opinião
Pediatra

Danos da pandemia

11 fev 2022, 17:57

São também, "danos colaterais" da pandemia.

Parece um eufemismo, usar essa expressão perante a gravidade do incidente que foi felizmente evitado.

Independentemente de possíveis perturbações mentais de base, uma adolescência distorcida pode ter servido de caldo de cultura, impelindo um caloiro universitário a engendrar um plano maquiavélico de sangria. Tão cruento, que nos custa acreditar ter sido realmente arquitetado no nosso país, de estilo português suave, à beira mar plantado.

Ainda não digeri, confesso.

Uma coisa, é imaginarmos as possíveis consequências psicológicas mais drásticas dos meses a fio de isolamento social.

Outra, é estarmos prestes a presenciar um massacre de estudantes no nosso país.

Sinto-me especialmente chocada, como pediatra.

Muito antes deste nosso planeta ter sido virado do avesso pelo Covid, já me tinha pronunciado sobre os perigos da exposição a violência na internet, em crianças e adolescentes.

Esta é a geração dos cyberkids, indomável na forma como lida com o mundo virtual, por muito que pais inocentemente julguem conseguir resolver o problema em suas casas, com controlos parentais e proibições fundamentalistas.

O problema implicava, já antes da pandemia, uma abordagem diferente.   

Abordagem teoricamente fácil - um genuíno ovo de colombo, que nunca é demais relembrar:

 - diálogo com os filhos, mais diálogo e mais diálogo.

 - um forte investimento na rede de apoio para a saúde mental de crianças e adolescentes, com maior facilidade de acesso a consultas de psicologia e de pedopsiquiatria, desestigmatizando entre pais, cuidadores e educadores,  de vez,  estas palavras.

Nós, adultos, lamuriamo-nos pelo tempo de liberdade que o Covid nos tirou.

Se nos pusermos por instantes na pele dos adolescentes, se evocarmos a nossa própria adolescência, compreendemos como deve ter sido incomparavelmente mais difícil atravessar o deserto da pandemia nessa idade, em que os amigos são tão importantes, em que se experimenta a liberdade em busca da autonomia, num saudável crescimento, se devidamente acompanhado, para a idade adulta.

À primeira vista, até estiveram bem adaptados a horas desfiadas sem fim em frente aos monitores, fosse em aula, fosse em momentos de lazer, principalmente os adolescentes mais tímidos.

Aprender online até trazia algumas vantagens, entre as aulas petiscava-se mais um pacote de bolachas, e enquanto o professor debitava matéria, muitos miúdos congelavam os écrans e dormiam a sesta.

Vendo mais de perto e à posteriori, como pais, professores e profissionais de saúde, revela-se uma verdadeira epidemia de adolescentes cabisbaixos  e ensimesmados, ou demasiado rebeldes, praticamente sem rédeas. Com um de apetite incontrolável ou sem fome nenhuma.

Meninos com dificuldade na linguagem e tics, meninos com medo da morte, quando a morte lhes é repisada em números diários dos óbitos de infetados. Meninos apáticos.

Sem falar na aprendizagem, global e irreversivelmente atrasada.

Todos somos vítimas da pandemia, mas é a geração futura que esta em causa.

Não vale a pena procurar culpados, nem remexer no que poderia ter sido mais bem feito.

Do principal, ninguém tem culpa.

Vale a pena sim, não ficarmos de braços cruzados, perante a possibilidade de outros adolescentes se sentirem impelidos a concretizar massacres

Vale a pena tentar estancar a hemorragia, com esforço conjunto de todos.

Enquanto se discute onde um determinado partido se vai sentar no parlamento português em rescaldo de eleições, existem milhares de crianças e adolescentes em risco mental, em sofrimento psicológico, cuja infância e adolescência despreocupada foi substituída pela normalidade aberrante pandémica, um verdadeiro «covidemónio», como dizia a minha filha mais velha, um dia destes.   

A palavra "morte" está mais à mão e semear do que julgamos, entre os mais novos.

Não só nos noticiários, jogos violentos, darkweb, ou nos  filmes de terror a que assistem impávidos ininterruptamente, mas também nos seus pensamentos, como descobrimos se falarmos com eles mais atentamente.

Esta semana uma adolescente vítima de bullying disse-me sem pestanejar que tinha encostado um a tesoura ao pescoço; um rapaz de 9 anos foi trazido pela mãe por medo de dormir sozinho há meses, disse-me ter muito medo de morrer.

As consultas de psicologia e pedopsiquiatria têm longas listas de espera; são demasiado dispendiosas.

Não percebo nada de política, mas espero que a futura injeção de fundos europeus do PPR contemple largamente a saúde mental.

Independentemente de alegadas perturbações mentais graves como mote para um adolescente decidir querer saber qual a sensação de matar alguém, termino passando a mensagem:

- Esta é só a ponta do iceberg dos «danos colaterais» psicológicos da pandemia.

Se vamos em breve, e tudo indica que sim, finalmente voltar à normalidade, que nessa normalidade sejamos todos capazes de cuidar melhor, das nossas crianças e adolescentes.

 Com a verdadeira dedicação e entrega que merecem, escutando-as e tentando minimizar os «danos colaterais», concretizando medidas práticas e eficazes com impacto real a curto prazo, na saúde mental. 

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