Poético, duro e sombriamente cómico. O diário de guerra de uma escritora ucraniana (opinião)

CNN , Olena Stiazhkina
1 mai 2022, 10:00
Carros queimados no estacionamento do centro comercial Retroville, em Kiev, a 3 de abril

Nota do editor: Olena Stiazhkina é uma escritora ucraniana e ex-professora de História na Universidade Nacional de Donetsk. É autora de "Cecil the Lion's Death Made Sense" e "Zero Point Ukraine". As suas palavras foram traduzidas por Uilleam Blacker, professor associado da University College London's School of Slavonic and East European Studies. Os pontos de vista expressos neste comentário são dos próprios

Em Mariupol, uma mulher arrasta o corpo do marido morto para aquilo que resta do seu carro baleado. Em Kiev, as estátuas de filósofos antigos espreitam por trás de andaimes protetores. Noutros locais, pais escrevem nomes e números de telefone nas costas dos filhos, caso aconteça o impensável.

Desde a invasão da Rússia, a 24 de fevereiro, a escritora e historiadora ucraniana Olena Stiazhkina tem registado estas imagens do quotidiano - algumas testemunhadas, outras retiradas de notícias, umas quantas a roçar a fronteira entre a imaginação e a realidade - num diário de guerra.

Não é a primeira vez que Stiazhkina enfrenta uma guerra à sua porta, tendo já fugido dos combates em Donetsk, em 2014. Agora, a viver com a sua jovem família em Kiev, a autora recusa-se a fugir de casa uma segunda vez, ficando na capital para se voluntariar junto da defesa civil.

Pouco mais de dois meses após a invasão do presidente russo Vladimir Putin, Stiazhkina partilha aqui uma seleção de entradas do seu diário.

DIA 6 DA GUERRA

1 de março. Uma amiga em Mariupol conta-me esta história.

A mãe de uma menina de Mariupol, que foi morta por um rocket russo, percebeu tudo o que se tinha passado imediatamente. O médico tentou ressuscitá-la, à menina de Mariupol, na esperança de um milagre.

Sem sucesso, o médico gritou mais alto do que todas as sirenes de ataques aéreos do mundo juntas. O grito foi aterrador: "Maldito! Maldito!". A mãe calou-se para sempre.

As janelas do edifício da Administração Regional do Estado de Kharkiv ficaram todas estilhaçadas depois de um míssil ter caído perto da Praça da Liberdade, a 1 de março

Kharkiv. 08:00. Praça da Liberdade. Uma das maiores da Europa. Um míssil foi disparado diretamente contra esta praça. Dezenas de civis foram mortos.

A Rússia está a vingar-se da Ucrânia pela nossa liberdade, pela Europa e pelo cântico que os adeptos do futebol de Kharkiv inventaram em 2014, quando Moscovo invadiu pela primeira vez a Ucrânia: "Putin é um parvalhão de m**** La la la la la la la".

DIA 8

3 de março. A assistir a esta conversa entre a família dos meus amigos.

O pequeno Serhii agacha-se e rosna ao seu cão. A mãe dele pergunta: "Por que é que fizeste isso?"

"Ele é um blindado russo, e eu estou a detê-lo."

"O nosso cão é ucraniano. Pede desculpa e escolhe outro dos teus brinquedos e talvez o possas nomear como Putin, ok?"

Poucos minutos depois, a avó aparece no quarto: "Serhii! Tira o sapo da boca!"

"Não é um sapo, é o Putin, e eu estou a comê-lo!"

"Ao menos está limpo"

"Vá lá, avó, achas mesmo que o Putin pode ser limpo?"

DIA 15

10 de março. Simbolismo russo.

As Matrioscas - típicas bonecas russas - são um dos símbolos mais apropriados para a Rússia. Um vazio dentro de outro. Vazio atrás de vazio. A última figura é uma minúscula boneca de madeira, dentro da qual, em vez de vazio, há uma bala letal.

DIA 22

17 de março. Outra história terrível de Mariupol, que me foi contada por um amigo.

Um homem caminha entre os destroços da cidade portuária de Mariupol, no dia 22 de abril

Uma mulher está a deixar Mariupol, que foi bombardeada durante três semanas, através de um corredor humanitário há muito esperado. Tem o filho com ela. E o corpo do marido. Esta mulher conseguiu milagrosamente manter o carro a funcionar. Está cheio de mossas, buracos de balas e estilhaços, mas ainda trabalha.

A mulher coloca a criança no banco da frente e tenta colocar o corpo do marido nos de trás. As pessoas à volta pedem-lhe para parar e deixar o corpo para trás. Ela grita com eles, chora, liberta-se de mãos prestativas e tenta em vão empurrar o corpo rígido e morto do marido para dentro do carro.

Acalma-se. Toda a gente pensa que finalmente desistiu. Mas não. Ela põe os braços à volta do corpo, beija-o, pede desculpa e, depois, arrasta-o para a parte de trás do carro e coloca-o no porta-bagagens.

"Não se aproximem de mim! Não se aproximem de mim! Ele é tudo o que tenho... Não vou desistir".

DIA 25

20 de março. Uma notícia.

De uma conversa telefónica intercetada entre um invasor russo e a sua mãe russa:

"Mãe, matei um menino"

"Bem, mas o teu lado também está a sofrer baixas, não está?"

Não estão a sofrer perdas. Tudo foi perdido e morto há muito tempo – mães, pais, avós. Agora estão a enterrar os filhos na nossa terra. E não há mais nada a dizer.

DIA 33

28 de março. Imagens nas redes sociais.

O Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky dirige-se ao parlamento espanhol no dia 5 de abril. "Imaginem só, as mães ucranianas estão a escrever a caneta, nas costas dos filhos, o nome da criança e o número de telefone, para que, caso o invasor mate os pais, a criança tenha a oportunidade de se salvar", disse

As pessoas escrevem os nomes, as datas de nascimento e os números de telefone nas costas dos filhos. Em inglês, russo e ucraniano. Aqueles que já estão sentados em caves e nada mais esperam do que a sobrevivência dos filhos, escrevem diretamente nos corpos deles.

Aqueles que se estão a preparar para se deslocarem para a cave, escrevem a informação num pedaço de papel, que colocam numa carteira de plástico e prendem ao colarinho do casaco ou do blusão da criança.

DIA 43

7 de abril. Outra notícia.

Nas áreas que foram libertadas e limpas de minas, as pessoas começaram a plantar e a semear as suas colheitas. E a trabalhar nos seus jardins. A terra está a respirar. Quer dar à luz. Pode dar à luz.

Nove mulheres violadas por ocupantes russos estão grávidas. Mal respiram, não comem, não falam. Não querem dar à luz. Não podem dar à luz. Não podem ser limpas de minas.

DIA 46

10 de abril. Voluntariado em Bucha, depois da expulsão dos russos.

Corpos numa rua em Bucha, nos arredores de Kiev, depois de as forças russas se terem retirado das áreas do norte ao redor da capital, a 2 de abril

Um pequeno cemitério ao lado da entrada de um prédio residencial. Nalgumas das sepulturas há cruzes feitas de pedaços de cadeiras partidas. Noutras, as cruzes são formadas com pedras, lajes do pavimento ou fragmentos de paredes danificadas, caídos no chão. Assim está Bucha, Borodianka, Irpin. Alguns destes cemitérios são maiores, alguns mais pequenos, com apenas duas ou três sepulturas.

Ao lado da entrada está um idoso sentado. Fuma, olha para o sol, semicerra os olhos. "Não me fizeram nem um arranhão, mas eles estão aqui". 

"Vamos enterrá-los de novo. Disso tenho a certeza..."

"Não", diz ele, "Não o permitirei... Quando eu morrer, podem levá-los a todos. Olha, ali está o Ihor do terceiro andar, a mulher dele está aqui, ela era problemática, Deus me perdoe. E aqui está a minha mulher. Quarenta anos juntos. Não há nenhuma cruz atrás dela porque ele era judia. O diretor da escola, Stepan. Os outros não sei onde estão".

Fuma. Olha para o sol. Semicerra os olhos, porque as lágrimas começam a surgir.

"Eles cuidam de mim. E eu cuido deles... Não vou desistir deles!"

DIA 50

14 de abril. Caminhar por uma cidade mudada.

O 50.º dia de fevereiro. Quando era criança, diziam-me que fevereiro era o mês mais curto do ano.

Monumento em homenagem aos soldados soviéticos da II Guerra Mundial danificado por bombardeamentos, na área de Kiev, a 6 de abril

Quanto aos monumentos... O monumento do filósofo barroco ucraniano Hryhorii Skovoroda, no distrito de Podil, em Kiev, sofreu uma valente remodelação. Tem sacos enrolados à sua volta e está coberto com tábuas de madeira planas. Entre as tábuas há uma abertura. Skovoroda espreita pela abertura e parece estar prestes a proferir uma versão modificada da sua famosa frase: "O mundo perseguiu-me, mas nunca me apanhou. E tu também não o farás."

Fica-se com a sensação de que, durante o recolher obrigatório, Skovoroda saltou do pedestal e deu um passeio pela cidade. Porque, todas as manhãs, ele tem uma expressão atrevida e malandra no rosto.

O Arcanjo Miguel em Borodianka sobreviveu. Só uma bala atingiu o monumento, na cabeça. A mão esquerda ainda segura a espada, mas a cruz caiu da mão direita. Onde não há cruz, não há perdão.

Uma composição escultórica: um menino e uma menina a ler um livro, em Kharkiv. Por enquanto, ainda estão inteiros. Mas ambas as figuras têm vários buracos provocados por balas. Não há sangue. São feitas de pedra. O menino e a menina são alvejados como crivos. Mas estão a ler o livro, e agora os raios de sol passam através deles. Como as almas das crianças que os Russos mataram.

DIA 53

17 de abril. O que os meus olhos viram.

Agora, temos a oportunidade de perceber em primeira-mão que o [filósofo alemão] Theodor Adorno tinha razão quando disse que “escrever poesia depois de Auschwitz é bárbaro". Não sei se depois do evento a que chamamos "Bucha" - mas que na verdade tem dezenas de outros nomes - conseguirei escrever alguma coisa.

Tudo o que escrevi até agora parecem palavras vazias e letras chamuscadas com sem espaço entre elas.

DIA 55

19 de abril. Dos livros de História.

Nunca teríamos conseguido aguentar se não fosse a Polónia, a Lituânia, a Grã-Bretanha, os EUA, a Eslovénia, a República Checa... se não fosse toda a Europa, Austrália, Japão. Se não fossem quase todos. Estaremos eternamente gratos.

No entanto, as palavras de Elie Wiesel [sobrevivente do Holocausto] estarão sempre com os habitantes de Bucha, Irpin, Mariupol, Izium... Todas as cidades ucranianas que o exército russo transformou praticamente em campos de morte.

Daqui a muitos anos, após a nossa vitória e depois de os russos terem sido julgados em tribunal, um dos defensores de Mariupol receberá um prémio internacional honorário. E no seu discurso de aceitação citará Wiesel, palavra por palavra (mais ou menos): "Quando o Terceiro Exército Americano libertou Buchenwald, não houve alegria no nosso coração: apenas dor. Não cantámos, não festejámos. Apenas tivemos forças para recitar o Kaddish."

E tal como Wiesel, eles poderão perguntar ao mundo: porquê tão tarde?

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