ENTREVISTA || O economista Ricardo Cabral não acredita nas constantes promessas das autoridades sobre a robustez da banca e diz mesmo que a atual crise que se está a fazer sentir no setor bancário nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa pode vir a ser mais séria que a crise financeira internacional que se fez sentir entre 2007 e 2009
Depois queda do Silicon Valley Bank (SVB) e do Signature Bank nos EUA, da venda forçada do Credit Suisse, na Suíça, e da recente queda em bolsa do Deutsche Bank, na Alemanha, o medo voltou a instalar-se. Mas para o professor do ISEG, “o mecanismo incendiário” para a turbulência que se está a sentir no setor financeiro e “que precipitou e continua a causar a fuga de depósitos, tem sido a política monetária dos bancos centrais.” Ricardo Cabral é, aliás, muito crítico em relação ao papel do Banco Central Europeu (BCE) e da Reserva Federal norte-americana (Fed). “Estão a ser apanhados de surpresa” e “não percebem o que está a acontecer”, acusa o economista. “É uma questão de esperarmos por um acidente, mas é esse o cenário que temos neste momento”, lamenta.
Depois da crise financeira de 2008 disseram-nos que os contribuintes não voltariam a ser chamados a resgatar bancos. Mas com base nos acontecimentos das últimas semanas…
A partir de 2008 houve um conjunto de reformas da regulação e da supervisão do setor bancário desenvolvidas e inspiradas com base em algumas posições dominantes académicas, mas sem sustentação empírica. Mais ideologia do que algo de sustentado.
A tese de risco moral, de punir todas partes interessadas (“stakeholders”) no caso de crises bancárias e, sobretudo, de proibir resgates públicos, enfim, a tese de que seriam as próprias partes interessadas – acionistas, gestores, credores, mas também depositantes e funcionários desses bancos – a suportar os custos da reestruturação bancária, foi adotada primeiro nos EUA, sobretudo com o Dodd-Frank Act de 2010, e depois, na área do euro, com a União Bancária a partir de 2014.
Era a ideia do bail-in.
Sim, uma ideia baseada na liquidação ou na resolução, na tese de que não mais seriam os contribuintes a pagar as crises, proibindo medidas de recapitalização, e de os reguladores adotarem uma postura agressiva de vigilância para assegurar que não voltavam a acontecer crises como a crise bancária de 2007-2009.
Essa abordagem baseia-se na perspetiva de que o regulador consegue analisar e identificar os riscos melhor do que a maior parte dos bancos e dos agentes económicos. É uma tese quase planificadora, de omnisciência dos supervisores enquanto entidades capazes de identificar riscos e dizer aos bancos o que têm e não têm de fazer.
Foi essa a promessa das autoridades. A promessa de que o sistema estaria mais resiliente e robusto. São as platitudes que ouvimos no dia a dia: o sistema está mais resiliente e robusto (graças, subentende-se, à regulação e supervisão atenta das autoridades competentes).
E os EUA fizeram muita pressão sobre a União Europeia para implementar o instrumento da resolução bancária porque defendiam que era um instrumento fundamental para responder a crises bancários.
O que se passa nos Estados Unidos é quase uma telenovela, daquelas telenovelas de baixa qualidade. É quase ridículo o que está a acontecer. Ainda não identificaram a fonte do problema"
A Europa adotou a resolução bancária e aplicou-a, por exemplo, em Portugal…
Sim, a Europa testou os novos instrumentos da União Bancária em cobaias que se prestaram a esses testes com os seus bancos, a quase totalidade dos quais no Sul da Europa. Portugal sofreu na pele com a resolução do Banco Espírito Santo (BES) e do BANIF. Mas outros países como Itália, Espanha, Chipre, ou Grécia também sofreram as consequências da aplicação dos novos instrumentos, incluindo a resolução bancária, na sequência da adoção da União Bancária.
O que é certo é que nos EUA bastou um abalo de confiança e voltamos ao mesmo, os contribuintes são chamados a pagar.
Exatamente.
E até houve na Europa quem criticasse.
