"Putin prepara-se para aparecer como um salvador". A Transnístria é um "barril de pólvora" à espera de explodir

28 fev, 22:19
Transnístria (Getty Images)

Trocas de acusações aos mais altos níveis e um pedido de ajuda para impedir "um genocídio". A Transnístria é uma armadilha do Kremlin com mais de 30 anos que arrisca abrir "uma nova frente" para o Ocidente

O líder do governo pró-russo da região separatista da Transnístria, na Moldova, enviou um pedido de ajuda ao Kremlin para que a Rússia proteja a região do governo da Moldova, que acusa de estar a tentar transformar a região “num gueto” ao desencadear “uma guerra económica”. Os especialistas alertam que esta situação corre o risco de ser o motivo que Vladimir Putin precisa para se posicionar para os cidadãos do seu país “como salvador” dos russos noutras regiões, como fez em Donetsk e Lugansk.

“Vladimir Putin vai querer aparecer como um salvador, aquele que impede o genocídio dos russos. Uma coisa seria decretar a anexação, outra coisa é aparecer como alguém que abre os braços, como um protetor. É isso que o Kremlin se prepara para fazer”, considera o professor José Filipe Pinto, especialista em Relações Internacionais.

E esta realidade pode não estar tão distante quanto se pode pensar. Vadim Krasnoselky, presidente da região, fala numa “política de genocídio a ser aplicada” contra os seus cidadãos. Na resposta oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, a população da Transnístria é descrita por Moscovo como “os nossos compatriotas”, num comunicado que refere que os seus interesses são “uma das prioridades” russas. No entanto, o Kremlin não especifica que medidas serão tomadas para “proteger a população da Transnístria”.

“A Transnístria está envolvida por países inimigos e parece existir aqui a intenção de criar outro foco de tensão ou uma nova frente no conflito. No entanto, não me parece que os russos tenham a capacidade ou o interesse de intervir na Moldova. Para o fazer, teriam de passar em território ucraniano”, refere o major-general Agostinho Costa.

A Transnístria há muito que é alimentada pela sua produção industrial e a economia depende fortemente das ajudas russas. Um grupo empresarial chamado Sheriff é quase onipresente, sendo dono de muitas das fábricas, supermercados e postos de combustível, e dando nome ao clube de futebol da região, o FC Sheriff, que joga na liga nacional da Moldova e que recentemente conquistou uma famosa vitória na Liga dos Campeões sobre o Real Madrid.

Espremida entre o território da Ucrânia e da Moldova, o estreito território que forma a autoproclamada república é praticamente um enclave russo. Desde o início da invasão russa da Ucrânia que Kiev fechou fronteiras e observou com particular atenção as movimentações em Tiraspol. O fecho da fronteira levou a uma queda do comércio em 25% na Transnístria. Essa decisão tornou a Moldova a única porta de entrada e de saída para as pessoas desta região.

Localização da Transnístria no mapa europeu (CNN)

Mas, recentemente, o governo pró-Ocidente da Modolva decidiu impor uma série de impostos a Tiraspol que podem custar 10% de toda a produção económica da região. Para piorar a situação da região, apesar da Transnístria receber gás natural russo de graça através de um gasoduto que atravessa a Ucrânia, o acordo está prestes a expirar em dezembro e não há sinais de que esteja prestes a ser renovado.

“Este pedido de ajuda serve para que o governo da Transnístria se coloque numa posição de vítima do Ocidente. Pode servir como argumento para que a Rússia avance na parte ocidental. É um barril de pólvora”, sugere o major-general Agostinho Costa.

O vice-primeiro-ministro da Moldova, Oleg Serebrian, classificou o pedido da liderança da Transnístria como mera “propaganda”. Mensagem semelhante foi dada pelo porta-voz do executivo, que disse não existir “perigo de escalada e de desestabilização da situação” na região. Atualmente, estima-se que mais de 1.500 soldados russos encontram-se na região, que é conhecida por ter alguns dos maiores paióis de munições da Europa.

Apesar de tudo, Vladimir Putin prepara-se para o seu discurso anual já na próxima quinta-feira, numa altura em que as eleições de 15 a 17 de março se aproximam. Os especialistas sublinham que o pedido de ajuda da Transnístria, região que tem uma maioria étnica russa, assenta nos mesmos pressupostos que levaram à ação de Moscovo contra as regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, no leste da Ucrânia.

“Durante a União Soviética, Moscovo espalhou russos por todas as Repúblicas. Agora, utiliza-o como instrumento geopolítico. Há muito que a Rússia pretende incorporar a Transnístria no seu território. A estratégia é muito semelhante há que foi usada no Donbass”, explica José Filipe Pinto.

O colapso da União Soviética em 1991 resultou no aparecimento de algumas “zonas de conflito” na Europa de leste - regiões muitas vezes instáveis ​​onde as lealdades têm sido ferozmente disputadas desde a criação dos 15 estados pós-soviéticos. Essas regiões incluem os estados separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, dentro do território da Geórgia, e a faixa de terra ao longo da fronteira da Moldova com a Ucrânia, conhecida como Transnístria.

O território - um enclave de 4.163 quilómetros quadrados (pouco mais que o dobro do distrito de Lisboa) na margem leste do rio Dniester - foi o local de uma base militar russo durante os últimos anos da Guerra Fria. Autodeclarou-se uma república soviética em 1990, opondo-se a qualquer tentativa da Moldova de se tornar um estado independente ou de se fundir com a Roménia.

Quando a Moldova se tornou independente, no ano seguinte, a Rússia rapidamente interveio como uma alegada “força de manutenção da paz” na Transnístria, enviando tropas para apoiar os separatistas pró-Moscovo. Seguiu-se uma guerra com as forças da Moldova; o conflito terminou num impasse em 1992. A Transnístria não foi reconhecida internacionalmente, nem mesmo pela Rússia, mas as forças da Moldova deixaram-na como um estado separatista de facto. Esse impasse deixou o território e os seus estimados 500 mil habitantes presos num limbo.

Desde então, a Transnístria recebeu milhares de soldados russos - atualmente estimados em 1500 - e desenvolveu a reputação de ser uma terra perdida no tempo, um portal soviético dentro de uma jovem democracia moldava em transição.

O vice-secretário-geral da NATO, Mircea Geoana, disse no início desta semana que a NATO apoiaria Chisinau se o Kremlin decidisse anexar a Transnístria. A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, disse que estes comentários eram apenas especulação e acusou a aliança militar de “tentar moldar” a Transnístria para que esta se torne “uma segunda Ucrânia”.

“Podemos ter surpresas nos próximos tempos. Qualquer coisa de grave se está a desenrolar para ter sido utilizado o argumento de que está a acontecer um genocídio. No entanto, não devemos excluir que isto se possa tratar de um assunto para consumo interno russo”, frisa Agostinho Costa.

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