Atenção: a "pausa humanitária" não é um "cessar-fogo". E mais: está "mal conceptualizada", "é um refúgio ficcional", permite "maleabilidade em sede de tribunal internacional"

2 nov 2023, 21:18
Ataque israelita a Gaza, 2 de novembro de 2023 (Abed Khaled/AP)

Biden quer que Israel faça uma pausa humanitária. E depois de Biden ter dito que o quer, os demais elementos do seu gabinete vieram dizer o mesmo - que os EUA querem uma pausa. Na verdade, os EUA querem o plural: querem pausas. E os EUA não estão sozinhos no pedido. Mas há um problema com o conceito de pausa humanitária: "má conceptualização". Falemos sobre isso - e sobre se, apesar disso, esta eventual pausa (ou pausas) ajuda ou não os civis em Gaza

Então o que é mesmo uma pausa humanitária? Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), uma pausa humanitária é “uma cessação temporária das hostilidades com objetivos puramente humanitários”. “Requer o acordo de todas as partes relevantes, é geralmente implementada por um período definido e numa área geográfica específica, onde as atividades humanitárias serão levadas a cabo”, pode ler-se na definição dada pela instituição.

Uma pausa humanitária difere de um cessar-fogo, como explica à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira. “Uma pausa humanitária é uma pausa temporária nos bombardeamentos e, fundamentalmente, nas ações de bombardeamento sobre os locais e sobre os itinerários a partir dos quais pode ser introduzido na Faixa de Gaza o apoio humanitário - seja água, sejam medicamentos, seja alimentação -, por forma a não interferir temporariamente, em determinados períodos, na distribuição e na chegada desses mesmos abastecimentos às populações. Mas são sempre coisas de curta duração no tempo e limitados em termos de área geográfica”, explica o major-general.

“Um cessar-fogo não presume isso, é o cessar das hostilidades por um tempo mais prolongado.” No caso de uma pausa humanitária, diz Isidro Morais Pereira, “pode haver uma pausa na zona sul da Faixa de Gaza mas os combates continuarem a decorrer na zona norte”.

Tiago André Lopes, comentador da CNN Portugal, diz partilhar da ideia de que as pausas humanitárias são uma forma de “agradar a gregos e a troianos” - isto é, acomodar o direito de Israel à autodefesa sem descurar totalmente a situação humanitária na Faixa de Gaza. “A ideia é que os conflitos parem para entrar ajuda humanitária mas sem parar o conflito no geral. Pode haver conflitos desde que o conflito não perturbe a entrada da ajuda humanitária. É basicamente esta noção”, afirma o especialista em Relações Internacionais, que dá outra razão pela qual Israel pode preferir este mecanismo.

“A pausa humanitária permite ações pontuais e, juridicamente, por estar menos regulada e definida, é mais difícil em sede de tribunal internacional argumentar sobre a sua violação . Por via da sua má conceptualização, permite aos atores maior maleabilidade. A opção pela pausa humanitária é, acima de tudo, um refúgio para se ficcionar um cessar-fogo em que não se cessa o fogo”.

Sendo que a pausa humanitária não implica o total cessar das hostilidades, conseguirá mesmo ter algum impacto benéfico para os civis da Faixa de Gaza? Isidro de Morais Pereira acredita que sim. “Se forem criados períodos em que os camiões que estão junto à entrada de Rafah possam circular e possam chegar à Faixa de Gaza, e a ajuda humanitária possa ser distribuída sem haver bombardeamento ou sem haver interferência, pode minorar o sofrimento das populações”, afirma o major-general.

A sua implementação promete, contudo, ser difícil, já que Telavive manifestou-se ser contra esta proposta. "Israel opõe-se a uma pausa humanitária ou a um cessar-fogo nesta altura”, disse Lior Haiat, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Israel, no dia 27 de outubro, citado pela Reuters.

A CNN Portugal procurou saber o posicionamento das comunidades judaicas em Portugal sobre uma eventual pausa humanitária na Faixa de Gaza, mas não obteve respostas.

Outras complexidades

Complexa também parece ser a adoção de um texto minimamente consensual entre as grandes potências mundiais. No dia 18 de outubro, os Estados Unidos vetaram uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que pedia a realização de pausas humanitárias para entregar ajuda aos cerca de dois milhões de habitantes da Faixa de Gaza, com a justificação de que o texto não reconhecia o direito de Israel à autodefesa.

Por sua vez, no dia 26 de outubro, China e Rússia vetaram uma resolução dos Estados Unidos que apelava a uma pausa humanitária, à proteção dos civis e ao fim do fornecimento de armas ao Hamas e a outros grupos na Faixa de Gaza. "O projeto [de resolução] não reflete os fortes apelos do mundo para um cessar-fogo, para o fim dos combates, e não ajuda a resolver a questão. Neste momento, o cessar-fogo não é apenas um termo diplomático. Significa a vida e a morte de muitos civis", disse o embaixador da China na ONU, Zhang Jun, sobre a razão do veto chinês.

Até agora, uma parte dos líderes ocidentais tem optado por pedir pausas humanitárias em vez de um cessar-fogo imediato e total (uma exceção é, por exemplo, o primeiro-ministro português, António Costa). Mas a opção atual por uma pausa humanitária contrasta com o que sucedeu com alguns altos responsáveis ocidentais aquando do início da invasão russa da Ucrânia. O alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, Josep Borrell, pediu, numa publicação na rede social X no dia 3 de março de 2022, um “cessar-fogo imediato” das hostilidades na Ucrânia, iniciadas pouco mais de uma semana antes. No entanto, com quase um mês de guerra entre Israel e o Hamas, Borrell ainda não pediu explicitamente um cessar-fogo na Faixa de Gaza.

 

Certo é que os EUA querem mesmo pausas: começou por ser um pedido de "pausa" que evoluiu para "pausas". Vamos por partes.

“Penso que precisamos de uma pausa”: foi assim que Joe Biden respondeu a uma rabina da associação Jewish Voice for Peace quando esta o interrompeu durante um evento de campanha, no estado norte-americano do Minnesota, para pedir um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A vontade do presidente foi confirmada esta quinta-feira pelo porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Kirby. E aí "pausa" evoluiu para o plural.

"O que estamos a tentar fazer é explorar a ideia de realizar as pausas que possam ser necessárias para continuar a enviar a ajuda e continuar a trabalhar para retirar as pessoas em segurança, incluindo os reféns", afirmou John Kirby, citado pela Reuters.

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