Sim, um responsável europeu disse ao Financial Times que os americanos foram incompetentes porque não souberam resolver a situação e, logo ao primeiro sinal de dificuldades, resgataram um banco não sistémico, ao contrário do que recomendam as regras vigentes, que esses responsáveis americanos tinham aconselhado a União Europeia a adotar.
Há, aliás, um episódio caricato nestes colapsos nos EUA. O Signature Bank foi intervencionado em circunstâncias estranhas, porque aparentemente dispunha de liquidez. O banco tinha no Conselho de Administração um dos dois senadores que deram o nome da legislação Dodd-Frank e esse responsável tinha feito lóbi para isolar os dois bancos que falharam, o Signature Bank e o Silicon Valley Bank, da supervisão da Reserva Federal (FED).
Apesar das críticas europeias, dias depois tivemos o caso do Credit Suisse. É diferente do que aconteceu nos EUA?
Há diferenças significativas, mas o colapso foi precipitado por uma fuga de depósitos que se arrastava há vários anos, à semelhança do que ocorreu com o Silicon Valley Bank. Entre 2021 e 2022 fugiram cerca de 100 mil milhões de euros de depósitos do Credit Suisse. Na semana a seguir ao colapso do Silicon Valley Bank a fuga de depósitos acelerou.
Há um analista que chama a Suíça a república das bananas financeira porque o escândalo é indescritível.
As autoridades suíças ficaram em pânico e forçaram o UBS a comprar o Credit Suisse, mas fizeram-no dando-lhe enormes subsídios.
A liquidez que está a ser oferecida ao banco conjunto são, mais ou menos, 254 mil milhões de euros. Além disso, as autoridades suíças garantiram cerca de 39 mil milhões de euros de perdas que o UBS possa vir a ter. E ainda criaram um grupo de lesados com perdas de 17 mil milhões de euros. Por outro lado, o valor patrimonial do banco era de cerca de 45 mil milhões de euros, isto é, apesar de valer em bolsa oito mil milhões de euros, ainda tinha capitais próprios muito positivos e cumpria os rácios de capital exigíveis.
O Conselho do BCE nem sequer percebe que é a política monetária e a política para o sector bancário por eles definida que está a dar cabo dos bancos"
Um bom negócio para o UBS.
Não havendo surpresas, o UBS pode, de um dia para o outro, ganhar mais de 50 mil milhões de euros com esta operação. Uma operação financiada em grande medida pelos suíços. Aliás, o montante de apoios públicos por habitante na Suíça é de mais de 30 mil euros. É olhar para o caos que foi a resolução do BES e multiplicá-la por 20 ou 30. Os suíços esmeraram-se com esta operação.
E é criado um banco gigante.
Vai ter qualquer coisa como cinco biliões de euros de ativos sob gestão. Uma enorme dimensão.
Com este tipo de atuações das autoridades, dizendo que está tudo bem e, perante as dificuldades, colocar dinheiro público ao serviço dos bancos, não estão a dar um sinal de que vale a pena atacar uma qualquer instituição?
Exatamente. E pode ter sido isso que aconteceu ao Credit Suisse, apesar de o banco ter outros problemas. As pessoas entraram em pânico, achavam que o banco iria entrar em colapso e a crença generalizada nesse processo é suficiente para levar abaixo um banco.
As autoridades suíças tiveram mal. Tal como já se observou em Portugal, houve da parte das autoridades um pouco de provincianismo a lidar com estes temas porque são temas que escapam à área de conhecimento dos seus responsáveis. E o medo do colapso de um grande banco leva-os essencialmente a assinarem cheques em branco, que são tanto maiores quanto maior o poder financeiro dos países em causa.
Estamos a falar de um país com uma enorme reputação ligada ao setor financeiro.
A Suíça queimou um pouco a sua reputação de porto seguro nos mercados internacionais. Isto foi um caos. Um caos mal gerido.
Por exemplo, a Arábia Saudita, que investiu em outubro 1,5 mil milhões de euros no Credit Suisse - uma situação parecida com a injeção de capital de mil milhões de euros feita no BES um mês antes do banco ser resolvido - deve sentir-se expropriada, roubada dos seus ativos.
