opinião
Coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental

Chegou a hora de usar a política monetária para salvar bancos?

3 abr 2023, 10:00

Março de 2023 trouxe eventos de instabilidade financeira nos Estados Unidos da América (EUA) e na Suíça.

Entre 8 e 15 de Março tornaram-se públicos quatro eventos preocupantes de instabilidade no sector bancário dos EUA e da Suíça. O Silicon Valley Bank e o Signature Bank foram encerrados por ordem das autoridades no fim de semana de 10 a 12 de Março e a totalidade dos seus depósitos e a maioria dos seus activos foram transferidos para bancos de transição criados para o efeito pela Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), que ficou responsável pela sua operacionalização até os alienar a bancos do sistema. Ao mais alto nível político, foi dada a garantia a todos os depositantes dos dois primeiros bancos que os seus créditos ficariam, a partir desse momento, salvaguardados a 100%.

Um terceiro banco norte-americano, o First Republic Bank, enfrentou dificuldades semelhantes dias depois, agravadas por um efeito de contágio causado pelos dois primeiros, e foi assistido com uma injecção maciça de depósitos efectuada por um consórcio de bancos grandes articulado com a ministra das Finanças e o regulador federal.

A cotação do Credit Suisse voltou a cair significativamente em 13 de Março e ainda mais após o principal accionista, o Saudi National Bank (quota de 9,88% em 10 de Dezembro), anunciar publicamente em 15 de Março que deixara de estar disponível para injectar mais recursos no banco suíço, por razões regulatórios (1), depois do aumento de capital subscrito em Dezembro último para suportar perdas com fuga de depósitos e de se ter sabido em Fevereiro que tinha registado em 2022 o maior prejuízo desde 2008 (2).

As autoridades regulatórias e políticas suíças facilitaram a compra do Credit Suisse pelo seu maior competidor interno, a UBS, cujos contornos gerais foram divulgados na manhã do dia 16 de Março, pouco tempo antes do Conselho de Governação do Banco Central Europeu (BCE) iniciar a sua reunião para decisões de política monetária.

Estes casos de instabilidade no sector bancário lançaram dúvidas sobre a continuidade do foco da política monetária no combate à inflação. A razão era o impacto que a subida das taxas de juro nos mercados retalhistas estava a ter no balanço dos bancos, dada a inacção destes na remuneração dos depósitos.

Do lado do Passivo, taxas de juro mais elevadas no mercado primário da dívida pública, com níveis nominais já entre 3% e 5%, estão a fazer concorrência aos bancos na captação de poupanças — esta é uma explicação para a perda de depósitos em muitos bancos e não apenas naqueles problemáticos. Em Portugal, a corrida aos Certificados de Aforro ilustra esta concorrência.

Do lado do Activo, o encarecimento dos juros também está a fazer mossa. O valor de mercado das acções e das obrigações de rendimento fixo cai com a subida das taxas, o que, no mínimo, causa um problema de liquidez aos bancos com proporção reduzida de numerário no activo total para fazer face aos levantamentos acrescidos dos últimos meses. O acesso a empréstimos dos bancos centrais continua aberto, mas passou a ter um preço positivo e a subir.

Por isso, nos dias que antecederam as reuniões de Março para decidir sobre política monetária, a comunidade de analistas financeiros, agentes políticos e comentadores no espaço público dividiu-se entre aquelas pessoas que apostavam na continuação do ritmo de subida das taxas directoras e as que apostavam na redução ou anulação desse ritmo.

À cabeça e com maior intensidade, estas dúvidas plasmaram-se nos países em cujas jurisdições os bancos e os accionistas acima referidos estavam registados, mas o receio de contágio espalhou a dúvida à Área do Euro, ao Reino Unido e a outras uniões monetárias.

De repente, as pessoas estavam a discutir se a política monetária deve ser usada para estabilizar os preços ou para estabilizar as instituições financeiras.

Pior, deram-se conta que, aparentemente, os dois objectivos de estabilização se tornaram conflituantes ou incompatíveis um com o outro.

Esta percepção deve fazer recordar um famoso princípio geral em Economia conhecido como regra de Tinbergen.

Jan Tibergen (3) dedicou parte da sua vida ao estudo de modelos quantitativos de decisão económica. Inovou na exploração de relações entre objectivos de política e instrumentos de política. O resultado porventura mais famoso desta fase da sua investigação é hoje lembrado como regra de Tinbergen.

Em palavras simples, estabelece que num sistema com m objectivos e n>m instrumentos, há múltiplas soluções possíveis (em rigor, infinitas), isto é, muitas combinações diferentes dos instrumentos por onde escolher para atingir os m alvos previamente definidos pelos decisores públicos.

