"Traria um problema enorme ao mundo". Há um antigo aliado que pode empurrar o Ocidente para uma guerra no Médio Oriente (mas há mais ameaças)

30 out 2023, 07:30
Líderes ocidentais reunidos no G7, no Japão (Franck Robichon/AP)

É o grande medo dos Estados Unidos e aquilo que levou Joe Biden e Antony Blinken a visitar vários países. Mas saíram de lá sem garantias e com uma sombra a pairar no ar

Em menos de um mês de guerra no Médio Oriente aconteceu às tropas norte-americanas o que não aconteceu em quase dois anos de conflito entre Ucrânia e Rússia. Um navio dos Estados Unidos foi obrigado a disparar projéteis para evitar um ataque a Israel e mais de 20 soldados norte-americanos ficaram feridos após ataques a bases no Iraque e na Síria.

Uma prova clara de que os Estados Unidos têm um envolvimento militar mais direto na guerra declarada por Israel contra o Hamas, e que todos os dias ameaça alastrar-se para um conflito bem para lá do local. Evitar esse alastramento foi o objetivo das visitas do secretário de Estado e do presidente norte-americanos à região, sendo que Antony Blinken passou mesmo por vários Estados árabes, na tentativa de mostrar compreensão pelo outro lado.

Mas, apesar de a intervenção norte-americana ter começado por resfriar as intenções israelitas, é do lado de lá do Estreito de Ormuz que reside o maior inimigo do Ocidente, que é também a grande ameaça para um escalar definitivo dos combates.

O Irão: mais do que Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica ou qualquer outro grupo de índole terrorista, os Estados Unidos olham para o regime dos aiatolas como o grande inimigo e maior perigo.

Para o major-general Isidro de Morais Pereira é esse o fator decisivo para uma intervenção mais ou menos musculada dos Estados Unidos na região. Foi com essa intenção que para lá foram destacados os dois maiores porta-aviões do mundo (o USS Gerald Ford e o USS Dwight Eisenhower), com um objetivo de dissuadir o Irão a intervir diretamente no conflito. Isto porque, mesmo que indiretamente, Teerão tem um papel claro na guerra, nem que seja pelo financiamento e pelas estreitas relações que mantém com Hamas ou Hezbollah.

USS Gerald Ford atracado em porto da Turquia (Embaixada dos EUA na Turquia)

“Aquilo que poderá arrastar os Estados Unidos para uma intervenção mais direta na guerra é o Irão atacar diretamente Israel, ou mesmo atacar diretamente as bases norte-americanas. Seria diferente ser mesmo o Irão a fazer esses ataques”, explica à CNN Portugal o militar.

Esse envolvimento direto implicaria que as próprias forças iranianas, o exército de Teerão, realizassem manobras militares ofensivas, ao contrário do que acontece no momento. “O Irão está envolvido, mas não diretamente. Quem está a efetuar os ataques são os proxies [grupos satélite]”, refere Isidro de Morais Pereira, referindo-se aos grupos que militam em “cinco Estados falhados” como a Síria, Iraque, Líbano, Autoridade Nacional Palestiniana e Iémen, onde existem várias fações do Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica, Houthis ou ainda alguns combatentes do Estado Islâmico.

Uma das provas disso são os vários carregamentos de armas que têm chegado a aeroportos destes países, nomeadamente às cidades sírias de Damasco e Alepo, cujas infraestruturas aeronáuticas têm sido constantemente atacadas por Israel, precisamente para evitar o transporte dessas armas.

Paulo Portas vê como grande tarefa da diplomacia norte-americana evitar esse mesmo alargamento de conflito. Na sua rubrica Global, do Jornal Nacional da TVI, o comentador referiu que existem diferentes níveis, consequências e impactos. "O essencial da diplomacia americana é tentar que o conflito fique no primeiro cenário, que é confinar a guerra ao território de Gaza, e não a deixar escalar, mesmo dentro de outros territórios palestinianos ou de Israel".

É aqui o primeiro cenário, de um conflito local, "mas há riscos" de a situação não ficar por aí. O segundo cenário traçado por Paulo Portas já inclui um envolvimento ativo da Cisjordânia, onde fica Jerusalém, na guerra.

"É na Cisjordânia que estão os colonos mais complicados de Israel, a quem Netanyahu fez concessões impensáveis, porque o Estado não privatiza a segurança. É o Estado que a exerce e que tem esse dever. Não se pode dizer aos colonos 'podem fazer colonatos e tratar da vossa segurança', porque isso pode correr muito mal e muitas vezes tem corrido mal", refere.