E há ainda o grupo de obrigacionistas lesados que já referiu.
É um grupo de lesados detentores de um tipo de dívida que foi criada especificamente para recapitalizar os bancos, sob proposta das autoridades.
E que foi usada em Portugal. Os chamados Cocos, obrigações convertíveis em capital.
Foi muito usada em Portugal sob pressão do BCE. Esse mercado de dívida na área do euro foi uma inovação recente que sempre critiquei porque prejudicava a rentabilidade dos bancos por ser muito dispendiosa. E foi esse mercado, que representa 275 mil milhões de euros na Área do Euro, que foi agora posto em causa pelas decisões das autoridades suíças. Para recapitalizar o Credit Suisse, mesmo estando o banco capitalizado, as autoridades resolveram arbitrariamente impor perdas a esses obrigacionistas, quando a ordem de imposição de perdas deveria ter sido, os acionistas perdem tudo, e só depois esses credores subordinados perdem os capitais investidos, até serem atingidos os níveis de capital regulatório exigidos. Ora, formalmente, o Credit Suisse cumpre os requisitos de capital exigidos.
Diz que as autoridades suíças entraram em pânico, mas o Credit Suisse tinha como aguentar, com toda a perturbação que já existia?
O Credit Suisse, entre 2021 e 2022, viu mais de 100 mil milhões de euros de depósitos fugirem. E nas últimas semanas, com os problemas nos bancos americanos, essa fuga de depósitos acelerou. Estavam a fugir depósitos a um ritmo de 10 mil milhões de euros por dia. Mas apesar de terem fugido mais de 100 mil milhões de euros, o Credit Suisse ainda tinha cerca de 250 mil milhões de euros em depósitos. Basicamente, as autoridades suíças garantiram tanta liquidez quanto a necessária para fazer face a uma corrida ao banco que esvazie a totalidade dos depósitos.
Mas se era assim…
A dívida do banco estava a transacionar-se por cêntimos em relação ao valor facial. E, portanto, para quem estava informado… Estas crises são sempre oportunidades. Neste momento há grupos de interesse, empresas a fazer fortunas com o descalabro do Credit Suisse.
Como é que tudo o que está a acontecer nos EUA, na Suíça e até na Alemanha vai afetar o sistema financeiro da zona euro?
As autoridades estão novamente com a sua atitude típica de que o nosso sistema, isto é, o sistema bancário da Área do Euro, é resiliente e robusto. Foi o que nos fartámos de ouvir, inclusive dias antes de colapsos de bancos importantes. O que aconteceu nos EUA pode acontecer na área do euro, porque resulta de dois aspetos fundamentais, a política monetária e os instrumentos de intervenção na banca definidos pela União Bancária.
A União Bancária implementou instrumentos similares aos que foram adotados nos EUA, mas que são ainda menos flexíveis, mais duros e radicais. O que significa que, a haver uma crise de confiança num grande banco que resulte numa fuga de depósitos, a legislação da União Bancária obriga à aplicação de uma medida de resolução ou à aplicação de uma medida de liquidação
Vimos isso no Banco Popular em Espanha em 2017. Houve uma corrida ao banco agravada por declarações públicas da responsável do Mecanismo Único de Supervisão, e mesmo antes de terminarem os colaterais e com o banco solvente e em cumprimento dos rácios de capital legalmente exigíveis, o Mecanismo Único de Resolução determinou a aplicação de uma medida de resolução pré-anunciando-a publicamente, o que causou o acelerar da corrida ao banco. A medida de resolução foi conduzida pelo Banco de Espanha que vendeu o Banco Popular ao Santander por um euro, num processo sem concorrência. Essa resolução, naturalmente, lesou os acionistas e credores, apesar de ter havido uma injeção de capital menos de um ano antes. O que aconteceu ao Banco Popular, a segunda maior resolução de sempre à altura pode acontecer a outros bancos, mesmo grandes bancos europeus.
Tudo isso acontece no âmbito da atuação das autoridades.
