mantendo a produção e o tráfico das armas na cave. A densidade psicológica das personagens e, de resto, toda a mise-en-scène são brilhantes, mas por ora não nos iremos deter nestas. Toda a trama é, na verdade, uma alegoria, sendo incontornável ligá-la à Alegoria da Caverna, n’A República de Platão. Nesta, é apresentada uma caverna onde estão homens aprisionados; por detrás destes, existe fogo e, entre os homens e o fogo, corre um muro baixo por onde passam outros homens com objectos que elevam acima do muro e cujas sombras se projectam no fundo da caverna. Estas sombras constituem, para os prisioneiros, a sua única realidade. Um dos homens liberta-se e consegue contemplar o exterior e a luz. Na caverna, deixa a realidade aparente e, no exterior, encontra a realidade verdadeira.

A Rússia – melhor dizendo, os russos – estão na caverna, seja na de Platão, na de Kusturica ou mesmo na de Saramago, que também prestou na sua obra ode a este mito. O que pode mudar o curso da guerra é a unidade destes dois mundos, destas duas realidades, isto é, o que fará com a nova informação o homem que sai, vê o exterior e volta à caverna. Mesmo concedendo que a propaganda existe de ambos os lados, esta bipolarização não muda, conquanto há um invadido e há um invasor inequivocamente identificados.

Não obstante, para os civis que têm sido alvo dos deliberados ataques que o mundo tem testemunhado, reconhecido de modo independente, estas considerações filosóficas nada aproveitam. Com efeito, a cada hospital destruído, a cada criança que jaz morta, a cada mulher violada, a cada homem torturado… é por nós que os sinos dobram.

(Este texto não está escrito ao abrigo do novo artigo ortográfico)

Opinião

Mais Opinião

Patrocinados