E quando o número de objectivos excede o número de instrumentos, m>n? Esta é uma situação infeliz. Nas palavras do próprio autor, “we are then placed before insoluble tasks” (4). Umas quantas linhas abaixo desta citação, ele explica que em tal situação os objectivos não podem ser livremente fixados pelos decisores. Se o forem, os objectivos tornar-se-ão incompatíveis entre si e o sistema de decisão torna-se incoerente.

Este resultado vem a propósito do que aconteceu nos EUA e na Suíça. Por razões que se explicam já de seguida, os bancos centrais destes países passaram na prática, de há uns anos até agora, a ter apenas um instrumento para dois objectivos.

Os eventos de Março acima relatados demonstraram que estas autoridades caíram na situação infeliz m>n. Daí, a sensação de conflito ou incompatibilidade entre estabilizar os preços e estabilizar o sistema financeiro.

A supervisão do sistema bancário foi relaxada para a maioria dos bancos nos EUA e o banco central suíço foi complacente perante problemas sérios e antigos do Credit Suisse.

As instituições regulatórias norte-americanas terão sido as mais exigentes de entre os bancos centrais e outras entidades que participaram na redefinição do modelo de supervisão financeira após a Grande Crise Financeira de 2008–10, hoje conhecido por “Basileia III” (5).

Em casa, aprovaram a moldura conhecida por lei Dodd-Frank em 2010, muito parecida com a que depois veio a vigorar na Área do Euro. Impôs requisitos-padrão a todos os bancos com activos avaliados em, pelo menos 50 mil milhões de dólares (mM$): vigilância a cargo da Reserva Federal (Fed), teste anual de stress, rácios de capital para absorver perdas, rácios de liquidez para responder a levantamentos e planos de resolução ordenada com hierarquia clara de chamadas de responsabilidade pelas dívidas.

Em 2018, é aprovada a reversão de algumas destas regras (6). Os requisitos-padrão são mantidos apenas para os bancos com activo superior a 250 mM$ e a Fed passou a monitorizar apenas estas instituições — uma dúzia nessa altura. As outras são responsáveis por cerca de 50% do activo de todo o sector bancário norte-americano e por 80% do crédito concedido a actividades imobiliárias não-residenciais, um sector muito atingido pela pandemia nos EUA (7).

Os bancos de dimensão intermédia e pequena passaram então em 2018–19 para a alçada de reguladores estaduais e sem sujeição aos tais requisitos-padrão. Para eles caíram a obrigação de realização de testes de resiliência a circunstâncias adversas e a sujeição a planos pré-definidos de resolução, além de terem recebido um alívio nos rácios prudenciais de capital e liquidez. Mesmo para os bancos maiores, a revisão de 2018 tornou mais previsível a regulação federal, e os critérios de capital, liquidez e resiliência (stress tests) passaram a ser menos exigentes para as instituições menos complexas de entre as que têm activo superior a 250mM$ (8). Talvez também seja relevante referir outra possível fragilidade institucional nos mecanismos de supervisão estadual. É costume os gestores de topo de bancos regulados terem assento na administração dos reguladores estaduais (9).

Quanto à Suíça, há vários anos que o Credit Suisse tinha problemas e o regulador conhecia-os: erros na gestão de fundos de cobertura de risco, suspeitas sérias de lavagem de dinheiro, instabilidade na gestão de topo (10), escândalo de espionagem envolvendo a UBS, vários episódios de fugas de depósitos e chamadas de capital. Tratava-se de um banco claramente com dimensão sistémica sobre o qual as autoridades de regulação tardaram em agir resolutamente.

Concluindo, a Fed, o banco central suíço e as autoridades políticas dos seus países deixaram-se cair na armadilha de Tinbergen: m>n e impossibilidade de promover livrevemente os m objetivos. Com ou sem consciência dos riscos para a estabilidade do sistema bancário, a verdade é que despojaram as instituições supervisoras dos instrumentos especificamente criados após 2010 para assegurar o objectivo de estabilidade financeira inscrito nos mandatos dos bancos centrais.

Há já algumas ilações a retirar dos eventos bancários de Março de 2023. Os bancos centrais são, por desenho, as instituições talhadas para fornecer dois bens públicos essenciais à economia: estabilidade de preços e estabilidade do sistems financeiro. A prossecução eficaz dos dois objectivos de estabilização atribuídos aos bancos centrais exige a operacionalidade dos instrumentos especificamente criados para garantir cada um deles.