O problema é que estamos no campo em que temos uma política altamente discricionária, em que essas autoridades não são escrutinadas, não há controle democrático quando estas decisões são tomadas. E pode haver grupos de interesse, que não estamos a ver, a mexerem-se no sentido de intervirem num ou outro banco. Julgo que as autoridades estão com receio que isso aconteça na área do euro. E perante um novo cenário de falta de confiança como é que as autoridades vão reagir? Se reagirem de acordo com as regras que estão vigentes, têm de liquidar o banco, por defeito, para depois o resolver. É uma questão de esperarmos por um acidente, mas é esse o cenário que temos neste momento.
Esse cenário não pode ser travado?
Se houver uma crise de confiança, como as transferências eletrónicas são muito rápidas, e sobretudo agora que os depósitos nos EUA parecem mais garantidos que os depósitos na zona euro, há um incentivo muito grande para as pessoas transferirem dinheiro para fora do banco, ou seja, disparar primeiro e fazer perguntas depois. E, quando se aprofunda esse género de movimentos, pode levar ao colapso de qualquer banco, por maior que seja.
Mas esse não é um problema eterno enquanto se mantiver a regra de que os bancos só têm de fazer reservas obrigatórias de 1% dos depósitos que recebem?
Essa é uma das minhas críticas. Costumávamos ter dois sistemas para fazer a regulação bancária. Um, as reservas obrigatórias, e outro, os capitais próprios. Em Portugal, até 1997, antes de aderirmos ao euro, os bancos estavam obrigados a manter reservas mínimas obrigatórias de 17%. Aliás, um dos fatores que explica os enormes desequilíbrios macroeconómicos que vivemos a seguir à adesão ao euro foi termos reduzido as reservas mínimas obrigatórias de 17% para 2% e depois para 1%.
Maiores reservas obrigatórias protegeriam melhor os bancos?
Quando um banco tem 17% das reservas em dinheiro, há 17% de reservas que não perderam valor. Juntando-lhe a reserva de capital, são amortecedores muito grandes perante as perdas que o banco possa sofrer. Com reservas de 1% é muito mais difícil, porque tal nível de reservas permite aos bancos criar muito mais crédito e muito mais depósitos.
Mas hoje seria possível aumentar as reservas mínimas?
Seria uma missão impossível porque, entretanto, os bancos criaram muito crédito e muita moeda (creditícia). Na área do euro, antes dos programas de expansão quantitativa, a maior parte do dinheiro que estava em circulação era dinheiro privado criado pela banca, um rácio de mais de 9 para 1. A maior parte do dinheiro eram depósitos. E isso coloca um problema acrescido.
O mecanismo incendiário, que precipitou e continua a causar a fuga de depósitos, tem sido a política monetária da Reserva Federal e do BCE"
As críticas que faz às autoridades levam a questionar se falta compreensão para o que está a acontecer…
As autoridades monetárias não perceberam bem o que aconteceu. Estavam convencidas que o esquema regulatório que tinham criado era perfeito. O exercício de regulação e supervisão foi encarado pelas autoridades como uma lista de itens a verificar (“checkboxes”). Que, desde que as estatísticas fossem cumpridas de acordo com os parâmetros que eles inventaram, estaria tudo bem. Não haveria nenhuma razão para os mercados entrarem em pânico. É um pouco a filosofia de quem está nesses lugares. Agora estão a ser apanhados de surpresa. Não percebem o que está a acontecer. Já se começam a ouvir vozes a alertar que o problema são as taxas de juros, a política monetária, mas ainda é uma franja minoritária.
Qual foi o papel que a política monetária teve em concreto sobre os efeitos no setor bancário? Já tivemos as taxas de juro a este nível noutros momentos.
Mas as taxas nunca tinham estado tão baixas assim. E, portanto, a evolução é não linear. Um aumento da taxa de juro de 1% para 2% é um aumento de 100% dessa taxa, apesar de só representar um aumento de um ponto percentual. Quando sobe de zero para um, para dois, etc., tão rapidamente, já passa a ter efeitos significativos.
Os bancos centrais tinham reiteradamente afirmado que iriam manter as taxas de juros baixas. E perante isso houve muito boa gente que geria patrimónios avultados que acreditou nessa história e, agora, está exposto a perdas muito significativas em resultado do aumento muito significativo e muito rápido das taxas de juros. Essas perdas tiveram de ser absorvidas por alguém.