Paulo Portas lembra mesmo as várias ameaças feitas pelo Irão, incluindo aos Estados Unidos, a quem o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros prometeu, em plena Assembleia-Geral das Nações Unidas, "fazer sofrer" caso Israel não termine os ataques a Gaza.

"Se escalar para uma intervenção, e alguma retórica iraniana aponta para isso, as ameaças de que o Irão pode intervir, isso traria ao mundo um enorme problema, maior do que aquele que já tem", reitera.

Bombardeiros e caças. Como seria a reação norte-americana

Os Estados Unidos foram claros: uma entrada direta do Irão no conflito significa uma entrada direta dos norte-americanos na mesma guerra. Se isso acontecer num futuro próximo, nunca estará em causa uma transferência de tropas para o terreno, até porque os Estados Unidos têm pouco mais de dois mil fuzileiros posicionados na região.

Bem diferente é a maquinaria instalada pelos norte-americanos: dois dos maiores porta-aviões do mundo, bombardeiros preparados para arrancar do Reino Unido e uma esquadrilha inteira de caças Thunderbolt A10.

“Os Estados Unidos fizeram um aviso claro de que qualquer intervenção do Irão levaria a uma intervenção norte-americana. De momento, o primeiro alvo seria o complexo industrial militar do Irão, que seria atacado por mísseis de cruzeiro e pela aviação presente nos porta-aviões”, sublinha Isidro de Morais Pereira.

Se isso não for suficiente para repelir o Irão, diz Isidro de Morais Pereira, os Estados Unidos teriam de passar a uma intervenção com um "dispositivo mais robusto", colocando-se a hipótese da entrada de tropas norte-americanas em solo iraniano.

Porquê o medo do Irão?

A tensão entre Irão e Estados Unidos não é de agora. Bem pelo contrário. Até 1979 pró-Ocidental, o Irão deu uma volta de 180 graus com a Revolução Iraniana, que destituiu o então xá da Pérsia, que até se refugiou precisamente nos Estados Unidos, para dar lugar a um regime teocrático e claramente virado contra o Ocidente.

Desde então que, como Estado, o Irão é o grande adversário dos Estados Unidos naquela região, numa ameaça que só aumentou com a corrida ao urânio e a constante dúvida sobre o arsenal nuclear iraniano – até ao momento não se conhecem armas nucleares desenvolvidas pelo país.

Mesmo sem arsenal nuclear, Isidro de Morais Pereira lembra armas como os mísseis Fateh ou Zolfaghar, ambos com capacidade de alcançar Israel, transportando cargas de explosivos consideráveis.

Há ainda a considerar mísseis como os Fattah, colocados a uso este ano. É o primeiro míssil hipersónico desenvolvido pela Guarda da Revolucionária do Irão, que anunciou esta arma como sendo capaz de derrotar todos os sistemas defensivos, incluindo a popular “Cúpula de Ferro” de Israel, sendo capaz de viajar, segundo o exército iraniano, a uma velocidade 15 vezes superior à do som.

Míssil iraniano Fattah, na apresentação da arma, em janeiro de 2023 (Hossein Zohrevand/AP)

E a utilização destas armas será, numa hipótese de envolvimento iraniano na guerra, muito mais provável do que uma incursão terrestre. “Não me parece que se queiram colocar numa posição de invadir Israel. É muito mais fácil fazer a guerra ao criar um arco de fogo, por forma a colocar Israel com várias ameaças simultâneas”, refere Isidro de Morais Pereira, dizendo que a utilização dessas armas, mas, sobretudo, a instrumentalização de grupos como o Hamas parecem ser os cenários mais prováveis.

Além disto existem ainda os famosos drones iranianos, os Shahed, que tanto jeito têm dado à Rússia na Ucrânia.

“Os Estados Unidos temem o Irão porque o veem como principal patrocinador do terrorismo e, neste momento, tem uma capacidade de combate considerável. Tem muitos mísseis, muitos drones e muitos homens”, conclui Isidro de Morais Pereira, dizendo que um ataque iraniano “vai ter uma resposta à altura” dos Estados Unidos.

E quando se fala em muitos homens fala-se no sétimo melhor exército do mundo em termos de pessoal militar no ativo, de acordo com o website especializado Global Fire Power. São mais de 575 mil os iranianos nessa condição, sendo que os reservistas e os paramilitares existentes no país aumentam o poder para mais de um milhão de soldados.