Poderá haver outros eventos bancários nos próximos meses e mais lições a retirar. No entanto, a interpretação do que já aconteceu nos EUA e na Suíça como a armadilha de Tinbergen deverá fazer convergir no curto prazo os esforços das autoridades relevantes para reforçar os instrumentos de supervisão e restaurar o foco da política monetária no objectivo de estabilização de preços.

A Área do Euro poderá ter uma moldura de supervisão melhor, mas a verdade também é que possui algumas instituições financeiras de dimensão apreciável à escala europeia com problemas que não saem do radar há vários anos. A generalidade dos cidadãos está a sofrer bastante com a inflação e não compreenderá que se adie e aprofunde o seu sofrimento porque as instituições de supervisão não são capazes de fazer o seu trabalho. Manter ou começar já a baixar taxas de juro e nada fazer para repor a supervisão financeira será um prémio para a gestão perigosa do risco por parte dos bancos e uma ofensa às vítimas da inflação. Desviar a política monetária do objectivo de estabilização de preços para a colocar ao serviço do objectivo de estabilização do sistema financeiro não deve ser o caminho.

 

Notas:

Além de coordenador da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO), Rui Nuno Baleiras é professor de Economia na Universidade do Minho.

Este texto está escrito segundo o Acordo Ortográfico de 1945. O conteúdo é extraído, com adaptações, do Relatório UTAO n.º 4/2023, de 29 de Março, intitulado “Inflação: um estudo pedagógico sobre os dilemas que a política económica enfrenta”.

(1) Em resposta a uma pergunta da agência de notícias Bloomberg.

(2) Fuga de depósitos de 110 mM de francos suíços (sensivelmente o mesmo valor em euros) em 2022 e aumento de capital de 4 mM€ subscrito pelo Saudi National Bank e os outros principais accionistas em Dezembro, com destaque para entidades detidas por fundos soberanos.

(3) Jan Tinbergen ganhou a primeira edição do Prémio Nobel da Economia, juntamente com Ragnar Frisch, em 1969. Foi um dos primeiros economistas a aplicar matemática à teoria económica e a regra explicada neste parágrafo tem a sua inspiração nos três tipos de solução de um sistema de m equações lineares com n variáveis: solução única e bem determinada quando o número de equações é igual ao número de variáveis, m=n; múltiplas soluções quando m<n e ausência de soluções quando m>n. Teve uma carreira profissional híbrida, dividida entre a academia, centros de investigação aplicada e consultoria para governos e organizações internacionais. Tem trabalho distinto como economista, estatístico e econometrista, sendo um pioneiro da econometria espacial. É curioso lembrar que foi o primeiro director do muito influente até aos dias de hoje Central Planning Bureau. Esta agência é internacionalmente reconhecida como a primeira instituição orçamental independente, a cuja família a UTAO pertence.

(4) TINBERGEN, Jan (1952), On the theory of economic policy, Amesterdão: North-Holland Publishing Company, p. 39.

(5) BIS (2022), Evaluation of the impact and efficacy of the Basel III reforms, Basel Committee on Banking Supervision, Basileia: Banco de Pagamentos Internacionais. Descarregado em 28/03/2023.

(6) Ver artigo por Alan Rappeport e Emily Flitter em 22/05/2018 no The New York Times.

(7) Artigo não assinado na edição digital da revista The Economist, datado de 22/03/2023.

(8) Ideias retiradas de “The Eye of Providence: Thoughts on the Evolution of Bank Supervision”, discurso do vice-presidente da Fed responsável pela supervisão, Randal Quarles, na Harvard Law School em 11/12/2020, em que explicou os princípios da reforma aprovada dois anos antes. Jeanna Smialek e Emily Flitter afirmam no The New York Times de 15/03/2023 que o cenário adverso dos testes de resiliência corridos pela Reserva Federal nos bancos acima de 250mM$ se tornaram menos adversos após as mudanças de 2018: “While banks used to be run through an ‘adverse’ scenario that included creative and unexpected shocks to the system — including, occasionally, a jump in interest rates like the one that bedeviled Silicon Valley Bank — that scenario ended with the deregulatory push.”

(9) Gregory Becker, líder número 1 do Silicon Valley Bank até à sua resolução foi, ao mesmo tempo, membro do Conselho de Administração do Federal Reserve Bank of San Francisco.

(10) António Horta Osório, reputado gestor bancário, protagonizou uma destas mudanças na liderança. Foi o CEO entre Maio de 2021 e Janeiro de 2022. Em declarações ao jornal ECO reproduzidas a 11/02/2022, afirmou: “O Crédit Suisse foi uma escolha que se revelou errada. O banco estava numa opção muito diferente, pior, quando eu cheguei do que quando aceitei e requeria uma enorme mudança cultural que levaria anos e levantou enormes resistências.”

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