Pelos bancos?
Tipicamente essas perdas são perdas de valor de mercado, ou seja, contabilísticas, se esses ativos estiverem a ser avaliados a preço de mercado. Não têm repercussões imediatas, porque o dinheiro está parado a render juros. Para os bancos isso significa menos valias que não estão reconhecidas no balanço se estiverem a ser avaliadas até à maturidade. Mas também as seguradoras e uma série de empresas estão com o mesmo problema.
Ou seja, mesmo que um banco não tenha os ativos avaliados a preços de mercado, sabe que tem uma perda potencial no balanço. Se precisar de vender esses ativos por uma necessidade de liquidez, terá de registar a perda…
Exatamente. Foi isso que deitou o Silicon Valley Bank abaixo.
Mas o próprio conjunto de bancos centrais da zona euro e o BCE, o Eurosistema, estão cheios de dívida pública que se desvalorizou significativamente…
Mas o Eurosistema pode emitir papel-moeda. Contudo, se essa dívida for avaliada a preço de mercado, o Eurosistema estará tecnicamente insolvente. Alguns bancos centrais da Área do Euro estarão tecnicamente mais insolventes que outros.
Mas é essa a ideia. Estão tecnicamente insolventes. Grosso modo isso foi o que aconteceu ao Silicon Valley Bank. Tinham investido em dívida pública americana e desfizeram-se dessa carteira para ter liquidez, para fazer face à corrida ao banco. E ao desfazerem-se dessa carteira, sofreram perdas que chamaram a atenção para a crise de liquidez e de solvência nesse banco.
O BCE devia ter começado a subir taxas de juros mais cedo?
Houve um choque exógeno [a invasão da Ucrânia] que resultou num aumento da taxa de inflação que apanhou toda a gente desprevenida. Havia já quem defendesse que a taxa de inflação iria aumentar e que, portanto, a taxa de juros deveria ter subido mais cedo. É relativo, podíamos ter os dois cenários. Se calhar fazia sentido não ter uma taxa de juros tão baixa durante tanto tempo, mas parece-me que há também boas razões para argumentar que esse não era um fator. Mas, enfim, mesmo admitindo que a taxa de juro teria subido, ia fazer alguma diferença, mas não muita.
O problema foi a forma como entraram em pânico e começaram a aumentar as taxas de juro. E ao fazê-lo desta forma estão a causar imensos problemas ao setor financeiro e à economia real.
Foi uma alteração da política monetária brusca num contexto muito diferente daquele vivido em 1979, com a crise petrolífera. As autoridades monetárias estão a reagir à crise da inflação, adotando a tese dominante das últimas décadas, que é que a política monetária tem de aumentar as taxas de juros para combater a inflação, quer seja um choque do lado da oferta, quer seja um choque do lado da procura, imitando um pouco a política adotada pelo presidente da Reserva Federal de então, Paulo Volker.
E como se controlaria a inflação sem essa subida das taxas de juro?
O consenso dominante diz que se controla a taxa de inflação através da política monetária. Teorias económicas alternativas têm outros argumentos. Nomeadamente em relação a este choque, que é um choque do lado da oferta.
As autoridades monetárias entraram em pânico e seguiram o guião que representa o consenso dominante da atualidade. Agora, parece-me que a solução não podia ser esta, de aumentar tão radicalmente e tão depressa as taxas de juros precisamente pelo efeito nos preços dos ativos financeiros e na atividade económica real. Aliás, é engraçado constatar que o Banco Central da China deu esse recado às autoridades americanas. Quase parece que estão estupefactos com o ‘amadorismo’ das autoridades monetárias, tanto as da Área do Euro como as dos EUA.
Esta crise pode ser séria?
É uma crise que se pode tornar mais séria que a crise financeira de 2007-2009, e é uma crise que está a ser causada pela política monetária dos bancos centrais. O mecanismo incendiário, que precipitou e continua a causar a fuga de depósitos, tem sido a política monetária da Reserva Federal e do BCE. Mais precisamente, a política monetária e a regulamentação que EUA e Área do Euro implementaram desde 2010, com o Dodd-Frank Act nos EUA e a União Bancária na zona euro. É o cozinhado perfeito para termos uma crise mesmo séria, que pode ser mais grave que a crise financeira de 2007-2009.