Números bem diferentes de Israel, que, apesar de desenvolvido tecnologicamente, é um país com muito menos poder de fogo, até porque tem muito menos população. De resto, à proporção de habitantes até é dos exércitos mais bem-preparados, mas não chega para competir diretamente com uma força como o Irão. Com efeito, Israel tem apenas o 29.º exército do mundo em termos de militares no ativo, num total de 173 mil soldados. A estes acrescem mais de 470 mil reservistas e uns milhares de paramilitares. No fim do dia, Israel tem cerca de metade dos homens do Irão.

De resto, e à exceção da Força Aérea e da tecnologia, Israel perde para o Irão em toda a linha, o que se justifica pelas diferenças de população e de dimensão de ambos os países.

Comparação dos exércitos de Israel e Irão
Equipamento Israel Irão
Caças 241 196
Tanques 2.200 4.071
Veículos 56.290 69.685
Lançadores múltiplos de foguetes 300 1.085
Submarinos 6 19

A contribuir para o receio norte-americano está também a história recente, depois de milhares de soldados norte-americanos terem morrido no Iraque e no Afeganistão, em guerras que acabaram por não ter resultados práticos, uma vez que os dois países voltaram a ficar politicamente conturbados depois da saída norte-americana.

Uma ameaça mais imediata

Se a intervenção direta do Irão parece estar longe de poder acontecer, mais provável é um alargamento da guerra a nível territorial. Desde o ataque de 7 de outubro do Hamas que o Hezbollah avançou com alguns confrontos, ainda que quase sempre localizados.

Este grupo radical, atualmente sediado no Líbano, pode fazer a guerra escalar para o território daquele país, mesmo que o Estado libanês se apresente como sendo mais neutro em relação ao conflito do que países como o Irão, o Iémen ou a Síria.

O major-general Isidro de Morais Pereira lembra que Hezbollah e Líbano não podem ser confundidos, sendo que será sempre o grupo islâmico a ser arrastado para a guerra num primeiro momento. "Antes do Líbano temos o Hezbollah, mas o conflito pode alastrar para o Líbano, e Israel está a preparar-se para isso", diz o militar, admitindo a abertura de uma frente de guerra totalmente oposta à Faixa de Gaza, sendo que Israel ficaria com duas frentes ativas no Sul e no norte do país.

Mas há outra ameaça relacionada com o Hezbollah, a sua força. "Ao contrário do Hamas, o Hezbollah é substancialmente mais forte, tem sistemas de defesa antiaéreas, tem mísseis antinavio, tem um arsenal consideravelmente mais forte", acrescenta o major-general.

Para Paulo Portas é no Líbano que resiste o verdadeiro risco. O analista chama-lhe um conflito regional, nesse caso, dizendo que, caso o Líbano entre na guerra, "aí temos um verdadeiro problema global".

"Se a guerra chegar ao Líbano, chega àquele que foi considerado a Suíça do Médio Oriente, e que hoje em dia não tem poder político", acrescenta, lembrando a complicada situação política do país, acompanhando Isidro de Morais Pereira na classificação do país como um Estado "falhado".

E isto porque grande parte é condicionado pelo Hezbollah, um grupo com elevadas ligações ao Irão. E aí entra o tal problema que os norte-americanos mais temem: "Se a guerra chega ao Líbano, chega à Síria, e isso pode levar ao terceiro cenário, que é um conflito quase direto entre Israel e o Irão. É absolutamente necessário evitar o terceiro cenário".

E o resto do Ocidente?

O presidente francês chegou-se à frente com uma proposta que não ainda não se percebeu se reúne o apoio de todos os Estados militarmente relevantes do Ocidente. A partir de Telavive, Emmanuel Macron sugeriu que a coligação internacional criada para combater o Estado Islâmico também tenha o desmantelamento do Hamas como um objetivo, dando força à intenção israelita de "esmagar" aquele grupo.

Mesmo que isso venha a acontecer, o envolvimento nunca deverá passar por exércitos ocidentais estrategicamente colocados em zonas de combate do Médio Oriente, muito menos com o patrocínio da Organização do Tratado Atlântico Norte (NATO), até porque Israel não faz parte da aliança.

"Numa fase inicial só se vão envolver os Estados Unidos", sugere Isidro de Morais Pereira, admitindo que, ao abrigo de acordos bilaterais, outros países se podem envolver diretamente no apoio militar a Israel.

O major-general lembra o que aconteceu no caso da guerra do Iraque, decidida pelos Estados Unidos, mas que contou com o apoio de Austrália e Nova Zelândia, além de Reino Unido, numa coligação ad hoc e feita à margem de tratados internacionais.

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