E sente essa preocupação nas autoridades?
Particularmente cá, na zona euro, não. Ainda pensam que é um problema remoto e que não nos diz nada. E não é.
Uma interessante constatação de Max Planck, o grande físico alemão, é que, parafraseando-o, a ciência avança funeral a funeral. Isto significa que se há um consenso dominante defendido por um professor com muito prestígio, essa tese mantém-se dominante como uma tese verdadeira, mesmo que apareçam outras teorias que pareçam explicar melhor os factos observados. Até que o tempo passa, esse professor morre, e os jovens que abraçam essa área científica optam pela tese alternativa, que lhes parece mais correta que a tese dominante. Esse processo de adoção de novas teorias científica demora anos. Esta observação é pertinente não só para a ciência, como em relação à política económica.
Temos muito isto, consensos dominantes que criam narrativas e que resultam em redomas de vidro em certos círculos. Vê-se muito isso na União Europeia, cujas instituições não são muito democráticas. As redomas de vidro impedem que se considerem alternativas. E chegamos a estes modelos, com muito poucas nuances, que não sobrevivem ao teste dos tempos. E é essa a situação que estamos a enfrentar em relação à banca e à política monetária.
O Conselho do BCE nem sequer percebe que é a política monetária e a política para o sector bancário por eles definida que está a dar cabo dos bancos. As autoridades não percebem que os bancos estão numa situação extremamente frágil porque cumprem todos os rácios que essas mesmas autoridades obrigaram os bancos a cumprir e, portanto, na ótica dessas autoridades os bancos são resilientes e robustos porque cumprem as métricas que as autoridades definiram de forma arbitrária. E sentem-se muito orgulhosos desse trabalho realizado nos últimos anos. Admitir que o enquadramento regulatório é deficiente e que não protege a banca de uma crise séria seria equivalente a autocriticarem-se. Uma quase revolução na forma como as autoridades analisam a realidade do sector. Portanto, temos as condições perfeitas para umas surpresas como a que os suíços enfrentaram nas últimas semanas.
É uma questão de esperarmos por um acidente, mas é esse o cenário que temos neste momento"
E Portugal tem diferenças face à zona euro?
Se houver pânico não tem. Portugal estará menos mal que outros bancos noutros países porque tivemos uma crise muito significativa e tivemos sob a vigilância apertada do BCE que quase não deixou a carteira de crédito crescer. Tivemos anos e anos a fio com o crédito bancário a diminuir. Há outros países que estão em situação muito pior. O que acontece é que o pânico cria a sua própria realidade no sistema bancário. E isto é que é o trágico. Por mais robusto que esteja o banco, se agentes económicos, sobretudo aqueles com maior património, acreditarem que um banco está em fragilidade, o banco pode colapsar. Porquê? Porque não existem ferramentas e o enquadramento regulatório quase incentiva essas corridas ao banco que depois se tornam realidade. Isso, mais a política monetária, é o coquetel perfeito.
Que alternativas é que podíamos ter a esta subida da taxa de juros para controlar a inflação?
A subida da taxa de juros deve ser muito mais lenta. Já há pessoas a defenderem que as taxas de juro terão de descer uns dois pontos percentuais. Tudo por causa do efeito nas carteiras de ativos do sistema bancário.
A Reserva Federal também entrou em pânico. Já injetou mais de 300 mil milhões de dólares de liquidez. É provável que continue a injetar liquidez. Portanto, todo o programa de retirada de liquidez já foi quase invertido. O que se passa nos Estados Unidos é quase uma telenovela, daquelas telenovelas de baixa qualidade. É quase ridículo o que está a acontecer. Ainda não identificaram a fonte do problema. Precisam de pensar um pouco fora da caixa. Eles têm economistas brilhantes que sabem o que está a acontecer. Mas esses economistas, como Michael Hudson, não estão a ser consultados, não estão a ser ouvidos.